domingo, 13 de dezembro de 2009

Vieira

Vieira é um homem bom. Desses nos quais todo mundo pode confiar e - mais notável ainda! - desses que confiam em todo o mundo. Vieira ama o mundo! Vai à missa todos os domingos, paga o IPVA em dia, resolve sempre seus deveres de casa e, quando o tempo faz uma gracinha e resolve se dar um pouco mais para ele, faz artes muitas com seus poucos amigos. É uma criatura modelo, o Vieira. Platão não inteligeria nada mais ideal. E, por ser ideal, Vieira não era apegado às coisas materiais. Nem um corpo o Vieira tinha! Amava o mundo, é verdade, mas não pertencia a ele. Via-o de cima. E dos lados. Falava "sobre" o mundo. Falava "acerca" do mundo. Mas nunca falava "no" mundo. Ah! Minhas condolências, caros. Esqueci a parte mais importante: Vieira é um cientista! Desses que usam jaleco branco e tudo o mais. Não tinha corpo, o Vieira, mas jaleco ele usava. Era sinal de sabedoria. Ao falar de jaleco - o que lhe dava o engraçado aspecto duma rouba branca flutuante ocupada por um fantasma de ninguém - todas as suas palavras tornavam-se coisas aos homens de boa vontade. Estes, no entanto, eram pobres de espírito. Acreditavam em tudo que Vieira lhes mostrava. Como ninguém lhe falseava o verbo, Vieira estava sempre contente e satisfeito consigo mesmo. Corolário: nunca se questionava. Afinal, tinha um método. Tinha amigos que, ao usar o mesmo método, comprovavam a logicidade de suas proposições. Tinha contatos que, ao incentivar suas produções, propagavam a veracidade de seus discursos. Tinha a massa a seus metafóricos pés que, usando e abusando de seus produtos finais, entrava no jogo produção-consumo das verdades. Palavras feitas coisas! Um dia, apesar de ser noite - lembro porque estava escuro - Vieira tomou posse de mais uma verdade do plano das idéias e a mostrou aos seus confrades cientistas. No entanto, seus amigos não lhe deram bola. Seus contatos não lhe deram crédito. E a massa acabou em pizza. Desolado, Vieira percebeu que estava sem jaleco! Sendo confundido com um corpo - mesmo não possuindo um - não houve vivalma que lhe desse atenção. Percebeu-se um juiz tirânico a ditar retóricas e retóricas aos sem-jaleco. Percebeu que, por ser juiz, tudo era juizo. Por ser um árbitro desse jogo, tudo era arbitrário! Bonito jogo de palavras, este. E, por ser bonito, tentou comunicá-lo aos cientistas - e vestiu o seu melhor jaleco para isso - mas não adiantou muito. Assim como ele, os cientistas não tinham corpos para lhe darem ouvidos. Retirou suas vestes, mas tornou-se invisível. Resolveu, destarte, falar com os outros. Mas os outros estavam interessados em seus próprios assuntos, muito mais materiais que uma especulação transcendente que nem aos cientistas interessava. Vieira caiu de tristeza. E, caindo, machucou-se. E, de tanto se machucar, ganhou um corpo. Abandonou o caminho das nuvens e lançou-se às profundezas da vida. Sua nova ética não lhe permitia pronunciar mais nenhuma palavra. Estavam todas carregadas de moralinas, para ele. Agora, só queria viver! Ver, ouvir, cheirar, tocar, saborear. Teoria era só um balbucio de alguém - alguém de jaleco, ele salientava - sobre alguma experiência que teve. Estudar era apenas lidar com a experiência de outrem. Falar era apenas comunicar o que, de tão sagrado, não deveria ser pronunciado: a vida mesma. Pobre Vieira! Se antes abandonara o mundo e a vida em nome duma pureza linguística, agora abandonava a palavra e os outros em nome duma ética torta e incomunicável. Tornou-se um imoralista cheio de "não-me-toques", o Vieira. Mudou-se das nuvens, terra de todo mundo, para o chão, terra de ninguém! Sozinho, Vieira tropeça e cai, mais uma vez. Põe-se a sangrar e, ao ver seu sangue, chora. No entanto, estava convicto de que a vida deveria ser vivida. Abandonar isto não poderia, assim como o broto não pode retornar a ser semente quando constata a aridez do terreno. Já estava condenado à vida mas, como não tinha talento para a solidão, resolveu falar. Falou, mas não como antes. E os cientistas o escutaram. E os outros corpos também. E todos sentaram ao redor de Vieira para o escutar. Entre tantos, ninguém o compreendia, visto que todos o seguiam! Mas não ficou desolado, desta vez. Sorriu, pois ao menos um e outro dentre a multidão entenderia o seu sermão, pararia de reproduzir as produções de outrem e viveria sua própria história. O mais ético dos mandamentos, para os verdadeiros discípulos de Vieira, é procurá-lo em todos os cantos da estrada. E, caso o encontrem, a ordem é imperiosa: Matem-no! Ou, como o próprio preferiria, não o levem muito a sério...

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Eu e o outro... (revisitado)

Vejam que coisa! Acabo de fechar meu sexto período no curso de Psi, mas desde o período quinto que desejava compartilhar com vocês um trabalho realizado numa disciplina que cursei sobre Análise Institucional. Pois bem! Como o trabalho estava carregado de pessoalidades e implicações, resolvi recortar e apresentar apenas os aspectos teoréticos do mesmo. Resultado: um texto morto - retalhado e costurado! - tentativa profana de construir vida com pedaços avulsos de carne. Dêem uma lida no texto-Frankenstein, saboreiem sua insossidade e o comparem com o texto original que voz apresento agora. Faço um adendo, antes! Uma coisa e outra do que escrevi já não me pertence mais. Foi pensado e escrito noutro comprimento de onda. Mesmo assim, deixo o corpo do texto imaculado, sem cortes, implantes e suturas, desta vez. Um corpo que, mesmo não sendo inteiramente meu, ainda tem um coração seu! Inteiramente seu...

Foi-me incumbida a seguinte tarefa: associar os comentários dos senhores professores, sobre a experiência de estágio no curso de Psicologia da UFS, com o conteúdo de Análise Institucional, lecionado durante a disciplina Psicologia Social II. Enquanto a comissão de estágio proferia conteúdos, pululou na turma um discurso sobre o estágio extra-curricular e as disciplinas eletivas, visto que uma experiência fora da academia não entraria nesta contagem de créditos. Confesso que me senti impelido a suscitar diálogos em sala, mas temendo desgostar os alunos e interromper a retórica dos professores, calei-me.

No entanto, julgo como necessário o desenvolvimento duma tal problemática, sendo justamente este o plano sobre o qual discorrerei. O proferido por alguns – e silenciosamente acatado por muitos – é apenas a ponta atual dum movimento temporal, a forma dada e natural duma força processual e intempestiva. Destarte, caminharemos juntos pela constituição do sujeito moderno, atravessaremos suas implicações mercantis e desembocaremos na apoliticagem e falta de implicação do estudante Psi, nosso ponto de pouso inicial.

Alguns aspectos desse brevíssimo ensaio devem ser trazidos à luz. Como coisa primeira e fundamental a ser dita, acredito que tal registro não foge do que foi pedido como trabalho de conclusão da disciplina, visto que continuo a parear falas da sala de aula com o conteúdo ministrado. Um segundo ponto é que evitarei, ao máximo, academicismos desnecessários, como as citações e referências ou até mesmo capas para o escrito, visando dar um caráter panfletário ao mesmo. Terceira e última instância: falarei sempre como pessoa primeira, como “eu”, como sujeito implicado, só utilizando a insossa linguagem impessoal dos eruditos como possível recurso retórico.

E, já que o “eu” se pronunciou, invoco o discurso cartesiano para fundar nossa discussão. Mas deixo claro que não pretendo atribuir a Descartes a criação do sujeito privado, da individualidade moderna ou do liberalismo. O francês apenas se nos afigura como um representante histórico, um resultante duma rede de tendências, como a alta da razão no Renascimento, o surgimento da imprensa e da leitura privada e os movimentos reformistas e contra-reformistas a valorizarem a interioridade individual.

