domingo, 13 de dezembro de 2015

Uatu

Há pouco mais de dois anos, o presidente Rafael Correa tornou pública uma carta-conferência, resumo de uma fala sua proferida na Sorbonne. Mesmo a temática sendo datada ("conselhos" de um político equatoriano aos dirigentes europeus quanto à gestão da crise financeira), algo na estrutura de seu texto ainda interessa: sempre que as discussões tomam ares de dualidade, um sábio aparece do recanto de sua montanha e entoa cânticos heraclitianos, enuncia que devemos deixar de lado esse lance pendular de esquerda e direita, liberalismo e estatismo, idealismo e realismo, empirismo e racionalismo, Dilma e Cunha, Marvel e DC etc. etc., e apenas compreender as regras e condições que produzem um e outro lado de um mesmo jogo.

O fogo e o raio de Heráclito fizeram escola, e outros pensadores, como Spinoza, pavimentam a mesma estrada que nos ensina a "não julgar, mas compreender". Praticamente todo o academicismo do século XX segue essa mesma esteira anti-dualista: marxismo, fenomenologia, bergsonismo, vitalismo, behaviorismo, existencialismo, estruturalismo, cada um, a sua maneira, uma recusa à postura intelectual que equivale pensar a escolher um lado de uma trincheira. Palmas. Essa estrada possui um atalho, no entanto, a que chamarei de emcimadomurismo.

O emcimadomurismo é um pseudo-posicionamento que, recusando ocupar um e outro dos lados de um conflito, passa a equivaler pensar a não escolher nada, a não atualizar nenhum esquema de ação, real ou possível. O pensamento, ao se efetivar, vira o seu contrário: Winston e seu duplipensar se atualizam. Correa falava, à época do artigo, do neoliberalismo (resolução intelectual do conflito liberal v estadista) como um emcimadomurismo, um lobo político disfarçado de cordeiro neutro, suspenso das mundanidades, uma "ideologia disfarçada de ciência", pra usar uma expressão do próprio texto.

O emcimadomurista equivale ocupar escolas pelo direito à educação a invadir o patrimônio público, defender minorias a buscar privilégios, sustentar uma posição a ser imparcial e, portanto, falso. Ter um corpo, ocupar um lugar no mundo, dialogar com a tradição e com o outro tornam-se o falso, o ilusório e o erro para o emcimadomurista. Sua posição, ao se revelar, anuncia uma não-posição. Ser real e verdadeiro, para o emcimadomurista, é ser uma aparição sem aparição, um fantasma, uma cabeça acima do mundo. E o conflito se resolve, sem se resolver.

Heráclito, o ermitão, hesitava em falar: sabia que a diferença entre o sábio e o idiota nunca foi muito clara...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"É comunista? E esse iPhone, aí!?"

Marx objetaria, já no Manifesto..., dizendo que o comunismo "não priva ninguém do poder de se apropriar de sua parte dos produtos sociais; apenas suprime o poder de subjugar o trabalho de outros por meio dessa apropriação".

Uma contra-objeção, no entanto, é bastante salutar: vez e outra nos deparamos com denúncias de emprego de mão-de-obra infantil, da manutenção de jornadas excessivas de trabalho e, mesmo, do uso de trabalho escravo por parte da Apple. Comprando um iPhone o comunista estaria patrocinando tal produção, não?

Excelente questão.

Curiosamente, a contra-objeção é, ela mesma, tributária de Marx, ao deslocar a análise do objeto, da mercadoria, para o seu modo de produzir e distribuir. Nada mais materialista-histórico do que isto e, com isto, podemos reconhecer a honestidade da contra-objeção ao permanecer no mesmo plano discursivo colocado pelos termos e conceitos do Manifesto... A questão central, creio, reside exatamente em não equivaler produto com modo de produção, e não identificar, na esteira, marxismo com franciscanismo (uma renúncia pessoal) ou com primitivismo (uma abstenção tecnológica coletiva).

O sujeito que compra o iPhone financia um determinado modo de produzir, distribuir e explorar trabalho? Com certeza! Mas uma tal perspectiva nos impede de focar apenas o produto (com ou sem ele, a ou não-a, o plano da lógica) e pensar no próprio modo de agenciá-lo e consumi-lo (o plano dialético). Se saímos de uma análise objetal, individual, e focamos o sistema produtivo, abster-se de consumir um ou outro dos precipitados desse sistema não seria coerente, visto que cada um desses precipitados envolveria, em algum momento de sua cadeia de produção, algum nível de exploração do trabalho (um iPhone, um filme, um game, uma roupa, um rolo de papel higiênico etc. etc.). Como diria o profeta de K. Gibran, "somos todos culpados". Mas "culpa" é termo por demais cristão - ainda permanece no plano da moralidade e do ascetismo pessoal. É de outra palavra que precisamos.

O leitor poderia dizer que eu apenas encaminhei as colocações em um plano teórico, e você teria razão. Eu, mesmo, não saberia como sair dessa querela de maneira absoluta. Em todo caso, é curioso enxergar as diferentes estratégias da esquerda, partidária ou não, como diferentes (e mesmo contraditórias) soluções para esse problema que estamos discutindo. 

Rende conversa.

domingo, 22 de março de 2015

Realidade das ideias

"Os super-heróis são reais quando desenhados à tinta", escreve David Mazzucchelli em seu posfácio ilustrado a Batman: Ano Um.

Se o psiquiatra F. Wertham vê em Batman e Robin uma metáfora para o homossexualismo, é porque os levou a sério demais, é porque os leu como um adulto os leria. E o leitor de Batman - assim como o Robin, assim como o próprio Batman, criança mimada e traumatizada - não é um adulto. Selina Kyle é a maturidade para a qual os meninos do batclubinho não estão preparados ("Que foi? Nunca viram uma garota bonita?", brinca Mazzucchelli).

Colocar realidade demais num super-herói é uma batalha sobre corda-bamba. 

As constantes crises de consciência, os dramas morais, os problemas no casamento, as contas sempre a pagar e uma tia doente e viúva pra cuidar são aspectos tão característicos do Homem-Aranha quanto o seu lançador de teias; a história mais famosa do Arqueiro Verde é a luta de Roy Harper, seu parceiro 'Ricardito', contra o vício em heroína; o Demolidor sabe que socar capangas e meliantes vestido de um colant vermelho é apenas a ponta do iceberg para o trabalho de enxugar gelo do advogado e burocrata Murdock; a própria Ano Um nos apresenta uma recontagem da origem do herói de uma maneira reticente e trôpega, temerosa, indecisa, mas, ao mesmo tempo, menos arraigada nos monstros anti-heroicos da vingança e do trauma que tanto caracterizam Bruce Wayne. É esse resquício de humanidade que tanto seduz nas super-narrativas, bem mais que a capacidade de voar, uma ultra-percepção ou a posse de engenhocarias tecnológicas.

