sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Apelidos e Sistemas Complexos

Pretendia, neste agora, escrever alguma coisa sobre o Ingênuo e o Irônico, dois tipos de Sujeitos (um objeto e um sujeito, melhor dizendo...) que pulularam em minha cabeça qualquer dia desses. Mas, enquanto conversava com uma colega de Goiânia, via msn, acabei bem-colocando a problemática que eu quis suscitar no post Biografias e a Boa Forma, tanto que o presente rabisco pode ser considerado uma continuação da discussão sobre biografias. Enfim...
Pensemos nos apelidos, alcunhas, pseudônimos. Eu, mesmo, possuo diversos. E - não! - não irei revelá-los todos, aqui. Apenas alguns que me são mais queridos, são os mais usados e são os menos constrangedores de serem expostos fora de seu contexto de relações. Usemos, em nossa dialética, os apelidos "James" e "TT", e os nomes de registro "Jameson" e "Thiago".
James pertence à "Máfia", um grupúsculo do curso de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, em sua maioria concentrados na turma de 2007. TT é amigo - muito amigo - de pessoas por demais queridas a ele, todos moradores do Conjunto Médici. Jameson é conhecido formal de algumas pessoas em determinados ambientes. E Thiago é o menino bom e comportado da família. Saltemos.
Aristóteles. Beethoven. Goethe. Einstein. Personalidades muito apreciadas por mim. E todos possuem algo em comum. São complexos. São sistemas por demais complexos! Um sistema complexo - seja na física de Ilya Prigogine ou nas humanidades de Edgar Morin - é toda e qualquer reunião, agregado, grupo que não está submetido a uma única regra, lei, imperativo. Não o carvalho imortal que nos aparece aos olhos, mas o rizoma ignorado por nossa pequenez. Aristóteles era homem de letras, tendo escrito, inclusive, um tratado sobre a Arte Poética; Beethoven, assim como todo melancólico, provavelmente se entregou à suas próprias filosofias sobre o homem e o mundo, tradição deutsch; Goethe era dedicado cientista botânico, tendo delineado, em Da Teoria das Cores, diversas observações sobre a natureza da percepção emocional e psicológica; e Einstein, em seus aprazíveis momentos de solidão meditativa, dedicava-se ao estudo do violino.
Criamos a árvore-filósofo para Aristóteles, a árvore-músico para Beethoven, a árvore-escritor para Goethe e a árvore-físico para Einstein. E ainda lhe damos o título de gênios - aqueles que inspiram e são inspirados - para fortalecer ainda mais o nosso vegetal. Criamos o carvalho eterno para definí-los, ignorando o confuso, profuso e difuso rizoma que subjaz nosso caminhar. Damos a eles, a outros e até a nós uma personalidade, uma máscara [em grego, persona], para bem interpretar neste jogo da alteridade. Cada peça, cada palco, cada cenário, exige uma personalidade, uma personagem, uma máscara independente das feições muitas por detrás do mármore.

Logo, saímos a plantar árvores por aí, sólidos vegetais, sem nos darmos conta de que o solo, o ar, os minerais, o clima, a raiz rizomática e tantas outras contingências mil é que compõem a Metaphyta. A árvore não é! Nem está, como diriam os banalizadores do devir! A árvore é apenas uma microcosmificação da floresta, unidade outra que também é relacionada a uma totalidade maior. Uma máscara maior!

A boa civilização, a alta cultura, o agregado-massa, precisam ser justos, previsíveis e representáveis e, por isso, precisamos de uma atitude, uma personalidade e um jeito de Ser. Curioso é que os nomes, na antiga e atual tradição judaica, representam a manifestação externa de uma realidade essencial interna. Por isso que profetas, apóstolos, discipulos e outros personagens afins sempre trocam de nome quando lhes é ofertado um outro papel a interpretar. Daí os nossos apelidos! Muitos! Surgidos de diversos terrenos, paragens e lugares! Complexo, né!? Mas é a partir daqui que as coisas começam a se simplificar...

domingo, 18 de janeiro de 2009

Aproximações entre a Fenomenologia Husserliana e a Teoria da Forma

“Se a idade de Matusalém me fosse concedida, quase que ousaria entrever a possibilidade de vir ainda a ser um filósofo.” (E. Husserl)