No Discurso do Método, lemos o registro dum homem renascentista que, submetido a uma profusão de idéias e ideais a brotarem, prefere desacreditar a todas. Cético ao extremo, põe entre parênteses até mesmo a dúvida enquanto método – dúvida sobre a dúvida – dadas a falibilidade dos órgãos dos sentidos, a mutabilidade dos sentimentos ou, até mesmo, a suposta existência duma deidade maligna a nos enganar em todos os nossos juízos. Quando o pirronismo parece colocar Descartes numa seara insuperável, este encontra um fundamento para o conhecimento. Enquanto duvidava, existia ao menos o ato de duvidar e, para esta ação, supôs como necessária a existência dum sujeito pensante. Cogito, ergo sum!

Mudarei um pouco a trajetória, visando uma melhor colocação de nosso problema. Se pensarmos o comércio em termos de troca comunitária, podemos facilmente encontrar em todo agregado social alguma atividade comercial. É por demais comum o excedente de uma família ou clã ser trocado, eventualmente, pelo produzido por outros grupos, seja no medievo, numa aldeia indígena ou em cidades no interior de nosso Brasil.

Esta situação se altera, entretanto, quando a produção não mais intenciona o abastecimento dos feudos, voltando-se não à subsistência mas ao comércio mesmo. Já teríamos, aqui, um fundamento sólido o suficiente para sustentar o cogito cartesiano, visto que cada um procura identificar sua “especialidade” e nela aprofundar-se. Identifica-se com ela! Mas não paremos por aqui. O próprio mercado, enquanto lugar de compra e venda, cria a barganha, na qual o lucro dum torna-se o prejuízo doutro, e cada mercador deve defender seu próprio interesse. Quando todas as relações entre os homens se processam por meio da compra e da venda dum bem ou signo elaborado por particulares, quando – melhor dizendo! – o modelo do mercado é ampliado às demais esferas do relacionamento humano e o modelo do mercador torna-se experiência universal, naturaliza-se uma lógica egotista e individual na qual os interesses de cada um são mais importantes que os interesses do todo!

Antes de fecharmos nosso ciclo, farei breve comentário sobre o sistema de créditos para a aquisição de disciplinas, utilizado em nossas universidades públicas. Seria interessante pensar esse método, que se nos apresenta como supostamente indiferente – ou perigosamente natural! – como um dispositivo estatal para a prevenção contra movimentos instituintes, visto que dispersa o corpo dicente, seja durante um período dado, seja durante o desenrolar do curso em questão.

Voltemos à nossa sala de aula. À minha sala de aula! O ponto que captou minha atenção foi a importância em demasia dada pela turma à contagem de créditos. Antes de pousar por completo neste terreno, exponho o saber seguinte: um curso é feito de disciplinas obrigatórias (aquelas necessárias à formação do profissional, sua aessentia), disciplinas optativas (cursos alternativos à estrutura rígida, mas previamente estabelecidos por um departamento) e disciplinas eletivas (as matérias restantes a serem lecionadas no Campus e que, dentro desta lógica, pouco ou nada interessam à formação do indivíduo). Quando um aluno conclui todas as disciplinas obrigatórias e optativas de seu curso (aí inclusos trabalhos de conclusão de curso e experiências de estágio), o mesmo pode considerar-se graduado. Formado! Não obstante, cada estudante possui um limite de créditos referentes a disciplinas eletivas. Limite este que, caso seja ultrapassado, não entra mais na contagem de créditos. Esclarecendo: a disciplina ainda consta como conteúdo cursado, apenas não “gasta” créditos, no falatório do universitário!

Re-pousando em nossa arena, deixo em explícito os comentários em sala de aula. Os estágios clínicos e institucionais figuram como atividades obrigatórias no currículo de cada estudante Psi, mas um estágio extra-curricular é considerado atividade eletiva. O falso problema apresentado pelos meus colegas: após ultrapassar o limite de créditos eletivos, um estágio além-universidade não entra na contagem dos créditos! Soou-me estranha tal melodia, tanto que custei a acreditar quando vi tantas cabeças meneando positivamente frente a tal ladainha. Ora! Um estágio não institucional daria experiência profissional e pessoal ao estudante, isto quando não lhe garante alguma remuneração! E, dadas tais fortunas, é de se perguntar o porquê do apreço excessivo do universitário para com os números. Ouso apontar a direção.

O homem – no agora! – se fez indivíduo. Livre para defender seu interesse. A sanha do mercador contaminou a relação entre os saberes do mundo, a relação entre este mundo e o homem e o modo como este homem cria laços com outros homens. O Ser humano torna-se sujeito puro, e o estudante, ao crer-se como unidade, pouco liga ou se liga aos movimentos do socius. Para o aluno Psi, o que não compete a sua formação – a formação de si! – não possui valor!

Não lhe importam as precárias condições do Serviço de Psicologia Aplicada, pois ainda não é o seu tempo de estagiar; não lhe interessa uma discussão sobre reforma curricular, contanto que esta não interfira em suas notas; não lhe envolvem experiências fora da universidade, desde que estas acelerem a sua graduação. Os poucos implicados são tomados por arrogantes – metidos e intrometidos – isto quando não recebem a epítome de desajustados e subversivos, de acordo com um vocabulário psicológico tecnicista, experimental e positivista, reedição da verdade neutra e objetiva das revelações. Homens que se constroem fora da pólis, do público e do mundo, entorpecidos por uma interioridade subjetiva e privada que, mesmo sendo a maior riqueza do homem moderno, pouco dá de si para o bem do outro...

Jameson Thiago Farias Silva, aluno do 5º Período de Psicologia

domingo, 29 de novembro de 2009

Será?

Seguro minha onda no terminal rodoviário e não luto por sombra e água fresca. Perder um lugar ao sol pode me dar a sua companhia cá na terra dos homens em pé. Você não chega, entretanto. Torço, então, para que você ainda esteja a esperar seu sempre demorado ônibus no outro terminal de integração. Demorar a chegar em casa é um bom preço a pagar por esperar sua carruagem contigo. Não obstante, seu ponto está vazio de você. No caminho a minha morada, torço para que o acaso me presenteie com algum esbarrão. Distrair-me da caça de ti me oferece a surpresa do encontro. Tristemente, não vejo suas madeixas vistosas balançarem por aí. Chato, isso. O que quer que "isso" queira significar! Será? Será mesmo!? Curioso, "isso"...

domingo, 22 de novembro de 2009

Eu e o outro...

Tento, sempre que posso, falar e escrever como pessoa primeira, como “eu”, como sujeito implicado, só utilizando a insossa linguagem impessoal dos eruditos como possível recurso retórico. E, já que o “eu” se pronunciou, invoco o discurso cartesiano para fundar nossa discussão. Mas deixo claro que não pretendo atribuir a Descartes a criação do sujeito privado, da individualidade moderna ou do liberalismo. O francês apenas se nos afigura como um representante histórico, um resultante duma rede de tendências, como a alta da razão no Renascimento, o surgimento da imprensa e da leitura privada e os movimentos reformistas e contra-reformistas a valorizarem a interioridade individual.

No Discurso do Método, lemos o registro dum homem renascentista que, submetido a uma profusão de idéias e ideais a brotarem, prefere desacreditar a todas. Cético ao extremo, põe entre parênteses até mesmo a dúvida enquanto método – dúvida sobre a dúvida – dadas a falibilidade dos órgãos dos sentidos, a mutabilidade dos sentimentos ou, até mesmo, a suposta existência duma deidade maligna a nos enganar em todos os nossos juízos. Quando o pirronismo parece colocar Descartes numa seara insuperável, este encontra um fundamento para o conhecimento. Enquanto duvidava, existia ao menos o ato de duvidar e, para esta ação, supôs como necessária a existência dum sujeito pensante. Cogito, ergo sum!

Mudarei um pouco a trajetória, visando uma melhor colocação de nosso problema. Se pensarmos o comércio em termos de troca comunitária, podemos facilmente encontrar em todo agregado social alguma atividade comercial. É por demais comum o excedente de uma família ou clã ser trocado, eventualmente, pelo produzido por outros grupos, seja no medievo, numa aldeia indígena ou em cidades no interior de nosso Brasil.

Esta situação se altera, entretanto, quando a produção não mais intenciona o abastecimento dos feudos, voltando-se não à subsistência mas ao comércio mesmo. Já teríamos, aqui, um fundamento sólido o suficiente para sustentar o cogito cartesiano, visto que cada um procura identificar sua “especialidade” e nela aprofundar-se. Identifica-se com ela! Mas não paremos por aqui. O próprio mercado, enquanto lugar de compra e venda, cria a barganha, na qual o lucro dum torna-se o prejuízo doutro, e cada mercador deve defender seu próprio interesse. Quando todas as relações entre os homens se processam por meio da compra e da venda dum bem ou signo elaborado por particulares, quando – melhor dizendo! – o modelo do mercado é ampliado às demais esferas do relacionamento humano e o modelo do mercador torna-se experiência universal, naturaliza-se uma lógica egotista e individual na qual os interesses de cada um são mais importantes que os interesses do todo!