As fagulhas de real que um roteirista, um artista e um editor são capazes de injetar num personagem, numa história e num cenário, porém, não podem ultrapassar o limite da superdosagem, sob pena de overdose para o personagem e seu leitor. Se, por um lado, é a realidade no irreal do herói que cose o leitor na trama do personagem, o excesso do mesmo mata tanto o herói quanto o leitor de super-narrativas.

Há algo no super-herói que não o deixa ser reduzido a um aglomerado de poderes (e a suas motivações para usá-los). Construir a super-realidade do herói, como dito, é corda-bambear, mas também investir num cenário de ficção e ciência que não é conceitual, categórico.

Há como que pedaços de sociologia, antropologia, política, ética, psicologia, economia etc. no mito, mas a abordagem do mito sobre os problemas que nos constituem é pré-discursiva, pré-conceitual.

O herói é um mito, uma mitologia, antes de uma filosofia, e a mitologia, antes de mobilizar jornadas arquetípicas (J. Campbell), acende fagulhas de afeto e possibilita novos modos de percepção.

É já sabido que o mito articula uma compreensão pré-racional do real; se, com isto, queremos dizer que o mito ainda não é razão, razoabilidade e logicismo, então pouco entendemos do mito. O mito não é uma razão ainda por vir, assim como a alquimia não é uma pré-química, ou a astrologia uma astronomia em sua infância, ou a feira de rua um embrião de supermercado. A razão produz conceitos; o mito agencia narrativas, e a narrativa, ao invés de pretender representar e corresponder ponto por ponto um real estável e reificado, intenta ser uma manifestação do invisível, um mitologema.

Razão e mito não se sucedem num desenvolvimentismo progressista; razão e mito são modos distintos para o entendimento do real. Melhor: a razão entende; o mito encarna.

Injustice, videojogo ambientado no Universo DC, narra um mundo no qual o Coringa, munido de algumas drogas e uma bomba nuclear, impele o Superman a matar Lois Lane, grávida de seu filho, e a destruir Metrópolis, convencido de que está num combate contra Apokalypse; ao perceber o que fez, Superman é tomado pela fúria, mata o Coringa e instaura uma espécie de tirania a nível global; não há mais liberdade de expressão, imprensa desvinculada do Estado ou mesmo atos de heroísmo não registrados e legitimados pelo Superman, ao mesmo tempo em que a pobreza, o crime e a corrupção foram praticamente banidos da Terra; duas frentes heroicas se formam: as forças do Regime, aliadas ao Superman, e a Insurgência, grupo de heróis rebeldes que se recusam a pactuar com essa sinistra Ordem Mundial, liderados pelo Batman. Uma questão ético-política está aí instaurada. A narrativa, porém, cai num moralismo irreversível, ao fazer do Superman, capítulo após capítulo, uma criatura raivosa, ressentida e arbitrária. Mas... e se o Super não enlouquecesse? E se permanecesse sereno e lúcido em sua governamentalidade tirana? O problema estaria colocado: qual a legitimidade - e, em filosofia, é sempre de verdade e de legitimidade que se trata - de um governo dessa natureza? O problema é colocado, sim, mas não enunciado; a enunciação do problema e a sua resposta são coisas de filósofo; para o mito, basta fazer o seu leitor-ouvinte tornar-se personagem, tornar-se a questão, vivê-la de espírito e de carne.

O filme O Soldado Invernal faz o personagem Capitão América (e o espectador-narrador) vivenciar um problema similar: vale a pena resguardar a segurança nacional, e mesmo mundial, com um super-programa de espionagem instaurado pela S.H.I.E.L.D., ou essa cultura da vigilância é apenas o outro lado de um Estado controlador e regulador dos mínimos aspectos da vida individual? A discussão é interessantíssima, mas também acaba num moralismo, já que descobre-se que a S.H.I.E.L.D. está profundamente tomada e corrompida pela Hydra, facção nazista criada pelo Barão Von Strucker, antigo inimigo do Capitão. A escolha de lados pelo espectador-narrador é óbvia. O mesmo se daria sem o envolvimento da vilânica Hydra? Ainda ficaríamos tão prontamente ao lado de Steve Rogers!?

Guerra Civil, de Mark Millar e Steve McNiven, parece esclarecer isto, já havendo utilizado o recurso do "embate de heróis" antes de Injustice, e de uma maneira ainda mais interessante. As linhas de frente encabeçadas pelo Homem de Ferro (defensor e ativista do alistamento e registro de todos os heróis pelo Estado, lhes sendo reconhecido, inclusive, diversos direitos trabalhistas e de previdência) e pelo Capitão América (que se recusa, através da defesa criminosa da "identidade secreta", a equivaler a ética do heroísmo com um funcionalismo público). Não há escolhas claras na história (embora pontos específicos da narrativa apontem que a própria história está do lado do Capitão; vale a pena não me delongar muito nisto e produzir um texto só sobre a Guerra Civil numa outra oportunidade).

O mito - e a narrativa super-heroica retoma parte da estilística do mito - não possui um tema ou uma moral. O leitor-ouvinte é um narrador, e o narrador não se resume a um consumidor da história, ou um entendedor de uma temática específica trabalhada pela história. O narrador é a condição sem a qual não há narrativa nem mito, é o seu personagem principal, é a personificação e encarnação privilegiadas da narrativa. O mito personifica e encarna uma experiência.

Em sua análise da 'Gradiva' de Jensen, Freud colocou a poesia ao lado do pensamento: quando um filósofo organiza um problema em conceitos, um poeta já o intuiu de há muito - Marcel Proust personifica o ciúme de Swann por Odette num polvo de um, dois, três, muitos tentáculos; H. P. Lovecraft personifica o medo e a loucura em figuras monstruosas, em deuses de horror tão ou mais antigos que a própria humanidade (é interessante ler Horror em Red Hook e ver que a visão assombrosa do detetive Malone no porão de uma das casas de Robert Suydam não são necessariamente reais, mas figurações do seu medo; ao mesmo tempo, o que vê não é falso, não é simples delírio; o medo é real enquanto experiência do medo, independente dos objetos que o referenciam, a ponto de, no final de sua trajetória, que é o ponto no qual a narrativa se inicia, a simples visão de prédios antigos de tijolos ou de imigrantes lhe causarem acessos de pânico). Os gregos e sua escrita mitologia, neste aspecto, são muito fascinantes: Sócrates, no Fedro de Platão (e este, mesmo sendo o pai da filosofia escrita, possui muito da estilística do mito e da tragédia em seus textos), é incentivado por um daemon a retornar a seu interlocutor e mudar sua opinião anteriormente emitida (o daemon é um espírito mensageiro ou a consciência do indivíduo Sócrates?); na Ilíada de Homero, Aquiles é tomado de ódio por uma ofensa que Agamêmnon lhe ofereceu e, prestes a matar o rei micênico, recua, visto a própria Atena lhe tocar a mão e impedir que desembainhe sua espada (Atena é uma deusa da sabedoria ou a própria prudência do herói em não matar um rei diante de seu exército? A ira de Aquiles também poderia passar por esse crivo. Troia, na Ilíada, é uma cidade caracterizada pelo cerco dos gregos devido ao sequestro de Helena pelo príncipe Páris; daí, é quase imediata a questão: Afrodite é a divindade protetora da cidade no sentido de que uma mulher superpoderosa resolveu patronar esta cidade ou apenas simboliza uma cidade constituída por uma história de amor? O próprio Homero encarna a questão homérica por excelência: é um autor, uma pessoa que realmente existiu, ou é a personificação de uma coletânea minimamente organizada de textos que relatam histórias já conhecidas da tradição oral?).