Este texto foi um de meus trabalhos de conclusão de disciplina sobre Fenomenologia, Existencialismo e Gestalt, por isso o caráter formal (logo, impessoal) do mesmo. Lida com alguns conceitos da fenomenologia de Husserl e dos teóricos da forma. Nele, eu esboço (esboço, mesmo!...) o nascimento do movimento fenomenológico e discorro sobre a Gestalttheorie. Após tais referências, faço algumas breves aproximações entre ambos os pensamentos como nos conceitos de Intencionalidade e Campo Perceptivo ou Essência e Forma, apontando suas identidades mas, também, suas contradições e rupturas como o contraste entre o idealismo husserliano e o realismo da Gestalt. Comecemos!

A Fenomenologia e o Princípio de Intencionalidade

Por filosofar, entendemos a busca não dum conhecimento específico, mas de seu fundamento, origem, ponto de partida. Há um certo desejo secreto, no filósofo, de ser o fundador e o findador do conhecimento. O pensamento de Husserl destinou-se, assim, a solucionar a problemática do positivismo, abalado quanto a sua pretensa objetividade e validez universal, resultando numa crise não só filosófica, mas das emergentes ciências humanas, utilitárias do modelo das ciências naturais, e das próprias ciências duras.

As ciências do homem – ou ciências morais, como a elas Husserl se referia – em especial a Psicologia, são por ele censuradas por terem tomado os métodos das ciências da natureza, ignorando a especificidade de seu objeto, lidando com as atividades humanas como se se tratasse duma realidade física. Como conseqüência, reduzimos os princípios diretores do homem a simples fenômenos naturais, o que aniquila toda e qualquer forma de conhecimento. Como, exemplificamos, poderíamos traduzir os princípios da lógica em termos psicológicos, visto que o psicólogo utiliza tais princípios em sua explicação?

Recusando tanto a especulação metafísica quanto a formalidade positivista, Husserl segue um terceiro caminho, ansiando nos colocar no mesmo plano da realidade, das “coisas mesmas”. O fenômeno é lastrado de pensamento. É logos, ao mesmo tempo que fenômeno. Não existe nenhum fato do qual possamos dizer que ele não é nada. Se não nos perguntamos “o que é!?” a um algo qualquer é porque já acreditamos sabê-lo. Todo fenômeno traduz-se pela possibilidade de ser nomeado, designado, essencializado.

Um fato sempre visa um sentido. Destarte, notamos que a intuição das essências não se identifica às factualidades materiais, mas sim ao sentido ideal que lhe atribuímos, como o menino que chama de círculo a gravura levemente oval que suas mãos trêmulas e descompassadas desenharam.

As essências, aqui, enquanto estruturas a priori do pensamento, independem da experiência sensível, embora se manifestem através desta. Mas tal assertiva não é, necessariamente, inovadora; Platão já criara um mundo de idéias condicionante do sentido das coisas. A grande sacada de Husserl foi retirar as essências de sua morada transcendente e inteligível, “retornando às coisas mesmas”. Coloca-as na consciência, pois é como visada de consciência que elas se manifestam a nós.

Deriva-se, daí, o Princípio da Intencionalidade. A consciência é sempre “consciência-de-algum-objeto”, só é consciência estando dirigida, buscando sentido, intencionando coisas. Já os objetos só podem ser nomeados e definidos em relação a um sujeito, sendo sempre “objetos-para-uma-consciência”. Assim sendo, as essências não existem fora do ato de consciência que as visa e as apreende! Igualmente inconcebível é sairmos desta correlação sujeito-objeto – noese e noema – já que, fora deste relacionamento, não há nem um nem outro.

Estudar e descrever as essências da consciência constitui, para Husserl, a fenomenologia. Não a consciência enquanto objeto da psicologia, mas aquela que é intuitivamente constitutiva do mundo.

A Gestalt e o Campo Perceptivo

Ehrenfels, precursor da teoria da forma, exemplifica o que ele chama de Qualidade Formal com a invariabilidade de uma canção transposta em outro tom. O mesmo exemplo serve para ilustrar a noção de Estrutura, definida como uma entidade autônoma de dependências internas.