O homem – no agora! – se fez indivíduo. Livre para defender seu interesse. A sanha do mercador contaminou a relação entre os saberes do mundo, a relação entre este mundo e o homem e o modo como este homem cria laços com outros homens. O Ser humano torna-se sujeito puro e, ao crer-se como unidade, pouco liga ou se liga aos movimentos do socius. Os poucos homens implicados são tomados por arrogantes – metidos e intrometidos – isto quando não recebem a epítome de desajustados e subversivos, de acordo com um vocabulário psicológico tecnicista, experimental e positivo, reedição da verdade neutra e objetiva das revelações. Homens que se constroem fora da pólis, do público e do mundo, entorpecidos por uma interioridade subjetiva e privada que, mesmo sendo a maior riqueza do homem moderno, pouco dá de si para o bem do outro...

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A Intuição como Método

Lembro duma agonia que me trespassava o espírito - sim, era mais inquietante do que consigo relatar, mas menos dramática do que estão a imaginar - durante os períodos iniciais do curso de psi. Estudava práticas experimentais e estatística, naquele momento. Daí, encontro o mesmo pensamento, dia desses, ressoando nos versos iniciais duma poesia do Bergson. O menino, inclusive, tomou conta de meu vocabulário, tal qual aquele amigo com quem trocamos trovas, provas e prosas diárias. Canta o filósofo que nossas reflexões brincam com termos e conceitos que não correspondem às articulações do real. Sujeitamo-nos a problemas tais como são formulados pela linguagem. Corolário: dentro da própria pergunta que - previamente - formulamos, já se encontram as possíveis respostas que podem saná-la, respostas coexistentes ao problema colocado. Seja na filosofia especulativa, seja na ciência empírica, sejam em nossas práticas do cotidiano, trata-se mais de encontrar um verdadeiro problema que de resolvê-lo. O conjunto-solução é irmão gêmeo da função-problema e encontra-se coberto, em toda a sua simplicidade, pela complexidade de termos e conceitos da questão. Trocadilha o menino, então, que - posto o problema - resta des-cobrir a resposta.
Coisa bonita de se ver na obra de Bergson é a sua crítica aos falsos problemas. Lembrem de nossa conversa sobre o Zenão. Mudança, movimento e tempo postos em termos de imutabilidade, imobilidade e espacialidade. Zenão põe problemas que emperram, travam, dão bug. Melodia que cai no ritornelo, igual àquelas sonatas do Beethoven "executadas" num celular. Problemas que não levam à lugar algum, visto estarem bem fixados em espaços mal definidos. Igualmente mal colocado é o problema da origem do Ser. Quer o chamemos de matéria original, de razão espiritual, de princípio motor, de Deus ou de qualquer outra palavreta, caímos numa mesma querela. Para esta causa primeira, deve - seguindo a mesma lógica que rege seus consequentes - ter havido uma causa a lhe servir de antecedente. E uma causa da causa. E uma causa da causa da causa. E assim vamos desenrolando o novelho, como um gatinho brincante, até ficarmos totalmente paralisados numa rede caótica de pontos a nos emaranhar. Implícito a este problema está a seguinte crença: o Ser veio preencher um vazio, um nada que preexistia à existência deste Ser mesmo. Antes do Ser, não tinha nada. Ou, dito doutra maneira, antes do ser não tinha "coisa alguma"; ou, refinando ainda mais nosso pensamento, tinha o Nada!
O Nada, neste esquema, preexistia ao Ser como que de direito, sem exigir explicação. A superioridade de Bergson não está na sua inteligência. Ele não resolve o problema! Mas - garoto esperto - ele não o coloca. Sabe que quando se fala em Nada, caminhamos no terreno da pura especulação; lidamos, assim, com uma idéia pura feita para fazer funcionar o problema anteriormente posto. O Nada é só uma miragem, uma idéia, uma palavra. Pensar nestes termos vazios, nos quais o Ser brinda o Nada com a sua chegada seria - usando uma metáfora do próprio - supor que há mais numa garrafa bebida pela metade que numa garrafa cheia, pois nesta última há apenas vinho e, na primeira, vinho e vazio! Outra querela muito semelhante - e igualmente falsa - é a batalha dialógica em cima da Ordem universal e do Caos que o precede. A mesmíssima peça que, embora contracenada com atores outros, mantém os mesmos personagens.
Ambas as ilusões - tanto o Nada quanto o Caos - velam um mesmo erro. O erro de que há menos no vazio e na desordem que no Ser e na Ordem. Se forçarmos a vista só um pouquinho, veremos que há mais "idéias" no vazio que no Ser, na desordem que na Ordem, quando os primeiros representam algum conteúdo intelectual. Dois exemplos podem elucidar tal assertiva: um clássico, do Bergson; e outro meu, vividamente meu. Primeiro, o do menino. Se eu levo um brother para um cômodo de minha casa que ainda não mobiliei, direi a ele que no quarto não tem nada, mesmo sabendo que o ambiente está cheio de ar. E de poeira. E de teias de aranha. E de micróbios. Mas como não é sobre nada disso que sentamos nem é nenhuma dessas coisas que estamos a esperar ou precisar, nada disso conta. Tanto pra ele, quanto pra mim. Agora o meu exemplo, o qual já vivenciei pelos seus dois gumes. O professor que formula uma questão para seus alunos! Ao colocar um problema a ser resolvido pela classe, o docente espera uma determinada solução, aguardando que determinados pontos sejam cobertos pela escrita do alunado. Caso um respondente entenda a pergunta duma maneira inesperada ao professor, sua resposta será totalmente vazia de sentido a este. Será o mesmo que Nada! E é aí que caímos num outro termo mal-analisado: o possível. Com o desenrolar imprevisível da realidade, tendemos a projetar para o passado - retrospectivamente - aspectos que consideramos no presente. O possível é a miragem do presente no passado!
As questões, para Bergson, devem - antes de qualquer coisa - ser postas em termos temporais, não espaciais. Os conceitos e termos devem colar no objeto, respeitando a sua duração mesma. No entanto, se quisermos analisar a duração, seremos obrigados a entrar no jogo programático da inteligência e a seguir sua natureza. Devemos tentar recompo-la numa multiplicidade de estados de consciência sucessivos. Infelizmente! Sucedâneo de instantes, assim como a flecha de Zenão! Esta sequência de pontos - tão numerosos quanto mais obsessivo for nosso esforço intelectual - forma uma trajetória unitária. É o colar de contas bergsoniano! Essa multiplicidade abstrata e essa unidade abstrata, combinadas, não devem pretender sintetizar a duração num conceito, mas sim nos causar uma tensão bem determinada, nos instalar no ponto exato onde uma intuição pode ser apreendida. Intuição, esta, que é o "de-fora" da inteligência, visão sintética que, para ser objetivada, deve passar pelas analíticas conceituais - ponto por ponto - da linguagem intelectiva.
Se a linguagem, típica da inteligência, reúne todas as diversidades num único pacote conceitual pelas suas similitudes, a intuição tem, como objeto, a diferença. E aqui utilizo - Oh, menino que gosta duma poesia! - mais uma metáfora do Bergson (que ele pede emprestada de Ravaisson, na verdade) para nos indicar a clareira desta floresta negra. Pensemos nas cores do arco-íris, do vermelho ao violeta. Há duas maneiras de se fazer filosofia em cima delas. A primeira - inteligente - é dizer que todas são cores! Laranja, amarelo, verde, azul, anil. Mas faz-se notável que, para obtermos esta idéia geral - o conceito de cor - apagamos do laranja o que faz dele laranja, do anil o que faz dele anil, do verde o que faz dele verde. "Cor" é uma definição negativa, visto que representa o vazio. O trabalho deste filósofo é unificar o plural, extinguindo a luz que diferencia as diferentes nuances e confundindo-as todas na treva do universal. A unificação segunda - intuitiva - lida com os infinitos matizes e os faz convergirem, através duma lente, a um mesmo ponto. Este filósofo busca a luz branca, pura, do qual todos os raios multicolores provêm! Enquanto o primeiro pensa "o que é isto?", o segundo se questiona "o que faz com que isto seja isto e não aquilo?", "de onde provém isto?", "que se faz disto?" ou "como isto é possível?". Bergson, figurado como anti-intelectualista, não nos convida a abandonar nossas razões, mas a abrir os nossos olhos para uma casualidade para além do causal, do fixo e do determinado. Um convite que, embora ainda receoso e deslocado, eu já aceitei. Grita o menino em meus ouvidos: menos conceitos e mais vida!...