Se os deuses antigos são personificados, não é porque são, necessariamente, pessoas individuais (realismo ingênuo); não se deve cair, contudo, no outro extremo, o de que a personificação é o símbolo de um conceito ou de uma ideia, um arquétipo (idealismo filosófico). O mesmo para o Superman, o Capitão América, o Batman ou o Homem de Ferro.

A binaridade centenária entre realismo e idealismo é substituída pela realidade das ideias.

A realidade no irreal que o mito e as narrativas super-heroicas trazem é 1) um método de leitura, por instrumentalizar o seu leitor a tomar o texto, qualquer que seja, como pré-significante, pré-conceitual, e não como algo a ser "interpretado", embora também passível de interpretação, 2) uma ontologia, por considerar 'texto' como um fragmento de realidade, podendo tal método ser aplicado a quaisquer aspectos da existência, e 3) uma ética, visto que a postura assumida em se considerar a realidade das ideias, a realidade no irreal, é um oficio em tempo integral, não podendo ser "desligado".

Os super-heróis são reais, de fato, mas apenas quando desenhados à tinta.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Je (ne) suis (pas) Charlie

Pensar é o exercício de legitimar uma vida alheia à vida do senso comum.

O que todos os pensadores tem em comum é o compromisso com uma ética distinta da ética banal e cotidiana; pensar é superar a condição humana. Neste sentido, somos todos devedores de Platão.

Toda a filosofia não passa de uma série de notas de rodapé ao platonismo, diria A. N. Whitehead.

Platão, ao dialogar com a Assembleia ateniense, ou quando desafia o tirano de Siracusa frente a sua corte, instaura uma discursividade longe das performances dos jogos da retórica e da escolha política. A doxa é seu alvo privilegiado - a opinião do homem que diz tudo e nada ao mesmo tempo, que diz o que quer e quando quer, que fala sem vínculo algum com o que foi falado, a opinião de qualquer um e de todo o mundo. A crítica platônica à democracia, antes de cair num elitismo aristocrático, reside aí: não há, na democracia, uma marcação institucional para a verdade e para aquele que a carrega; ou a verdade se dissolve na efervescência dos múltiplos discursos que caracterizam o demos, ou ela toma a forma do escândalo e da impiedade; ou ninguém lhe dará ouvidos ou, lhe dando alguma atenção que seja, acarretará riscos para o sujeito que a enuncia; em todo caso, não há lugar para o dizer-a-verdade na democracia, e democracia, inversamente, se define para o platonismo como a impossibilidade institucional para a prática da verdade.

A parrhésia é, necessariamente e ao mesmo tempo, uma epistéme e uma asebeía.

Esse saber e essa impiedade que caracterizam a prática da verdade é um rompante das possibilidades já estabelecidas e dadas de antemão para a escolha por parte do sujeito democrático. Laques e Nícias, embedidos numa discussão política, dual, sobre a educação dos filhos, jogam a querela para Sócrates: "pra quem vai o seu voto?", perguntam; Sócrates extrapola o jogo da política e se recusa a pactuar com uma discussão posta em termos de voto, de escolhas possíveis. Sócrates, o filósofo, não é o que sabe escolher, não é o que sabe a melhor resposta para o problema colocado, mas é o que, assumindo não saber, se abstém de ocupar um dos lados de uma guerrilha retórica e política, se abstém de jogar inteiramente o jogo binarista das escolhas e se abstém mesmo de pactuar com o modo discursivo do homem comum. Sua função no diálogo é, em especial, operar essa transformação discursiva, mesmo que não se chegue a posição alguma ao cabo da discussão, e principalmente quando não se chega.

Nous sommes Charlie, ainda que nenhum de nós tenha sido alvejado por Kalashnikovs no dia 7 de Janeiro, ainda que nenhum de nós tenha presenciado o fato, ainda que nenhum de nós tenha estado em território francês à época do massacre, ainda que nenhum de nós tenha lido uma página sequer do semanário francês antes de aderir à causa. Se se é ou não, que importa? Qual a relevância da escolha e da adesão a ela? Poucos conheceram o trabalho pregresso do Charlie Hebdo, ou mesmo de alguns dos vitimados, umzinho que seja, no massacre ocorrido em Janeiro; nenhum cartum erótico de Wolinski, nenhuma análise do keynesiano Bernard Maris, nenhum artigo da psicanalista Elsa Cayat, nenhum material, texto, imagem ou que seja foi consultado ou levado em conta pelo partidário que se identifica com isto ou aquilo. O homem de bem, ao se vincular à discussão, também parece se tornar especialista no islamismo e em questões do Oriente Médio, ainda que nunca tenha ouvido falar em Edward Said ou Alain Gresh. O voto já está feito, o jogo do voto já está colocado e a política das escolhas já está estruturada.

Esse batalhão de indivíduos que se identificam com Charlie equivale "não ser Charlie" com "pactuar com o massacre"; na esteira dessas identificações sensório-motoras, todos os islamitas se tornam terroristas, os já marginalizados estrangeiros em territórios franceses passam a ser alvo violento de segregação social, a imprensa livre e a liberdade de exprimir toda e qualquer opinião se tornam prioridade pública e a religião como um todo torna a figurar como força de alienação e signo da ignorância na modernidade.

Tupiniquins escolhem seu lado e se tornam Charlie; passam a se mobilizar apaixonadamente por temas e pautas que, dias antes, ignoravam; exigem extradição dos muçulmanos imigrantes, a suspensão do direito de acesso a políticas públicas por parte dos descendentes islamitas, o reforço do aparato policial no patrulhamento das favelas e zonas habitadas por muçulmanos, a conivência com programas de espionagem que, ora bolas, só querem garantir a segurança do cidadão que nada de ruim tem a esconder.

O soldado compra uma guerra que, assim como todas as guerras, não pertence a ele.