Na transposição melódica, todos os elementos foram alterados, embora a canção permaneça, para nós, a mesma, devido à invariabilidade da proporção entre tais elementos, e não pela natureza de cada nota, tomada isoladamente. Para os psicólogos da Gestalt, a Forma – como acima foi definida – torna-se molde de explicação para todos os fenômenos psíquicos. Inteligência, memória, expressão, são todas vistas dentro desta lógica perceptual.

O Campo Perceptivo, aqui, não é um agregado desordenado de elementos no qual o sujeito do conhecimento ordena com seu pensamento, mas o próprio campo já é pré-ordenado, per si, em formas distintas e pregnantes. A forma não deve sua estrutura senão a si mesma!

Para os teóricos da forma, a consciência aparece, sim, como elemento organizador, mas ela não é, de modo algum, origem do campo. Um campo que é tanto percepção quanto ação. Percepção, pois função das necessidades orgânicas e suas visadas para o ambiente. Ação, pois função da percepção como movimento adaptativo. Vale salientar! O termo “campo” deve ser entendido não como metáfora, mas como descrição. É no sentido físico – puramente físico – que o campo deve ser compreendido.

Encontros

Se definirmos essência como o modelo invariante dentre toda a diversidade do sensível, será compreensível aliá-la à idéia de forma e de estrutura. Para o próprio Husserl, a essência – sempre idêntica a si mesma – mesmo submetida a todas as variações noemáticas, nos permite captar estes objetos como sendo sempre o mesmo. Entretanto, na essência, o objeto, como sentido ideal, é produzido pela visada de consciência, enquanto a forma da Gestalttheorie seja uma realidade não tão somente psíquica, mas igualmente física ou, até mesmo, puramente física, que se impõe à consciência como pré-existente a toda atividade de análise e síntese.

A Gestalt, holística e dinâmica, concebe um dado fenômeno como determinado por vetores da totalidade do campo. Essa concepção de espaço dinâmico – fisicamente dinâmico! – nos permite definir variáveis passíveis de previsão e controle, dando ao estudo das formas psicológicas o mesmo rigor científico da dinâmica galileana. Para Husserl, no entanto, reduzir a visada de consciência e o princípio de intencionalidade a simples fenômenos psicofísicos seria fazer psicologismo, redução dos princípios diretores do homem a factualidades naturais.

A fenomenologia de Husserl possui caráter notavelmente noético, puxando a correlação consciência-objeto para o lado do sujeito. Sua filosofia é, grosso modo, idealista e transcendental, visto que o mundo se dá pela consciência que o constitui. Já a teoria da forma mostra-se naturalista – noemática – pois é a consciência que vem a ser absorvida e definida pelas estruturas naturais! Husserl foca o sujeito, puro e transcendental, enquanto a Gestalttheorie desenvolve sua retórica em cima das estruturas do objeto. Um vislumbra as idéias. O outro, a matéria. Heidegger acentua, ao contrário, a própria relação consciência-mundo, sendo esta a mesma interpretação de Merleau-Ponty. Mas esta já é uma outra história...

Bibliografia

DARTIGUES, André; O que é a fenomenologia?; Trad. Maria José I. G. de Almeida; 7ª edição; São Paulo; Centauro; s/d.

KÖHLER, Wolfgang; Psicologia da Gestalt; Trad. David Jardim; Belo Horizonte; Itatiaia; 1980.

RIBEIRO, Jorge Ponciano; Gestalt-Terapia: Refazendo um Caminho; São Paulo; Summus; 1985.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Biografias e a Boa Forma