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Psicologia Social

Trabalho em grupo. Desde o início, já desgostei da idéia de compartilhar a minha política da escrita com outras mãos que não as minhas. Meu par de mãos reflete muitas cabeças. Conciliá-las com as cabeças outras refletidas noutros pares de mãos é por demais trabalhoso a mim. Sociabilidade cansa! Mas, ainda assim, encaro a demanda. Visito o campo de pesquisa, escrevo diários de bordo, leio um texto sobre práticas metodológicas, resenho um outro sobre genealogia e práticas psi, releio os diários escritos, faço articulações entre a teoria especulativa e a experiência do campo, escrevo tudo em formato de crônica e - voilà! - consigo produzir cinco laudas de rica retórica. Hora de comparar o meu escrito com o de meus convivas: três ou quatro parágrafos preguiçosamente escritos, conceitos bem delimitados erroneamente colocados, comentários de superfície acerca da bibliografia, má apropriação da experiência de campo. Ao final do banquete, eu é que pago a conta com meu crachá de arrogante. Só rindo, mesmo...

domingo, 25 de outubro de 2009

Testamento de Heiligenstadt


A surdez começou a visitá-lo quando tinha seus trinta anos. Trágico, para um pianista. O melhor dentre todos os virtuoses. Com tamanha concorrência, tentou esconder a sua condição. Não obteve muito sucesso. Então, desesperou-se! Pensando em suicídio, escreve uma carta aos irmãos. Deixo que fale por si mesma...

“Aos meus irmãos Karl e Johann
Vós, que me considerais ou me fazeis passar por melancólico, obstinado e misantropo, que injustos sois para comigo! Não conheceis as secretas razões do que se passa. O meu coração e o meu espírito eram inclinados, desde criança, para o doce sentimento da bondade. Sempre estive disposto para grandes trabalhos. Mas imaginai que, de há seis anos para cá, me vejo numa situação desesperada e esta situação foi-se agravando por culpa de médicos incompetentes, enquanto me iludiam com a esperança de uma melhoria para, finalmente, me ver apanhado na perspectiva de um mal duradouro, cuja cura demorará anos e talvez seja impossível. Nascido com um temperamento ardente e activo, sensível aos atractivos da sociedade, depressa me vi obrigado a isolar-me e a deixar passar a minha vida na solidão. Se bem que tivesse querido na altura superar tudo isto, ah!, que impossibilitado me via ao aperceber-me do meu problema no ouvido! Não era possível dizer às pessoas: “Falai mais alto, gritai, pois estou surdo!” Podia revelar a debilidade de um sentido que devia possuir com mais perfeição que qualquer outro, um sentido de que estive dotado num grau tal que certamente poucas pessoas do meu ofício jamais possuíram? Não, não podia. Perdoai-me portanto se me afastei, ainda que quisesse tanto estar convosco. A minha desgraça é duplamente penosa, pois devido a ela vejo-me obrigado a ter de passar por impopular; para mim acabaram-se para sempre os prazeres da sociedade, as conversas interessantes e as relações com as pessoas. Absolutamente sozinho, ou quase. Só na medida em que for absolutamente necessário poderei voltar a ter contacto com a sociedade; devo viver como um maldito. Se me aproximo das pessoas, sinto-me automaticamente atormentado por uma terrível angústia: a de me sujeitar a que adivinhem o meu estado. Assim passei os últimos meses no campo, aconselhado pelo meu competente médico, para cuidar dos meus ouvidos o melhor possível. Ele quase previu a minha situação, se bem que às vezes, movido pelo desejo de companhia, me tenha afastado do caminho que me está destinado. Mas, que humilhação quando alguém ao meu lado ouvia o som de uma flauta ao longe e eu não ouvia nada, ou quando alguém ouvia um pastor cantar e eu não conseguia escutá-lo! Tais circunstâncias enchiam-me de desespero, e faltou pouco para que pusesse fim a minha vida. A arte e só ela me salvou! Parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter transmitido tudo o que sentia nascer em mim, e assim, prolonguei esta vida miserável, com um corpo tão frágil que qualquer mudança brusca basta para acabar com a sua saúde. Paciência! É tudo o que devo fazer agora e assim o faço. Espero manter-me na determinação de esperar até que a cruel morte faça acabar com tanta amargura. Talvez fosse o melhor, ou talvez não, mas sou corajoso. Aos vinte e oito anos, ver-me obrigado a tornar-me filosofo não é agradável e, para um artista, é mais duro do que para outro homem. Meu Deus! Tu que do alto vês o mais fundo do meu ser, sabes que dentro de mim se movem desejos de fazer o bem e de amar o próximo. Vós, homens, se lerdes isto algum dia, pensai que tereis sido injustos comigo e que quem é infeliz se consola procurando alguém semelhante a ele. Apesar de todos os obstáculos da natureza, fiz, no entanto, todo o possível para ser admitido na categoria dos artistas e dos homens de valor. Peço-vos, meus irmãos, assim que eu fechar os olhos, se o professor Schimith ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever a minha moléstia e juntai a isto que aqui escrevo para que o mundo, depois da minha morte, se reconcilie comigo. Ao mesmo tempo, declaro-vos aqui herdeiros da minha pequena fortuna (se é que se pode chamar assim). Reparti-a com honestidade; respeitai-vos e ajudai-vos mutuamente. O que fizestes contra mim, há tempo que vos perdoei, bem o sabeis. A ti, irmão Karl, agradeço-te especialmente o afecto de que me deste provas nos últimos tempos. O meu desejo é que a vossa vida seja melhor e menos triste que a minha; recomendai aos vossos filhos a Virtude, que é a única coisa que nos pode fazer felizes e não o dinheiro, sei-o por experiência; é ela que me conforta na minha aflição; devo-lhe, assim como à arte, o não me ter suicidado. Adeus e conservai-me vossa amizade. Minha gratidão a todos os meus amigos. Mas assim aconteceu. Corro ao encontro da morte com alegria. Se esta, no entanto, chegasse antes de não ter tido tempo de desenvolver todas as minhas faculdades artísticas, fá-lo-ia demasiado depressa. Apesar da infelicidade do meu destino, queria que ainda demorasse. Mas mesmo assim havia de me conformar: a morte não me livraria talvez de um interminável sofrimento? Que venha quando quiser, irei ao seu encontro com alegria. Adeus, e não me esqueçais após a minha morte. Bem o mereço, pois pensei em vós muitas vezes e desejei que fosseis felizes: sede-o."
Heiligenstadt, 6 de Outubro de 1802, Ludwig van Beethoven.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Exame Nacional de Desempenho de Estudantes