Contra o imediatismo da escolha, é comum um segundo pelotão tomar de assalto o campo de batalha - com a melhor das intenções - para, em seguida, apenas reforçar a política e a retórica dos binarismos. Se o primeiro comando confere a alcunha de terrorista a todo moi que não é Charlie, o segundo pelotão equivale sê-lo com reforçar as relações de exclusão que os islamitas e seus descendentes sofrem em território francês. Há alguma verdade, aí, mas não de todo.

O segundo grupo, o grupo dos que gritam je ne suis pas Charlie, parece bem mais informado (epistéme) e engajado (asebeía) que o seu antípoda, e de fato o é. Tentam entender o atentado, mapear suas origens e relativizá-lo. Os que não são Charlie trazem à baila o terrorismo de Estado sofrido pela Palestina por Israel, o massacre de dezenas de milhares de muçulmanos durante a Guerra do Iraque, a marcha hipócrita de dezenas de dirigentes na Place de la République, a legitimidade da sátira a um grupo social já marginalizado, a prisão - uma semana depois do massacre - do humorista francês Dieudonné M'bala por antissemitismo e apologia ao terrorismo ("papai, por que Charlie Hebdo é liberdade de expressão e não Dieudonné?"), os mal midiatizados atentados do Boko Haram na Nigéria etc.

É de se perguntar, também, por quê não houve manifestações cá no Brasil a despeito de Millôr, mas houve para o hebdomadaire: num humor semelhante, porém menos vulgar, ao do semanário, Millôr brinca sobre a origem de Jesus, filho de Maria com um centurião romano; a CNBB protesta oficialmente e Millôr é despedido do jornal 'O Cruzeiro'.

Ziraldo e Jaguar possuem histórias semelhantes.

Em caso mais recente, os irmãos Lino e Mario Bocchini, ao criarem o 'Falha de São Paulo', blog-sátira do Grupo Folha e do "jornalismo de esgoto" produzido por este, foram processados por criação explícita e intencional de confusão para com o leitor consumidor que, desavisado, poderia confundir o blog com material oficial do Grupo. O juiz conivente (cúmplice?) com a censura condenou os réus a uma multa de 1.000 reais por dia em que o blog esteve online. A única mobilização digna de nota foi um tumblr criado pelos leitores do blog para "impedir que a Folha, com sua liminar absurda, tirasse do ar toda referência a ele; e pra mostrar para quem não conhecia que a reação do jornaleco é completamente despropositada". Je suis Falha?

Os "blogueiros sujos" também se viram desassistidos pela opinião pública em sua própria batalha contra um gigante midiático.

* * *

"Uma tia ninfomaníaca e suas sobrinhas estão de luto por causa da morte de um cachorro. Diretor de famosa rede de TV e seu amigo pilantra fingem que são primos e vão consolá-las" – escreve o Sr. Cloaca, pseudônimo do editor do blog ‘Cloaca News – as últimas do jornalismo de esgoto’, como sinopse ao filme ‘Solar das Taras Proibidas’; abaixo do texto, o vídeo em questão extraído do ‘Youtube’. A piada estava pronta: o nome do ator principal da película pornô é Ali Kamel. O Diretor Geral de Jornalismo e Esporte da Rede Globo, homônimo do ator, mobiliza um processo contra o titular do blog por "campanha difamatória". Oito advogados trabalham no processo. Rodrigo Vianna, do blog ‘O Escrevinhador’, aproveita a tirada do ‘Cloaca News’ e escreve uma série de textos sobre a homonímia, afirmando que "pornográfico, sim, é o jornalismo que Ali Kamel pratica tantas vezes à frente da Globo". Munindo-se de um "furor processório" – termo cunhado por Rodrigo – Kamel (o diretor, não o ator) iniciou ações judiciais contra o Sr. Cloaca, contra o próprio Rodrigo, e mais um punhado de blogueiros empenhados em "difamá-lo" (Luiz Carlos Azenha, do ‘Viomundo’; Marco Aurélio, do ‘Doladodelá’, Luiz Nassif, Paulo Henrique Amorim e outros).

Rodrigo Vianna teoriza que a estratégia de Kamel é o contra-ataque, mas fora do debate público, de conteúdo, como foi iniciado, partindo para a revanche judicial e o sufoco financeiro.

O Sr. Cloaca, acima da coluna lateral de sites amigos do seu, sites "por quem botamos a mão no fogo", dispõe o seu IP – 201.37.94.163 – e, acima do seu IP, uma chamada em letras garrafais: PROCESSE O CLOACA NEWS.

Miguel do Rosário, do blog ‘O Cafezinho’, sugere algum tipo de associação organizada para que os blogueiros progressistas possam se defender de ataques como esse; e coloca que Ali Kamel, o ator, "é que deveria nos processar por compará-lo a um sacripanta".

Somos todos blogueiros sujos?

Mais uma vez, que importa? Qual a relevância da escolha e da adesão pessoal a ela?

O problema do segundo pelotão em sua batalha contra o batalhão do imediatismo é transformar sua epistéme e sua asebeía em performance retórica e política, em mais uma opção a ser escolhida no jogo do voto, criando um intelectual sabichão, um sophos, um sophisté que entendeu as minúcias, detalhes e meandros do jogo da palavra e se resume a bem escolher, a bem falar e a convencer a opinião pública do que considera como mais verdadeiro. O sofista é o maior inimigo do filósofo pois é o seu fac-símile, seu duplo. O essencialismo e a identificação, por vezes, são estratégicos, mas não quando se afiguram como tática única para resistir à mediocridade de uma doxa sem espírito crítico algum.

O massacre no prédio do semanário Charlie, a demissão de Millôr, as perseguições ao Pasquim, o processo dos autores da 'Falha...' e dos blogueiros sujos não são possibilidades de escolha, de aceitação ou de concordância, de repulsa ou de discordância; são acontecimentos. Todas as coisas são, antes de coisas, acontecimentos.

"Que importa escolher?" é uma questão de método. À título de exemplo, o cristianismo.

* * *

Para além do ser ou não ser cristão (com todas as implicações de época que o não-Ser carrega; não-cristão é pagão? é ateu? é judeu? é islamita?), o cristianismo é um acontecimento, e pouco importa - para o acontecimento e para o sujeito que a ele tenta se vincular - se se concorda com o mesmo ou não, se se pactua com o mesmo ou não. Em pleno século I, vários grupos judaicos se reuniam e montavam estratégias de resistência contra o parasitismo de Estado perpetrado por Roma; um desses grupos terroristas, o cristianismo, pensava uma resistência não-militarizada ao poderio romano, já que seu reino, diziam os cristãos, "não é deste mundo".

Quando se considera o cristianismo um acontecimento, pouco importa se, dois mil anos depois, um qualquer brada aos quatro ventos je suis chrétien ou je suis athée. Não se trata de escolher os lados de uma querela historicamente constituída (ser cristão ou ateu? cristão ou pagão?) nem tampouco retomar e tentar reatualizar a sua origem perdida (o "verdadeiro cristianismo"), mas, ao contrário, interpretá-la e reconhecê-la em seu tempo, trazendo instrumentos para a nossa própria prática, nossa própria produção de acontecimentos.