Não gosto de biografias. Ponto! Em verdade, eu até gosto... Só não acredito nelas! Quer dizer... Eu acredito no descrito, no im-presso, no ex-presso pelas biografias, mas é que... Bem, mostrarei algumas micro-narrativas para, depois, iniciarmos nossa discussão:
"A" foi uma criança intuitivamente metódica. Adorava contrariar crendices e descontruir ilusões, sentindo certo prazer em passar por debaixo de escadas ou cruzar gatos pretos. Gostava, sempre, de conhecer as razões de todos os efeitos, embora nunca partilhasse suas dúvidas com ninguém, visto que era desgostoso com as respostas simpórias que lhe davam por ser "só uma criança". Cresceu, assim, em seu mundinho particular, criando sistemas sobre as pessoas, teorias sobre o mundo e planos para o universo, em toda a sua megalomania adolescente. Quando adulto, adentrando no saber acadêmico, encanta-se pelo livre pensar, pelo conhecimento e por sua controvertida história, tornando-se um filósofo da ciência, um epistemólogo."
"B" foi uma criança incrivelmente avoada. Sem aptidões esportivas, notas extraordinárias ou tato social, seus pais o dispuseram, desde tenra idade, a aulas particulares de piano. Demonstrando boa performance para sua idade, "B" foi tido como "talentoso" por sua professora. Quando pré-púbere, desiste do piano, acreditando ser a música uma realização parental, não sua! Um ou mais anos depois, resolve estudar violão - por sua vontade - com um tutor, abandonando as aulas meses depois, mas ainda abraçando seu recém-adquirido gosto pelas melodias. Auto-didaticamente, continua seus estudos no violão e volta a estudar piano. Adentra numa universidade - destino de todo homem bom! - mas abandona sua graduação para dedicar-se inteiramente a música, trabalhando, hoje, como compositor."
"C" foi uma criança notadamente religiosa. Levava muito a sério os discursos de santidade e beatitude, de bondade e de beleza, que o sacerdote proferia. Almejava santidade pois, acreditava, era este o primeiro passo para um mundo melhor. "Devemos sempre buscar a Deus" ou "devemos ser perfeitos em nossas ações" eram freqüentes chavões seus, como um navegante que mira a estrela mais longíncua visando um porto para seguro ficar. Ao adolescer, conhece doutrinas outras e abandona a Igreja, visto que - dizia - o amor de Deus não está restrito a instituições. Torna-se doutor, homem de reconhecimentos, mas troca tais honrarias por uma vida nômade, verdadeiro missionário ecumênico."
"D" foi uma criança exageradamente sentimental. Sensível ao extremo, apaixonava-se com muita facilidade. Gostava de emoções fortes, de situações inesperadas, de calor humano, embora tímido, reservado e solitário. Em juventude, época dos amores, pouco se envolvia com garotas, demasiados eram seus sonhos e devaneios. O que poderia-ter-sido ou o que poderá-ser lhe eram mais importantes que o que agora era. Criativo, de escrita jovial, dedica-se às letras e às humanidades, tornando-se romancista."
Pois bem! Quatro sujeitos. Quatro estórias. Quatro linhas. Vamos deixar as historietas de molho, por alguns instantes, e pegar um novo caminho. Falemos da Gestalt.
Imaginemos um macaco trancafiado numa jaula. Acima de sua cabeça, encontra-se um cacho de bananas, além de seu alcance e, fora da jaula, uma longa vareta. O macaco, aqui, problematiza a realidade (peço perdão aos existencialistas puritanos...): ele quer o cacho de bananas e, neste instante, seu mundo se resume a isto! Seu campo perceptivo começa a se arranjar, des-arranjar, re-arranjar, até que o problema se bem-coloque. O macaco tem (perdão aos essencialistas, desta vez...), assim, uma compreensão interna, um in-sight, e fecha sua estrutura, sistematiza sua boa forma, configura sua Gestalt. Estende sua mão para fora da jaula, pega a vareta e colhe as bananas. Percepção. Percepto e ação!
Para se fechar a Gestalt, precisamos de um intuito, de uma direção, de um sentido. Precisamos de um ponto de chegada, um objetivo subjetivo, para começarmos a caminhar. Organizamos as condições materiais, agrupamos os elementos e, deste modo, criamos uma totalidade maior que suas partes. Damos sentido ao inerte. Produzimos o dado. Significamos a factualidade. Possibilitamos um des-envolvimento, uma cronologia dos momentos únicos, um registro da vida. Bio-grafia! Como se uma vida pudesse ser assim disposta, em trajetos, cursos e causalidades! Nossos quatro sujeitos - creio que os senhores já tenham desconfiado - são a mesma pessoa! São quatro recortes de sua infância, tecidos junto a algumas possibilidades de seu futuro. São o novelo de meu ego, desagregados para compreensão e alinhados para registro. Sou escrito, sou formado, sou posto como resposta aos outros e a mim mesmo. Sou eu. Sou um Eu...