Sempre achei bonito o clima das grandes academias do saber. Sócrates nas Praças, Platão nos Templos, Aristóteles em seu Timeu! Sim, gosto de coisas antigas, de nostalgias e de passados, pois eles ainda duram em nós. Penso na atmosfera criada quando uma galera bacana se junta - seja na praça do heleno seja no laboratório de Cartesius - para construirem coisas igualmente bacanas. Produção de conhecimento como produção de vida. Saber como sabor! Pensamento teórico transbordando em ação prática. Ação na pólis. Posicionamento frente ao mundo. A escola do tempo livre. E é nesse aparente entrecortamento de frases curtas que situo minhas intuições: a sintaxe, a geometria analítica, a primeira guerra mundial, a cartografia geográfica, o movimento retilíneo uniforme... Inventos e percepções de uma galera boa que se lança, se joga, se abre.
No ensino médio, lembro-me, estudava todas estas supostas filigranas com o tédio do menino a assistir jornal e futebol com o seu pai. O menino quer ver desenho, pois é isto que toca o seu espírito! Olhava, eu, para o quadro e via nele figurados aspectos de uma vida que não era a minha. Olhava para os lados e via que aquela também não era a vida de meus convivas. De quem era aquela vida, então? Do professor, não era! Ele também parecia querer sair dali o mais rápido que suas pernas possibilitavam. Daí, falaram-me do vestibular...
Como a possibilidade dum ensino superior - atentem! Ensino Superior! - está restrita a poucos, coloquemos estes no coliseu. Deixemo-los a se degladiarem e, aqueles que sobreviverem, recebem a coroa de César. Triste e risível, ao mesmo tempo. Circo sem pão! O ensino de base - ensino Fundamental! Atentem de novo! - fica destinado não a criar fundamentos angulares para os brincantes, mas a prepará-los a um ensino mediador - médio! - entre a infância estulta e a maturidade do trabalhador. O Ensino Fundamental cria bases sólidas para o Ensino Médio que consiste, tão somente, numa preparação para a sanguinolência do vestibular. Não se aprende a criar, inventar e formular; apenas a responder.
O Ministério da Educação precisa de um dispositivo para aferir a qualidade do ensino nas instituições de nível superior, o que ditará o fluxo de verbas a serem destinadas pra cá ou pra lá. Até aí, tranquilo (e sem trema). Mas pensemos o ENADE! Provinha objetiva - de a até e - que quer medir minha sabedoria. Ou - pra amenizar - meu "desempenho". Que é o ENADE senão um retorno ao circuito exposto? Tal qual uma continuação hollywoodiana, a narração permanece idêntica; só os efeitos especiais que dão um caráter de maior grandeza à situação.
O circo volta a lotar. Ao invés de indivíduos, entidades! Agora são instituições que batalham pelos prêmios do Circo e pela coroa dos louros. Assim como a escola mediadora transforma-se em preparação para provas e mercadológicas, o ENADE se figura, a minha pessoa, como abertura para transformar nosso ensino superior, nossa galera bacana, num recinto de preparação de sujeitos-cadetes que não saboreiam conhecimento. Homens que respondem bem, mas não sabem levantar interrogações novas! O Curso do pensamento se fecha, voltado a provinhas, concursos e exigências capitalísticas. E quanto dinheiro que vem e que vai!!! Sejamos palhaços e saibamos tocar fogo nesse circo! Boicotemos! Apóio este grito. Façamos a prova! Também boto fé neste brado. De um lado ou de outro dessa dicotomia ingênua e pueril, o que não aceito é a inocência. Que ninguém ouse lavar as mãos para o sangue derramado. Pensando melhor, digo que até concordo com o ficar-em-cima-do-muro. A visão de lá até que é legal. A política da neutralidade. Recoloco meus termos, então: sejamos esquerdistas, reacionários ou neutros, tanto faz! Mas sabendo e saboreando o que - silenciosamente - estamos fazendo...

sábado, 10 de outubro de 2009

O Pensamento e o Movente - Primeira Parte

Diz-nos Zenão de Eléia. Caso um corpo queira se deslocar de A até B deve, antes disso, chegar até metade deste mesmo trajeto. Mas, para chegar até esta metade, deve - igualmente - percorrer metade desta metade. E, antes de se deslocar este quarto da reta original, tem de andar metade-da-metade-da-metade. E assim até o infinito! Chegar ao final de uma reta, então, é percorrer uma sequência infinita de pontos. Logo, a mudança mostra-se contraditória e impossível, visto que - logicamente - não se pode chegar ao fim do infinito. Numa corrida entre o célere Aquiles e uma tartaruga, exemplificando, na qual Aquiles dá alguns passos de vantagem ao quelônio, o animal sempre venceria pois, para alcançar o ponto no qual se encontra o cascudo réptil, o herói deveria atingir um ponto anterior ao desejado e, antes deste ponto, um outro ponto e assim em diante.
Os sistemas filosóficos, para Bergson, de tão abstratos e imprecisos que são, não se ajustam à nossa realidade. Pensemos, novamente, no móvel que quer sair de A e chegar em B. Lembrem-se da física colegial. A duração do deslocamento se mede pela trajetória do movente, num tempo dado e linear. Este tempo, entretanto, não se relaciona à duração mesma, mas a momentos, a paradas virtuais do tempo. Quando construímos matemáticas e dizemos que um evento X se dará ao final dum tempo t, dizemos - com isto - que teremos contado até o evento um número t de simultaneidades duma mesma categoria.
A consciência, neste esquema, não passa pela "fadiga da espera". Um caso simples: antes que esta quinta-feira última chegasse ao fim, eu comecei a planejar o dia de sexta: iria à universidade, pela manhã, participar dum coletivo de estudos ao qual faço parte; logo após, iria almoçar num restaurante nas proximidades do local; ao término da refeição, eu iria ao mercado municipal produzir dados para uma pesquisa etnográfica; e, depois de uma ou duas horas no mercado, eu voltaria à universidade para assistir um debate entre dois professores. Meu dia estava totalmente delineado e, de fato, aconteceram todas estas coisas que pré-vi e na mesmíssima ordem que as desenhei. No entanto, eu tratei o tempo como se ele já tivesse passado. Defini seus contornos exteriores, mas não posso definir suas matizes interiores. Extrai do mundo o suscetível de repetição e cálculo, ou seja, aquilo que não dura. Essa duração, escamoteada pela ciência, difícil de ser colocada em linguagem, é a nossa vida mesma!
Zenão, a metafísica, a filosofia, a ciência, a linguagem. Todos estudam o tempo e o espaço como coisas de mesma natureza. Troca-se "justaposição" por "sucessão" e está tudo resolvido. Chamamos o tempo, mas é o espaço que sempre responde. Somos tentados a perguntar, então. Se a inteligência descarta a temporalidade real não é porque o nosso entendimento sobre as coisas assim o exige? A inteligência retém posições. Um ponto. Outro ponto. Um terceiro ponto. O que se passa no "entre", no interstício, é ignorado.
A inteligência não liga muito para a mudança. E, caso reclamemos da falta de mobilidade da linguagem espacial da inteligência, esta começa a figurar outros pontos, estrangulando-os em intervalos cada vez menores rumo ao infinitesimal. Coisa natural, visto que nossa ação intelectiva só se dá sobre estes pontos. O que a inteligência tem por movimento é a simples sucessão simultânea de duas paradas virtuais no tempo, vendo o movimento como uma sucessão de posições e o tempo como uma sucessão de instantes. Tal qual um cinematógrafo é o nosso entendimento, um sucedâneo que recompõe artificialmente a duração e a mudança. Mas a duração e a mudança mesmas são uma outra coisa. Não o suceder, mas o fluir. O real não são os estados ao longo da mudança, mas a continuidade da transição. O real é a mudança, progressiva, ininterrupta, indivisível, substancial, que adere em si mesma numa duração que se alonga sem fim.
Quando Zenão assinala as "contradições do movimento e da mudança" ele fala dum movimento e duma mudança como nossa inteligência os representam. Está inaugurada, aí, a metafísica, mas uma metafísica que é simples encadeamento artificial de proposições, um construto hipotético que ultrapassa a experiência móvel e plena. Os "grandes problemas" que a metafísica colocou, para Bergson, não passam de "problemas mal colocados", pois não correspondem ao movimento, à mudança ou ao tempo, mas a pacotes linguístico-conceituais que tomamos por realidade. Torna-se necessária, aqui, uma metafísica que respeite a experiência, a duração. A metafísica de Zenão (e de todos os filósofos e cientistas após ele) nega a coisa mesma que define o tempo: o fluxo da duração. Criação contínua, novidade, imprevisibilidade.
Bergson coloca num mesmo plano tanto o determinista quanto o crente no livre-arbítrio. Este, para Bergson, reduz a sua liberdade à simples escolha de duas os mais opções que se lhe afiguram, como "possibilidades" ansiosas para se "realizar". Admitem, assim, que a estrada está igualmente dada. Não fazem idéia de que a ação nova, inteiramente não pré-existente a si, nem mesmo como possibilidade pura, é que é o ato livre.
A vida interior é como um copo de água açucarada, que faz necessária a espera da dissolução do açúcar na água. Ou como uma melodia, que não pode ter sua duração diminuída sem ser alterada. Na evolução da natureza, da vida, da consciência há constante criatividade. Criação perpétua não de realidades, mas de possibilidades. Quando o músico compõe a sua canção, podemos dizer que a sua obra era possível antes de ser real, se com isto entendemos que não existiam obstáculos a uma tal realização. Mas Bergson cavouca um pouco mais e afirma: no momento em que o músico possui uma idéia da canção que fará, a canção já está pronta!
Nossa lógica de pensamento é retrospectiva. Tende sempre a lançar para o passado, como possibilidade, as realidades atuais. Será por um feliz acaso dizermos, justamente, o que interessará ao historiador do futuro sobre o presente de outrora (seu passado, nosso hoje). Quando o historiador do futuro considerar o nosso presente - e quando nós consideramos nosso passado - procuramos, aí, a explicação de nossos presentes, daquilo que o presente contém de novidade e de diferença em relação a este passado. Desta novidade futura, visto que é criação, não podemos ter idéia alguma. As possibilidades passadas que enxergamos de uma coisa qualquer são miragens da nossa realidade.
Ao encerrar esta primeira parte, Bergson deixa claro que não se trata de renunciar à lógica representativa da inteligência - de natureza espacial e de utilidade social - mas fala da necessidade em torná-la flexível e adaptável à duração, a uma evolução que não é desenvolvimento, mas criação. Kant coloca a "coisa em si" como aquilo que escapa à consciência, visto que, para atingi-la, necessitaríamos duma capacidade intuitiva que, segundo o mesmo, não possuímos. Bergson refuta, dizendo que a inteligência adquiriu hábitos da prática que formam, reformam, deformam a realidade. Organizam-na em arranjos que vêm de nós. Se nós os construímos, podemos deles nos livrar. E, assim, entramos em contato direto com o real. O mal da filosofia, como foi colocado inicialmente, é a sua imprecisão. É a sua lida com objetos de pensamento que não são talhados de acordo com as coisas mesmas. A proposta: afastar os conceitos já prontos, nos proporcionando uma visão direta do real e a construir conceitos novos, levando em consideração as articulações do real e forjados na exata medida de nosso objeto, estudando-os neles mesmos e não na abstração generalizada do espaço...
BERGSON, Henri; O pensamento e o movente - primeira parte; In Bergson: Coleção os Pensadores; Trad. Franklin Leopoldo e Silva; pp.147-166.