Na mesma esteira, não faz sentido um qualquer dizer-se liberal ou estadista, defensor do livre mercado ou de um estado de bem-estar social; essa questão - sou isso ou aquilo - não faz sentido para a maioria dos sujeitos que com ela se metem. Um ministro ou chefe do Executivo se vê diante de um documento; se pergunta se deve autorizar o financiamento de diversos bancos privados para evitar uma quebra no sistema financeiro ou se deve abster-se, enquanto cargo público, de intervir na economia; o dualismo 'liberal ou estadista' só faz sentido, pragmática e estrategicamente, para ele, e apenas neste momento. A maioria dos demais cidadãos escolherá um ou outro lado da fronteira apenas de maneira performática, sem qualquer implicação ou ganho tanto para a questão quanto para o sujeito que se mete com ela. A este sujeito, abstraído da ação imediata e sem uma caneta em punho para assinar (ou não) um documento, cabe a liberdade para pensar o liberalismo e o estatismo, pensar as condições que os tornam legítimos e, nessa interpretação, sempre relativa (já que se relaciona às condições do próprio sujeito-que-pensa), produzir novos conceitos, novas noções que colem perfeitamente a demandas atuais.

Agostinho lê Platão e produz uma irreversibilidade paradoxal: ao mesmo tempo em que Agostinho, justamente por tentar aproximar o seu tempo do tempo de Platão, por tentar trazê-lo ao tempo presente, cria História, cria aquilo que visava abolir; além disso, nunca mais se lerá Platão do mesmo jeito.

Depois de Tomás de Aquino, jamais se leu Aristóteles do mesmo jeito.

Depois de Descartes, Hegel e Kant, jamais se leu filosofia do mesmo jeito etc.

Cada pensador visa legitimar uma vida diferente da vida e dos esquemas de escolhas atuais, e se tanto diferem entre si nas propostas e decisões tomadas, ao menos nisto concordam: pensar é sempre mais, bem mais, é o ir além.

Interpretar é sempre superar a condição de leitura e entendimento atual e trazê-la para seu próprio tempo, tornando-a potente, ativa, e não mais um simples esmeril, lembrança de museu ou ornamento intelectual.

Chega de doxa; mas chega, também, de um saber e de uma impiedade transformados em simples retórica e performance política.

Pensar é produzir acontecimentos.

domingo, 2 de novembro de 2014

ἴδιώτης

Os gregos são exemplares jogadores e inventores de jogos.

Um desses jogos, o voto, é extremamente divertido e foi inventado a quase 2.500 anos; consiste no seguinte: uma galera chega e apresenta uma questão que é pertinente a todo mundo, mas cujos encaminhamentos não são consensuais; essa galera, então, formaliza esses encaminhamentos no mínimo de propostas possíveis e elege um candidato para verbalizar cada proposta aos demais presentes no parlamento (o lugar no qual os jogadores usavam da fala, da 'parole', para enunciar o jogo e suas regras atuais).

Depois de formalizados os candidatos e suas propostas, a galera decidia em qual proposta iria se vincular.

Por exemplo, digamos que uma outra galera, jogadores de outros jogos que não o do voto, tenha declarado guerra ao pessoal votante; os votantes, daí, se reuniriam e formulariam os encaminhamentos desse problema em duas propostas, minimamente - uma parte da galera acha que é prudente ir para a guerra antes que o inimigo se articule militarmente, enquanto uma outra parte da mesma galera ache mais interessante fortalecer os vínculos diplomáticos com esses estrangeiros e evitar o confrontamento físico, péssimo para ambos os lados. Que fazer, agora? Vota-se. "Levanta a mão quem prefere partir para o pau com esses estrangeiros!". Contabiliza-se. "Levanta a mão quem prefere ficar de boas e trocar uma ideia com esse pessoal de fora!" Nova contabilidade. "Levanta a mão quem prefere não jogar, pelo motivo que seja, o jogo do voto!". Passa-se a régua. A proposta vencedora é aquela que conseguir mobilizar o maior número de votos. E é agora que vem a graça e a diversão do voto.

Antes de jogar, todos fazem um pacto: não importa o "lado" que ganhe, todos os jogadores - sim, todos os jogadores - devem, gostando ou não, sendo a proposta escolhida pelo jogador ou não, vincular-se à proposta vencedora. Não precisa ser uma vinculação afetiva, e nem precisa-se militar pela mesma durante todo o tempo em que vingue (inclusive, militar contra ela através de outros jogos aparentados aos do voto e ao da palavra era incentivado pelos próprios jogadores), mas enquanto a decisão vigorar, estão todos - sim, todos - submetidos ao seu funcionamento.

Se "ir à guerra e lutar pelas batatas" venceu, todos irão à guerra e lutarão pelas batatas, pactuando com isso ou não. Se "ficar de boas e não responder ao chamado de batalha" foi a proposta vencedora, todos deverão ficar na sua e procurar outras alternativas ao perigo estrangeiro que não a guerra. Repito: faz parte do próprio jogo do voto ir contra e continuar lutando contra propostas e candidatos vencedores com os quais o jogador não se vincula, mas deve fazê-lo articulando outros jogos de palavra, de λόγος - não necessariamente o do voto, quase nunca o do voto - mas nunca jogos de força, de constrangimento, de retóricas vazias, enfim, jogos de violência e de poderio, no qual só um, e não muitos, e não todos, e não o todo, sairão ganhando.

O jogo do voto e da palavra levanta e produz, ele mesmo, inumeráveis pepinos - Qual a legitimidade do problema posto nos termos em que está a ser discutido? Qual critério usar para avaliar a vinculação proposta-candidato? Como relacionar a proposta em sua versão ideal e discursiva com a política concreta a ser efetivada? Quem efetivará a política vencedora? Nenhum desses pepinos, porém, é mais danoso em termos gerais que uma política que resolve seus litígios através da força. Numa política de força, o forte é quem ganha. Numa política de palavra, a palavra, e não somente o seu detentor, é que sai ganhando (definir "força" e "palavra" renderia outro texto).

Daí, o idiota (ἴδιώτης) ser tão execrado entre os jogadores gregos.

O idiota, o sujeito individual e privado, é aquele que se abstém de participar do jogo do voto. Não é o que não vota, porém: o sujeito que não o faz não o faz por um motivo, e o enuncia ao não votar (pode não pactuar com a postura do problema no parlamento, pode não se vincular a nenhum dos candidatos enunciando as propostas, pode não pactuar com uma política posta em termos de voto etc., mas sem-querer-querendo também está jogando o jogo da palavra, e enuncia, mesmo que implicitamente, uma postura que exclui o jogo de força e de violência). O idiota não é o que não vota, mas o que votando ou não quer fazer prevalecer seu mundinho individual, e o faz, claro, sem a envergadura do "político da força". Não sabe nem vive o que fala. Nem palavra nem força, mas apenas desvinculação e impostura.