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

O Jogo do Contente

Não existe, creio eu (e como é bom crer...), nenhuma vivalma que não se encante à alegria sardenta da menina Pollyanna! Para os que não a conhecem (e nestes eu não quereria crer...), procurem torná-la presente em suas vidas o mais urgente possível!!! Uma dose deste tônico não faz mal a ninguém; cura-nos até de nós mesmos, acreditam!?
Pollyanna é um romance estadunidense do começo do século passado, e - façam caras e bocas, agora! - alveja crianças e garotas. Sim, pessoas! Estou falando de literatura infanto-juvenil feminina! Li recentemente o romance (e sua primeira continuação, o Pollyanna Moça...) e faço aqui minha segunda confissão! Chorei como um bebê (ou uma criança, ou uma garota...) em partes certas da narrativa. Nem o jovem Wherter ou o velho Fausto conseguiram lágrimas tantas. Coisa de criança, mesmo...
Não vou fazer sinopses. Caso queiram saborear a história, leiam a história mesma. Eu, mesmo, não conseguiria recriar o sorriso de Pollyanna em alguns poucos parágrafos. Leiam a história e deixem que Pollyanna se crie para vocês! Minha persona só saberia exagerar pois, sem exagerar - diria o Padre - eu estaria mentindo! Prefiro, assim, exagerar - gerar para fora, criar para além - à minha própria maneira!
Falemos, em primeiro, da tia Polly. Bondosa, bela e justa, é verdade - como todo bom platônico deve ser - mas igualmente imperativa, casmurra e estreita! Bondade, beleza e justiça da ordem do categórico, do que deve ser feito. Dever, aliás, é palavra séria para Polly Harrington. É seu chavão, sua ladainha litúrgica, seu ritornelo existencial. Um dever organizado, dever do pré-visto, do incontestável, do esperado.
A Srta. Harrington, no entanto, não esperava que sua jovial sobrinha entrasse, in-comodasse e re-comodasse tanto sua vida. E, desde que Pollyanna chegou à mansão dos Harrington, Polly se encontra em situações imprevistas, inusitadas, inesperadas. Portas a bater, janelas abertas, casa iluminada. Tudo por causa de um tal jogo do contente; e deste jogo terei de falar.
O pai de Pollyanna, pastor evangélico, era muito pobre, vivendo e sobrevivendo graças a doações. A menina, que esperava ganhar uma boneca como presente, recebeu um par de muletas. Chorava por estar precisando de uma boneca, não dum par de muletas! Não conseguindo conter lágrimas - pobre Pollyanna - seu pai a consolou de forma criativa. Ela devia ficar contente - disse - justamente por não precisar das muletas. E foi assim que o jogo se deu pela primeira vez.
Toda vez que algo de ruim acontecia à Pollyanna, ela via o que tal tragédia carregava de bom, e ficava contente por isso! Pollyanna vivia o jogo do contente e o ensinava, propagava, demonstrava. Não como dever, mas como poder! Não ensinava com letras, sermões e moralismos afins, embora utilizasse a palavra em demasiado. A menina transbordava o jogo do contente!
O que deve ser salientado na menina, em seu jogo, no romance, não é a tal lição de otimismo que o resumo da contra-capa pretende vender. A novidade do jogo é - justamente! - a novidade. É a abertura dentro do sistema fechado, é o imprevisto dentro das previsões, é a invenção de novas regras para o jogo-de-si! Talvez por isto as crianças nos soem tão irritantes. Fogem a qualquer programação nossa! Pulam por sobre nossas normas, correm de nossos limites, pisam em nossos mandamentos... E riem!!!
Polly Harrington e Pollyanna. Um Platão bem Kantiano e um Sócrates ácido de tão Nietzscheano. A forma da estrutura e a força da entropia. A rotina do relógio e a hora do recreio. A resolução do problema e a traquinação que cria o mesmo. Adoro dualismos, mas acho que já chega. Chega de escrever e representar o jogo do contente. Jogo que é jogo deve ser jogado! É presente, no presente, como presente...