Silva

Silva era um homem de coluna reta, mente aguda e coração tranqüilo. Tão tranqüilo que ainda insistia em usar tremas. Com o peso da existência a lhe angustiar, resolve escrever um artigo para sanar todo o sofrimento que desola o homem em sua solidão, os grupos em seu isolamento e a natureza em sua indefensabilidade. Palavra grande, essa! Mas ainda assim escreveu o texto. Não era preguiçoso. Enviou para uma revista de grande circulação e adoraram a sua proposta prática para o mundo salvar. Mas o artigo, para infelicidade de Silva, não foi aceito. Parece que ele ultrapassou o limite de 20.000 caracteres...

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

...sansara

Ele e Ela...

I

Era uma terça-feira como outra qualquer. Inteligência despertou cedo, alongou-se durante alguns minutos, preparou dois ovos mexidos, com pouco sal, acordou dois pães adormecidos e coou um café forte, mas bem doce. Um banho demorado e uma rápida seleção do que vestir seguiram seu banquete frugal. Empilhou cinco ou seis livros, colocou-os debaixo do braço de uma maneira meio desengonçada – como um moleque ainda não acostumado ao corpo – e foi à biblioteca. Até lá, cruzou com um e outro conhecido – visto que é homem de conhecimento – com os quais trocou um rápido aceno de cabeça. Um “bom dia” pra cá, outro pra lá. Como não se imiscuía na vida de ninguém, desejava-lhes coisas. “Bom dia” ao porteiro da biblioteca, “bom dia” aos seus companheiros de estudo, “bom dia” àquela atendente estranha que sempre sorri quando ele vai devolver os cinco ou seis tomos devorados semanalmente. Inteligência é um rapaz deveras garboso, embora pareça não ter sabedoria disto. Olhos grandes e atentos, um rosto fino sempre a carregar uma barba por fazer, passos pesados e lentos. Alto mas não muito, magro mas não muito, bonito mas não muito. De fala grave e pausada, sempre acompanhada duma retórica romana, é capaz de tornar convincente qualquer falácia que quisesse, embora se orgulhe de só anunciar verdades. Chegando às estantes empoeiradas, seleciona outros cinco ou seis livros. Um tratado de ontologia clássica, uma coletânea com poemas do Goethe, um artigo sobre a relatividade restrita, um álbum de fotografias da 2ª guerra e um e outro livro que sempre levava sem saber do que se tratava. Era sua maneira de descobrir coisas novas. O moço era – como o mesmo costuma dizer – “aberto às novidades”. Sai do acervo; ruma, novamente, à atendente estranha que não pára de sorrir enquanto o persegue com o olhar; registra os livros e vai embora. Era, como já disse, uma terça-feira como outra qualquer...

II

Inteligência desceu os degraus que levavam à área verde da biblioteca e rumou ao tronco de carvalho – a árvore do conhecimento, como o chamava – que descansava aos pés duma minúscula lagoa assustadoramente cristalina que lhe refletia o sol. Uma belíssima clareira, aquela. Era seu locus secreto de labor e oração e, como sempre acontece em todas as manhãs de terça-feira, estaria vazio à sua espera. Estaria! Falei bem! Quem era aquela criatura a ocupar seu refúgio não lhe interessava. Bastava pronunciar algumas palavras envoltas em mel e tudo estaria resolvido.

Chegando junto ao velho madeiro, Inteligência pigarreou na intenção de fazer-se notado. E notou a tal criatura que estava prestes a enxotar docemente. Uma mulher-menina, de pele demasiado branca e cabelos de ébano que caiam em ondas sobre seus ombros. Esqueceu de todo o discurso e não conseguiu dirigir-lhe a palavra. Ela virou a cabeça para enxergar a sombra furtiva que se lhe aproximava e fitou Inteligência. Este tentou sondar os olhos pequenos e fugidios da garota, mas não conseguia desvendar-lhes sentido algum. Perdeu o verbo! Sem saber o que fazer, recuou! Deu alguns passos de ré, virou-se rapidamente – quase tropeçando – e começou a debandar, apressado. Depois de cinco ou seis passos meio trôpegos, Inteligência pára como se esbarrasse num muro. Finca seus pés no chão, respira fundo, organiza algumas frases de efeito e volta ao banco improvisado. Mas improviso, ao que parecia, não era muito com ele:

- Er... Bem... É que eu... O que eu queria era... Assim...

- Intuição! - Diz com fala rápida a menina, que fazia um esforço de Hércules para não rir do curioso espetáculo apresentado pelo rapaz. Adorava rir.

- Como!? - devolve o rapaz.

- É como me chamam! Intuição!

- Mas que belo nome! Diferente, é verdade. Mas ainda sim, belo.

- E você!? Seria...?

- Ah, sim. Inteligência eu sou. Já deve ter ouvido falar muito de mim, isto é fato, mas não me custa nada trazer ainda mais esclarecimento para ti, jovem. Sou o douto dos doutos, o sábio dos sábios, o corifeu dos corifeus. Conheço tudo sobre as ciências – incluindo as furadas ciências sociais. Não tenho preconceitos! – sou especialista em todas as artes, visitei templos, sinagogas e pagodes, travei duelos com todos os gigantes da filosofia, construí sistemas e teorias sobre...

Bastou trocar algumas palavras com Inteligência e já percebeu sua engraçada compulsão em sempre fazer a conversa retornar para si. Conteu o riso, mas não conseguiu deixar de imaginar o homem tendo orgasmos ao resolver matemáticas. Estava achando insuportavelmente desinteressante toda aquela ladainha do doutor mas, não querendo magoá-lo, fez cara de quem não entendia muito bem o que ele dizia, na esperança de que o mesmo parasse sua lalação. Funcionou:

- Algum problema, criança? – falou Inteligência.

- Onanismo mental! – replicou ela a primeira coisa que lhe trouxe a memória.

- Como disse!?

- Onanismo. Masturbação. Quebrar uma, entende? Bater p...

- Eu sei muito bem o que é onanismo, mocinha. Não precisa me explicar. Nem fazer gestos a respeito. Eu só... só não consegui observar com clareza e distinção o que você, em verdade, quis dizer.

- Hum... Como posso dizer? – Intuição, num enorme esforço para florear a simplicidade de seu pensamento, soltou! Você parece se perder em suas próprias idéias. Esqueceu que eu estava aqui e começou a falar sozinho. Ou pra todo o Universo. Ou pra ninguém. Dá tudo na mesma.