Quando sua vontade e desejo individuais não prevalecem na forma do voto, o idiota quebra o jogo da palavra: diz que não quer mais jogar, que vai sair do país e não mais fazer parte dessa galera, que a votação deve ser refeita, que os votos devem ser recontados, que a galera não sabe jogar o jogo do voto, que parte da galera não sabe jogar o jogo do voto e deve ser retirada do jogo, que - o maior delírio de todos - o jogo da força e da violência deve prevalecer sob a forma de militarismo para que o jogo da palavra seja garantido e valide a sua opinião e tão só a sua opinião. Não suporta outras palavras que não as suas, o idiota. Não suporta a existência de um mundo e de uma existência neste mundo que não as suas.

O interesse pelo jogo do voto e da política da palavra aumentou exponencialmente nos últimos anos entre "a galera", isto é notável. Mas sejamos menos idiotas, por favor. Só isso - e tudo isso - basta para que o jogo possa continuar.

P.S.: o votante-que-votou-no-candidato-vencedor, ao riscar um traço no chão e caçoar do candidato alheio, dizendo que ali é a sua mãe, também está sendo um ἴδιώτης. Numa política da palavra, é a palavra, e só a palavra, que deve prevalecer.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Conectar, representar, falar II

Esse esquema tripartite composto pela fala, pela representação e pela conexão é por demais rico e complexo e, como toda complexidade, levanta mais questionamentos que soluções.

O primeiro fio a ser desemaranhado é a confusão que vincula toda discussão sobre técnica aos seus acessórios tecnológicos, confusão que identifica fala tão-só com a operação ruidosa emitida pela boca de seu sujeito, faz equivaler representação com o significado abstrato de uma realidade concreta grafado numa superfície de inscrição qualquer através de signos convencionados, e entende conexão como o acesso de um armazenador-processador de dados aos dados de outro armazenador-processador. Fala não é (apenas) conversa, canto, fofoca, discurso; representação não é (apenas) escrita, pintura, brasões; e conexão não é (apenas) acesso à internet.

O aumento exponencial das performances dos instrumentos eletrônicos nas últimas décadas, aliado à também exponencial queda dos preços desses produtos, torna o acesso tecnológico um quase sinônimo de inclusão social; no entanto, e mais além, essa crescente naturalização do digital na cultura - assim como a fala e a escrita nos constituem enquanto sujeitos que falam e que leem de há muito - torna opacos os próprios processos sociais que constituem o digital, operando uma transformação de todo o campo problemático que constitui esse cenário em substâncias, instrumentos, práticas, instituições, estados de coisas. Esse processo de reificação do problema nos termos e respostas que o mesmo agencia também se deu e se dá, constantemente, na comunidade oral que a fala suporta e na cultura da representação condicionada pela escrita.

O "pólo tecnológico" e o "pólo social" compõem, juntos, um mesmo campo sociotécnico.

A técnica é, sempre, uma sociotécnica.

Confunde-se o virtual, enquanto um coletivo articulado de proposições, com o real, a sua interface.

Ora, entender a técnica e a tecnologia como simples instrumental é nos colocar numa perspectiva em que o sujeito do conhecimento já está pronto para os atos de escutar, aprender e enunciar a verdade. Equivaler a técnica a suas tecnologias é suspender a prática ascética como condição para o exercício do pensamento e do dizer-a-verdade. 

Para um autor como Pierre Lévy, usuário convicto do esquema tripartite, a abordagem tradicionalista da comunicação – na qual o comunicar teria, como função primeira, a transmissão de informações, o contexto intervindo, apenas, como um auxiliar na interpretação das mensagens dirigidas – deve ser substituída por uma teorização que considere o ato de comunicar como definidor, fundamentalmente, da situação que significa e valora a troca de mensagens; agir e comunicar são sinônimos, sim, mas apenas quando consideramos o contexto como o próprio alvo da comunicação, dos atos-de-comunicação. Dentro de escalas variáveis (pessoas, aparelhos, técnicas, organizações), os atores da comunicação e os elementos das mensagens que emitem (falas, objetos, planejamentos, dispositivos) criam e recriam universos de sentido, mundos de significação.

A estrutura da retórica, da gramática, do hipertexto enfim, não dão conta, tão-só, dos processos comunicativos, mas sobretudo dos processos sociotécnicos. A retórica, a gramática e o hipertexto como metáforas, ou melhor, como analogias, um análogon, para todas as esferas do real que tratem da produção, da distribuição e do consumo de bens e significações.

O segundo fio: pensar que fala, representação e conexão remetem a espaços alheios e paralelos ao espaço real.

São comuns as análises que tomam a internet como sinônima de sua interface digital, a internet como um ciberespaço, e o ciberespaço como um "espaço virtual" entendido como negativo do real; ou então a linguagem, seja da fala seja da escrita, como criadora de um simulacro que duplica a existência em "mundo em si mesmo" e "mundo como representado por nossas faculdades" (um representacionismo, um kantismo vulgar).

O engodo tem a sua razão-de-ser. O internauta, desejoso em aprender um pouco de música, pode facilmente “ter acesso” a muita informação com um e outro mouse click: história dos estilos, organização dos instrumentos numa orquestra moderna, procedimentos para a leitura de pautas, cifragem europeia, luthieria; uma simples busca no Google o apresenta a bibliotecas e compêndios sem fim. Ele pesquisa um manual de teoria musical, lê um artigo sobre o nascimento da noção de harmonia, assiste interpretações históricas no Youtube, faz download de discos diversos, interage com outras pessoas num fórum digital dedicado à música instrumental. Depois disto tudo, quando, numa roda de conversa, o perguntam onde aprendeu sobre, exemplo, as diferenças técnicas e históricas entre o tango e o flamenco, o barroco e o classicismo, o choro e o samba, ou onde ele, outro exemplo, aprendeu a interpretar certa música do cancioneiro popular numa versão mais elaborada, responde: "na internet, oras". E a resposta, embora correta, opera um falso problema através da noção de espaço (o onde da questão).

Pensar a internet como um espaço (ou um conjunto de espaços, de sites) no qual impera a livre produção de conhecimento e o compartilhamento de informações é assumir uma posição que não engendra novidade alguma se não se remodela, com este movimento conceitual, a própria ideia de espacialidade. Afinal, se o internauta aprende japonês com um amigo nipônico (por telefone e Skype) e o perguntam na mesma roda de conversa onde (e quando) o mesmo aprendeu o idioma, seria estranho se se respondesse "no telefone" ou "no Skype" (e ficaria ainda mais clara a impossibilidade de se precisar uma coordenada temporal para a atividade). O telefone e o Skype estruturam, isso sim, a ecologia cognitiva que condiciona o aprendizado do internauta (o análogon desta rede), que não é o aprendizado simples de um organismo, de um eu, mas a atualização dum coletivo em virtualidade, dum campo de imagens numa consciência. Idem para a internet; a noção de internet pensada como um lugar – ou, pior, como um objeto tecnológico – só é válida se se pensar o telefone, a televisão, o rádio e tantas outras tecnologias da informação como outros lugares (o que não faz muito sentido). Se, por insistência, mantém-se a internet como um espaço, é mister considerá-la como um espaço trans-local, um trans-lugar, um espaço-trans-espacial, espaço-entre-espaços, espaço ciborgue, ciber-espaço (aqui, não mais um "espaço virtual"). Logo, o internauta, o sujeito conectado, o ciborgue, é trans-egóico e se identifica com o coletivo articulado de tecnologias que o condiciona.

O mesmo para a fala e para a escrita. 

A fala articula e propicia modos de sociabilização literalmente impensáveis sem a mesma, fazendo o tempo operar numa circular infinita e jogando a memória para fora do corpo orgânico, regulada através de rituais, festas, cânticos, mitos, lendas, parábolas, histórias.

A escrita opera outra torção no tempo, transformando-o numa reta ascendente e progressiva a que comumente chamamos de História, colocando nossa memória e nossos dizeres em tábuas, pergaminhos, paredes, livros; com a impressão da linguagem numa superfície de inscrição solidificada, noções como Verdade ou Lei ou Estado se tornam possíveis (não apenas "mais prováveis"; se tornam de fato possibilidade pensável) e, numa mesma esteira, o nomadismo se estanca, a caça e a coleta cedem lugar à pecuária e à agricultura, e o sedentarismo humano pode se dar. 

Essa redução da técnica às tecnologias que a mesma modula também torna opaca a própria discussão acerca dos instrumentos tecnológicos, já que dentro de um mesmo "registro acessorial" podem estar articuladas realidades muito pouco afins umas às outras. A lalação do bebê, o discurso do político, a oração religiosa, o canto espiritual, o grito de guerra, são todos fala; a escrita rúnica, em sua estrutura e propósito, pouco tem de ver com a cuneiforme que pouco tem de ver com a hierática que pouco tem de ver com a alfabética grega (esta talvez tenha sido a primeira a "fazer o texto falar"); mesmo na esteira desta escrita representativa oriunda dos gregos e dos latinos, é mister separar a escrita do poeta da escrita do romancista da escrita do patrístico da escrita do escolástico da escrita do cientista, e dentro de cada uma dessas escritas, a da poesia, do romance, da espiritualidade, da didática, da ciência etc., temos a manifestação de estilos e mais estilos, e estilo é um modo específico de dobrar a escrita, torcer o seu projeto original, jogar com sua gramática intestina, produzir uma realidade não dada com os elementos textuais conhecidos e reconhecidos, estilizar a escrita é traí-la, mas traí-la como um espião, traí-la sem ser descoberto e, paradoxalmente, criar o novo dentro do conjunto velho e sob a aparência do velho, para dele não ser expulso e nulificado; mesmo criações não-escriturais - como as da pintura, do cinema, da música - também possuem estilos, possuem modos consolidados e modos por vir de forçar suas estruturas de expressão e recolocá-las, sempre e a todo momento.

Assim como as tecnologias digitais, tanto fala quanto escrita recolocam nossa relação com o espaço, o tempo e a memória. Habitamos "realidades virtuais", sim, mas isto desde que começamos a falar: o bebê em seu esforço gaguejante para habitar um mundo que ainda não é seu apenas reatualiza a cena e o esforço de Adão, o primeiro homem a receber o sopro da linguagem e sair do paraíso do puro real. O processo de virtualização - a aparente suspensão do espaço e do tempo ditos "reais" - que tanto creditamos à conexão digital já existe na fala.

O termo "tecnologias do virtual", termo comumente usado para se referir às "tecnologias do digital", está mal aplicado no plano de discussão que estamos colocando, já que o virtual não equivale a um estado específico de coisas, mas a uma "elevação à potência de uma unidade considerada", o seu "complexo problemático", o seu "nó de tendências", seja essa unidade um mobile da Apple ou um canto tribal, um PC ou uma ponta de lança feita de pedra polida, uma pintura modernista ou as pichações de Lascaux.

Indo mais a fundo nessa noção de virtual, vemos que a própria divisão entre oralidade, escrita e internet é uma divisão categorial, estanque, típica da cultura universalizante, generalista e burocrática da representação. Quem a constrói e esquematiza é um sujeito-que-escreve, e só no cenário sociotécnico construído pela escrita essas três instâncias se dão como realidades estanques e independentes; afinal, quem escreve também fala, e quem se conecta o faz lendo e escrevendo; no entanto, é característico da cultura escrita deslegitimar os oralistas e seus modos de sociabilização (chamamo-os de primitivos, selvagens, analfabetos), enquanto a internet recupera um modo de funcionar aberto à instabilidade e à deriva que o projeto universalizante da escrita deixou de lado. 

Fala, representação e conexão só são três coisas distintas, só são três coisas, três objetos ou três estruturas para o sujeito-que-escreve.

Desafiado o problema - isto é, desvincular a lógica da técnica de seu correlato tecnológico e abandonadas as análises sobre a técnica de caráter meramente instrumental ou espacial - está dado um primeiro passo para uma discussão realmente seminal acerca da técnica e da tecnologia. Porém, esse movimento conceitual torna o esquema tripartite de P. Lévy uma abstração universalista que não tem lugar dentro do próprio plano de discussão que o autor construiu.

Falar, representar e conectar apareceram, durante todo o texto, como três lógicas técnicas, três modos de virtualização.

O próprio autor assume que esses blocos estanques não nos permitem distinguir suas especificidades. A disjunção "com ou sem escrita", por exemplo, "mascara o uso de signos pictóricos, já bastante codificados em algumas sociedades paleolíticas (e que portanto são classificadas entre as culturas orais), omite a diferença entre escritas silábicas e alfabéticas, oculta a diversidade dos usos sociais dos textos etc." Não são categorias ontológicas, mas "disjunções úteis", artifícios para chamar a atenção do leitor aos elementos técnicos e às restrições materiais que condicionam o pensamento e as instituições sociais. São espacialidades.

Essa divisão, assim sendo, só faz sentido metodologicamente, é uma divisão com fins meramente didáticos.

Ilusões e necessidades da escrita.

Wittgenstein é quem ensina: deve-se jogar a escada após ter subido por ela.