Inteligência fez cara de desinteresse às colocações da menina quando – em verdade, e isto Intuição sabia – ele não tinha entendido muito bem o que ela lhe jogou. Alguns segundos de silêncio decorreram, mas Inteligência não gostava muito dele. Não gostava de coisas que não lhe diziam nada. Então o quebrou:

- Serei claro, direto e objetivo, minha dama. Todas as terças-feiras, eu desperto cedo, alongo-me durante alguns minutos, preparo dois ovos mexidos, com pouco sal, côo um café forte, mas bem doce, tomo um banho demorado e seleciono, rapidamente, o que vestir após minha frugal refeição. Empilho os cinco ou seis livros que semanalmente retiro da biblioteca,...

A menina não quis atrapalhar o monólogo do bom moço e voltou a sua atividade de antes: olhar o sol e as nuvens que, seguidas umas das outras, formavam um curioso desfile de animaizinhos de pelúcia. O céu projetado na Terra! No entanto, foi interrompida uma vez mais:

- Você está a me escutar, mocinha!?

- Ora! Falava comigo?

- Que incompreensível é você, menina! Não liga para o que os outros dizem?

Desta vez, quis quebrar o nariz do moço. Mas resolveu falar no idioma dele:

- Serei clara, direta e objetiva. Primeiro, pára de falar como um idoso esclerosado! Sou tão ou mais velha que você! Segundo, pára de falar sozinho e vê se escuta o que tenho a te dizer! Terceiro...

Uma longa pausa se fez...

- Pois não?

- Sei lá! Não sou muito boa em esquematizar minhas impressões. Mas – enfim! – seja um pouco mais sucinto. Só peço um pouco mais de simplicidade. Ou, então, cala a boca!

Inteligência se espantou por tão pungente comentário ter sido feito com um sorriso agridoce nos lábios da garota. Além disso, ninguém nunca tinha refutado suas conclusões nem tampouco o mandado ficar em silêncio. Um “cala a boca” lhe era novidade. A presença daquela menina se lhe afigurava como incômoda. Era uma insolente incômoda, esta jovem! Num trabalho de síntese, Inteligência reuniu suas opiniões numa frase relativamente curta. Ei-la:

- Escuta-me! Todas as terças-feiras, eu venho até esta clareira para me deleitar em meus estudos sobre a natureza das coisas. E você, aqui, está a interromper as minhas atividades. Pronto. Falei!

Intuição quis dar-lhe parabéns – sinceramente – pelo seu esforço, mas evitou fazê-lo visando não enfurecer aquele homem que não a compreendia. Disse, com um sorriso desconcertante:

- Posso me levantar e partir se for da sua vontade, mas não sem antes fazer duas colocações.

- Faça-as!

- Ah, vou deixar pra lá palavrinhas bonitas! Esse lance aí de “natureza das coisas”... Coisa de gente pedante, sabe? E...

- Defina pedantismo.

- Hum...

- Posso criar uma definição positiva, se for de seu interesse. Pedante não seria aquele que, rico em saberes, é malquisto por aqueles de pouca profundeza espiritual?

- Gostei não!

- Então, defino o pedante como aquele que, conhecendo a verdadeira natureza das coisas, costuma dar lições aos demais. Impô-las, se você preferir, mas ainda tenho predileção pelo “dar lições”...

- Essa eu achei vaga demais. Deixa ver, aqui... Pedante como aquele que quer se impôr à natureza, mas dela mesma nada sabe... O pedante quer dar lições à natureza! Acho a minha mais legal!

- Está dizendo que nada sei sobre as coisas que falo?

- Não! Só disse que você nada sabe sobre as coisas que acha falar.

E sorriu.

- Mas...

- Ainda não terminei. Faltei falar da segunda parte. A mais importante, por sinal.

- Que seria...?

- O dia de hoje! Hoje é quarta, não terça...

E sorriu, mais uma vez. Levantou-se e foi-se embora...

III

Inteligência chegou em casa, abismado...

Como pôde trocar a Terça pela Quarta!?!?!?

...

IV

Inteligência despertou cedo, alongou-se durante alguns minutos, preparou dois ovos mexidos, com pouco sal, acordou dois pães adormecidos e coou um café forte, mas bem doce. Detalhe. Não era terça-feira! Resolvera ir à biblioteca na quarta, seguindo uma esperança vaga e bruxuleante de encontrar mais uma vez àquela menina. Não conseguia focar-se em seus estudos rotineiros, pois a imagem da outra se fazia presente a todo momento em sua consciência. Sentia-se doer por não conseguir mais se debruçar sobre as letras impressas. Sentia-se doer por não poder compreender àquela menina. Sabia que estava apaixonado, mas não ousou colocar isto em linguagem. Preferia pensar que, encontrando-a novamente e entendendo seus desígnios, a paz seria novamente derramada sobre ele.

Retornando à árvore do conhecimento, lá estava Intuição. Sentada à beira d´água, tinha em mãos um bloco de notas e um lápis. Estava a fazer desenhos e rabiscos da paisagem local, mas nunca terminava algum. Fechou o caderno e deu um sobressalto quando notou a aproximação de Inteligência:

- Nem se incomode que eu já estou de saída...

- Não, não, por favor, fique. Era com você mesma que eu queria tratar.

- Hum... Tá bom, então! Pode falar.

- Er... Bem... É que eu... O que eu queria era...

- Se isto é uma cantada, não está funcionando muito...

Soltou a menina, com um sorriso angélico que não casava com a situação.

- Poderia ser um pouco menos sucinta? Preciso criar a atmosfera adequada para o meu discurso.

- E por que não cria um discurso pra atmosfera de agora? – Aproximou-se do jovem, mantendo uma distância de, no máximo, um palmo entre ambos, e emendou – Diz aí! O que você quer?

- Quero... quero você! O que faço para ter você em meus braços?

- Ter alguém nos braços não é muito diferente do que ter alguém nas mãos...

- Preciso ter você. Necessito da tua companhia. Não tens piedade da minha pessoa?

- Hum... Não muito...

- O que você quer que eu faça para que, juntos, possamos ficar?

- Você poderia parar de falar frases tão salpicadas de vírgulas...

- Posso me esforçar nisso, se você quiser...

- Foi uma piada, querido. Olha só, não quero exigir nada de você.

- Então, você aceita que eu a possua!?

- Hum... Não!

Antes que o silêncio se tornasse constrangedor, Inteligência irrompeu:

- O que é preciso para a nossa união, então?

- Sei lá! Tempo, talvez...

- Tempo...

Inteligência olhou para o lago, viu o sol refletido e desapareceu a passos largos...

V

Uma semana depois, Inteligência retorna à árvore do conhecimento. Intuição não estava lá...

VI

Inteligência acostumou-se a visitar a biblioteca também às quartas-feiras. Sentia-se realizado em sua interioridade última por aprender a manusear, tão habilmente, os dias da semana. Mas ainda não tinha se acostumado àquela atendente a lhe perseguir com as pupilas. Não gostava muito de ser analisado, o homem. Cavoucando fundo em suas lembranças, tentou encontrar algum ponto a servir de nexo àqueles olhares, esperando que alguma Razão cósmica lhe revelasse os Seus desígnios para com ele. Talvez ele estivesse a dever dinheiro à criatura, só podia! Mas era um sujeito muito sério com os números e, disto, ele não se esqueceria.

Desceu os 7 degraus para se chegar à árvore do conhecimento e, surpreso, encontrou lá a moça Intuição. Apressou o passo, numa mistura quase cômica de Largo e Presto. Expressava uma alegria boba ao ver a menina, mas nem tanto. Continuava o seu andamento quando, meio afobado, lhe dirigiu a palavra:

- Onde esteve, estas Quartas-feiras todas!? Vim aqui, ao teu encontro, mas nunca te encontrava! Gostaria de uma resposta tua, menina. Vamos, vamos, responde-me!

- Continua falador como sempre... Vê só... Eu nunca disse que ficaria aqui à te esperar, disse?

Verdade. E, por ser verdade, Inteligência se calou. Ela, piedosa do bom moço, acariciou-lhe a face e o ego.

- Fica assim, não... Olha só, vou te dar uma dica que poucos, acredito, devem conhecer: se você queria se encontrar, se esbarrar, se chocar comigo, por que não me falou? Por que não falou a mim!?

Ele parou e começou a analisar aquele novo princípio geral e categórico que lhe grafava o corpo. Ela riu, embora não estivesse achando a graça daquela cena.