Abandonemos a noção de espaço e, em seu lugar, coloquemos a noção de espacialidade como centro da discussão, entendida como o estado de coisas atual construído pelas nossas injunções metodológicas. Fala, escrita e internet são três lógicas, mas não três estruturas ontológicas; poderíamos, ao invés, separar o problema em sociedades de prosa e sociedades de poesia e, desta feita, encontrar os modos de racionalidade, de governo e de espiritualidade próprios que compõem e são compostos por cada uma dessas categorias sociotécnicas, sempre artificiais. Delas, recomporíamos um determinado campo virtual que condiciona, sociotecnicamente, esse estado de coisas (mais importante que falar de uma suposta "sociedade da prosa" seria falar de como a prosa, em seu funcionamento, modula políticas, racionalidades e sujeitos específicos; a "sociedade da prosa" pode ser jogada fora, depois disso). A espacialidade, de todo modo, é uma ficção explanatória, mas o modo de tecê-las não é arbitrário.

É aí entra a noção de estilo, em substituição à ideia de um estudo técnico instrumental.

Estilo pode ser entendido como um modo, consolidado ou por vir, de evidenciar, dobrar, levar ao limite e recolocar as formas instituídas da expressão (falada, escrita, pictórica, musical, cinematográfica etc.), ir além do estado de coisas atual e abrir-se para o virtual; o ato de virtualizar uma entidade, diria Lévy, "consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular".

O impressionismo desiste de pincelar o real e afirmar uma lógica representacionista e passa a pintar a própria percepção, a própria impressão do esteta; ao invés do objeto que o olho olha, o impressionista pinta e evidencia o próprio olho, criando não só uma nova espacialidade ("O Impressionismo" como um movimento estético francês do começo do século passado), mas remodelando, com esse ato criador, toda a arte que lhe precedeu. Caravaggio, da Vinci, Rembrandt, Michelangelo, de La Tour e outros passam a ser lidos não mais nos termos que anteriormente colocaram, os de uma pintura que representa as coisas, mas, ao serem remodeladas pelo movimento impressionista, passam a ser estudadas e mesmo diretamente percebidas, assim como um Monet, um Renoir ou um Degas, como pinturas que pintam olhos, olhares, impressões. Após o impressionismo, não olhamos mais para um Velázquez e nos perguntamos, apenas, sobre as técnicas que o pintor usou para bem fotografar a realidade; mas, também: que olho é esse quer representar a realidade? Que olho é esse que representa a realidade deste, e não daquele, jeito?

O estilo é o movimento da espacialidade.

Um não existe sem o outro.

A própria separação estilo-espacialidade é ficcional.

Temos, aí, mais uma ilusão necessária da escrita.

[continua].

domingo, 22 de junho de 2014

Conversemos, mas com argumentos II

Uma pesquisa, publicada final do ano passado pelo Banco Mundial, aponta o SUS como referência internacional na área da Saúde Pública, já que, ao lançar a base jurídica para universalizar o acesso aos serviços, ajuda a constituir e reconhecer a saúde como um direito. Obviamente, o SUS enfrenta diversas dificuldades e desafios - e o próprio trabalho os aborda - como a necessidade de um maior aporte de recursos ao sistema, uma melhoria na sua capacidade gerencial, o próprio aprimoramento técnico dos serviços de saúde e, dando continuidade a empreitadas como o Mais Médicos!, expandir ainda mais a cobertura da atenção primária. De qualquer maneira, o estudo é contundente ao colocar o SUS como responsável pela ampliação do acesso populacional aos serviços básicos de saúde, além da redução maciça da mortalidade infantil nesses pouco mais de 25 anos de SUS.

Desta feita, qual não foi a minha surpresa quando, ao acessar o Facebook, dei de cara com uma matéria do R7 Notícias desprestigiando, genérica e tecnicamente, o sistema de saúde nacional.

A 'desinformação viral', já inerente a essas terras digitais, parece estar se tornando norma com a proximidade das eleições. Resolvo fazer, como de praxe, uma pesquisa pra atestar a veridicidade do enunciado (e "pesquisar" - aí vai uma dica para os "compartilhadores de plantão" - nem me dá muito trabalho; basta jogar as palavras-chave no Google e ficar já nas primeiras páginas de busca do site e voilá...).

O tal do "ranking mundial" é uma pesquisa da Bloomberg, uma empresa sobre "informações do mercado financeiro". A metodologia de ranqueamento ignora a realpolitik de cada um dos sistemas em questão e, para produzir o Índice Bloomberg de Eficiência da Atenção à Saúde, ordena os países de acordo com três indicadores numéricos, 1) a expectativa de vida, 2) o gasto do cidadão em saúde, em proporção ao PIB e 3) o gasto 'per capita' em saúde. O primeiro indicador tem uma relação direta com o Índice, enquanto os dois últimos mantém uma relação inversa com o mesmo.

O brasileiro possui uma média de vida de 73,4 anos e um gasto médio por ano de 1.121 dólares em saúde. Esse gasto, se posto em proporção ao PIB, seria de 9,9%. Todos os dados, e a posição de cada país no ranking total, e a posição de cada país em cada uma dessas variáveis, podem ser encontrados no próprio site do instituto

Nota de rodapé da pesquisa: o levantamento considerou apenas países com mais de 5 milhões de habitantes, com PIB/per capita maior que 5 mil dólares e expectativa de vida maior do que 70 anos. 48 países são escalados nessa brincadeira.

Olho todos os dados dispostos pela própria pesquisa, e vejo que o Brasil fica em último no escore geral (48ª posição). Qual a conclusão direta a que chego? Que o Brasil, a despeito da proposta de universalidade e gratuidade do seu sistema de saúde, tem um gasto privado na saúde (os tais 9,9%) superior aos gastos públicos (que foram de 8,9% do PIB, em 2013; cf. a Nota Técnica n° 012, de 2013, da CONOF/CD); ou seja, o Mercado investe mais em saúde, no Brasil, que o Estado; ou seja, no Brasil a saúde ainda é uma questão de serviços e produtos, e não de direito. O "ou seja" final: o problema do SUS é que ele ainda não se realizou por completo!

Eu, um leigo em Saúde Pública, chego a essas conclusões só através da primeira página de pesquisas do Google e da minha disposição, bem pouquinha, em matutar um instante antes de dizer e partilhar verdades. O que o R7 Notícias, um site "especializado", apresenta: que o "Sistema de saúde brasileiro fica em último lugar em ranking mundial". E ignora a pouca abrangência de um tal Índice ao comentar apenas superficialmente quem são os seis primeiros colocados do campeonato: Hong Kong (?), Singapura (?), Japão (esse, tudo bem), Israel (!?), Espanha e Itália (ambos carcomidos em seus sistemas de bem-estar social devido aos arrouchos da UE). E, destes, TODOS possuem gastos privados em saúde superiores aos do Brasil.

Tirem suas próprias conclusões, contudo, e, mais uma vez, conversemos.