- Façamos o seguinte, minha dama! Disse que queria tempo, certo? Pois é justamente isto que lhe peço. Dá-me um tempo e te construirei as maiores maravilhas da humanidade. Aguarda-me!

- Espera aí! Eu...

Inteligência não deixou a graça falar e foi embora...

VII

O tempo passou. Inteligência, no entanto, não soube precisar quanto. O mundo muito mudou desde o seu último contato com Intuição, mas ele sempre foi alheio aos entes intramundanos. Tinha preparado grandiosos presentes, e já conseguia ver o momento em que os mostraria à graciosa menina. Saboreava seu desjejum. Va-ga-ro-sa-men-te. Nunca, em toda a sua história de cafés da manhã, tinha passado tanto tempo à mesa. Tomou um banho ligeiro, para compensar, mas discompensou ao escolher um vestuário adequado à ocasião. Saltou os degraus da biblioteca e saiu correndo para a árvore do conhecimento. Abobalhado, deu de cara com o tronco vazio. Desolado, ficou imóvel, como em todos os momentos nos quais não sabia se mover. Olhava para um lado e para o outro, maquinalmente. Intuição, que, num banco de madeira bem em frente ao lago via todo aquele débil desenrolar, não riu nem se apiedou do homem. Estava era indignada com a cegueira de Inteligência e, assim, formulou sua primeira lei universal: Inteligência é burro demais! Demais! DEMAIS!!!

Levantou-se para ir embora mas, ao notar seu movimento, o moço exclamou:

- Ah! Aí está você, minha cara!

- Escuta! Eu...

- Vem, vem! Tenho muitas coisas a te mostrar, minha menina!

E interrompendo-a mais uma vez, levou-a velozmente a seu primeiro presente. Um castelo. Um castelo! Suas portas eram de prata, as janelas eram reforçadas com pedras de diamante e as cúpulas, dantescamente altas, eram cobertas com ouro. As torres do casarão eram tão altas que mal se podia ver-lhes as extremidades. Atingiam o céu – pensou Intuição – mas nada tinham de ver com ela, cá na Terra. Inteligência, animado, abriu as portas do castelo para lhe mostrar o interior. Orgulhava-se dos móveis de carvalho, dos baús de esmeraldas, dos vasos de porcelana. Intuição entrou na construção. Achou-a muito grande! E abafada! E detalhada demais!

- Pra quê tudo isso!?

- Para você, minha dama!

- Minha dama, minha cara, minha menina... Não sou sua! E responda o que eu lhe perguntei! Pra quê tudo isso?

- Ora, não gostou do salão? Dos armários? Dos baús? Dos vasos?

- Sei lá! Eles são muito pouco... muito pouco vazios.

- Fale mais sobre.

- É tudo muito legal. Muito bonito, mesmo. Mas... Salões, armários, baús, vasos... É o vazio deles que é importante... Não as coisinhas brilhantes que a gente coloca ao redor. As coisas são o vazio! Cadê o vazio daqui?

Inteligência fez uma pose reflexiva. Mas, não entendendo, passou ao próximo tópico.

- Tudo bem, tudo bem! Venha conhecer, então, seus outros presentes.

Ele tentou puxá-la pelo braço, mas num movimento languidamente fugidio, Intuição passou para o outro lado dele. Foram à porta apontada por ele e entraram. Era uma sala circular, cujas paredes esculpidas em baixo relevo representavam a figura dum homem correndo – vários homens impressos e expressos em posições diferentes, um após outro, davam a sensação de um único homem em movimento – e, no centro, a estátua duma bela mulher. Intuição.

- Quem é esta, aí no meio?

- Você!

- Não! Eu tô aqui, do seu lado! Quem é essa daí?

- Ora, você!

- Enfim... E que sala é essa?

- Este é o meu amor por você. Não vê que estou a correr, desesperadamente, em busca de ti?

Pela primeira vez, ela tinha ficado totalmente indiferente a um comentário de Inteligência. Antes que pudesse exprimir qualquer coisa, o outro saiu da sala e começou a subir as escadarias, rumo aos andares superiores. Chamou-a com um movimento de braço, para que a seguisse. Foram até uma sala de jantar, adornada com um quadro enorme que tomava toda a parede em frente à porta. Era uma pintura da árvore do conhecimento, com ela sentada no velho madeiro e ele de pé a ministrar-lhe alguma lição. A moça ia até falar alguma coisa, mas desistiu. Resolveu sair correndo mas, como desconhecia as arquiteturas construídas por Inteligência, acabou por se perder. Caiu numa biblioteca enorme, cujas estantes abarrotadas de livros e mofo iam até o telhado. Inteligência entrou logo depois.

- Maravilhosa, não é!?

- Não diga que escreveu tudo isso pra mim?

- Não, não! Como poderia eu, ao escrever livros, provar o meu amor? Que comentário estranho, o seu...

- Podemos sair daqui, então?

- Ainda não! Não lhe escrevi um livro mas lhe preparei um poema! Está aqui em algum lugar...

Intuição sorriu gostosamente. Inteligência logo dispersou seu devaneio.

- Aqui está!

E lhe atirou um calhamaço enorme, em papel manteiga.

- Que merda é essa!?!?!?

- Ora, é o meu poema para você. Exatas 1024 estrofes alexandrinas, com rimas ricas em todos os versos e chaves de ouro a fechar todos os parágrafos. A narrativa, deixando minha modéstia de lado, é igualmente fantástica e conta a história de...

A moça notou que havia um piano no canto esquerdo do aposento e foi até lá. Não sabia tocar, mas adorava martelar as coisas. Deixou o menino lá, falando sozinho. Era o que ele estava fazendo desde o começo, afinal. Sentou-se num banquinho circular, levantou a tampa do piano, retirou-lhe o pano vermelho a cobrir-lhe as teclas e começou a vislumbrar aquela imensidão de possibilidades. Inteligência parou a seu lado, alguns segundos depois.

- Gostou do Steinway?

- É o nome do seu piano!?

- É a linhagem dele! O Steinway, em minha relevante opinião, é um dos melhores pianos de cauda já concebidos. Todos os seus instrumentos são milimetricamente mensurados, hermeticamente pesados e, óbvio, são estupidamente caros. O que é bom não dura pouco, mas é – infelizmente – para poucos. Mas... Como sabia que seu próximo presente era uma música?

Intuição ficou esperançosa. Por mais longa e enfadonha que seja a música feita para ela, ainda assim era uma música feita para ela! Com um movimento nos olhos, Inteligência pediu para a moça ceder-lhe o lugar. Ela levantou-se, ansiosa. Ele, então, girou o banco até que este revelasse um receptáculo. Retirou de lá um amontoado de papéis. E entregou a ela.

- Não me diga que...

- Aí está a sua música!

E sorriu amarelamente. Intuição não quis mais ficar naquele espaço que nada tinha de ver com ela e, ligeira, tentou sair da sala. Inteligência foi detê-la e, esbarrando-se, ambos caíram ao chão. Ficaram por alguns segundos caídos no chão, um sobre o outro, como que numa dança imóvel. Intuição estava por cima, desta vez. Fitou-o nos olhos. Inteligência falou-lhe, quase que num sussuro:

- Você... você é pesada!

A menina se levantou. Ajeitou as vestimentas. Fez um aceno de despedida com a cabeça e abandonou a sala. Antes que ela se fosse por completo, Inteligência gritou:

- Eu só queria ter você comigo!!!

E esperou resposta.

- Você sempre me teve, idiota! Sempre me teve ao seu lado. Mas sua grandeza me sombreia e sua retórica doce não me deixa falar. Você nunca olhou pra mim! Eu é que sempre te busquei durante todo o tempo, mas você estava sempre ocupado com suas próprias coisas.

- Mas...

- Mas é o caralho! Você fez um castelo enorme, esculturas, pinturas... Mas e eu!? Onde entro nessa história!? Você diz que me quer a seu lado, mas eu só habito ou suas lembranças empoeiradas ou seu futuro ideal. Você nunca me deixa te dar nada. Nunca me olha direito quando está comigo.

Silêncio.

- Agora, por exemplo! Olhar pra mim, agora, é o melhor presente que você pode me dar. Só agora você pode fazer coisas em mim, pra mim, comigo. Esse é o presente que eu quero. Esse é o presente.

Ele chorou.

Ela sorriu.

Eles riram...

VIII

(...)

IX

Era uma sexta-feira. Inteligência, na biblioteca, recebeu novos olhares e sorrisos da atendente. Ele a olhou de volta. E sorriu...