quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Senhorinha


Dança comigo, moça! Que importa se você não tem um par de sapatos!? Posso ficar descalço, se quiser. Pronto. Fiquei. Vem cá, agora. Conta pra mim aqueles segredos que nem você conhece. O quê? Repete, que não entendi. Rouquidão. Deixa eu chegar mais perto. Mais. Um pouco mais. Isso. Fala no ouvido, agora. Um sussuro. Tremo. Continuo a não entender coisa alguma. Mas agora estou com um sorriso estranho, estranho e sem propósito, a estampar minha seriedade. Sorriso bobo. Palavra boba, esta. Bobo. Bobo! Bobo? O signo rachou. Qual o teu encanto, feiticeira? Um pouco de mel nos olhos, uma pitada de açucar nos lábios, algumas palavras sussurradas ao vento. Mágica das mágicas, a tua poesia. O cotidiano se torna o mais fantástico dos mundos. Teu olhar foge, entretanto, e não consigo desvendar-lhes o sabor. Por que? Por que não mira a mim!? Isso, devagar. Fugiu de novo! Olha mais uma vez. Sustenta. Sustenta a dor. Sorrimos. Mas você se vai. E vai para longe. Estico o braço mas não te alcanço. Distante, faço arte. O romântico enumera: uma dança, mas não tenho mais par, deveras; ponho e componho música, mas sem um instrumento para lhe carregar; faço poesia, então, mas não há livro que a suporte; pinto a beleza em você, mas as tintas não bastam; esculpo seu movimento, mas ele morre - inerte - congelado no mármore; um museu de infinitos quartos para guardar tudo isso. 15 minutos de fala e de fama. Os blocos do artista querem construir castelos no espírito de outrem. Não para aprisioná-lo, como se acostumam os estetas. Mas para fazer com que o espírito se perca e se encontre, ria e se desespere, espante-se e compreenda. Blocos sutis, os seus. Arte feita com os pedaços do cotidiano. Pedaços de mim, esmigalhado, esfacelado, disperso. Reunido, em suas mãos. Estou em suas mãos. Pequeninas. Não cabem muitos delírios, nelas. Principalmente os do futuro. Abomina-os. Escondo-os comigo, para não te afugentar. E continuamos no baile. Sem sapatos. E a banda toca, mais uma vez. Dança comigo, moça?

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Três questões sobre ´Seis vezes Dois´

O pessoal da Cahiers du Cinéma, interessado em saber das opiniões dum filósofo sobre os recentes programas do Jean-Luc Godard para a televisão, entrevistou o Gilles Deleuze com este propósito, posto que este muito admirava os trabalhos do diretor. A entrevista saiu na edição de número 271 da revista, em novembro de 1976, e foi publicada no Conversações, uma coletânea de "entrevistas que se estendem por quase vinte anos", e que "não sabemos mais se ainda fazem parte da guerra ou já da paz" (p.7). É com esta entrevista - Três questões sobre Seis vezes Dois (Godard) - que realizamos o exercício de escrita abaixo disposto, à maneira duma resenha.
Deleuze diz de como imagina Godard. Um homem só, sozinho, solitário. Uma solidão povoada, no entanto, mas não de sonhos, projetos, fantasias e sim de coisas e atos e mesmo pessoas. Solidão criativa. Godard-força! Suas perguntas nos espantam, nós espectadores, mas não incomodam a quem são dirigidas. Fala com os delirantes, mas não com as falas do psiquiatra. Nem com as do louco. Nem com as de alguém se fingindo doido. Fala com os operários, mas não com as falas do patrão. Nem com as do próprio operário. Nem com as falas dum intelectual. Nem como um diretor para com os seus atores. Godard gagueja. Não gago da fala, mas gago da própria linguagem. Só se pode ser estrangeiro numa outra lingua mas Godard, diz o Deleuze, é estrangeiro em seu próprio idioma. Antecipa-se a todos, mas não pelo sucesso. Visto sempre estar só, continua sempre em sua própria linha, ativa, quebrada, fugidia, ziguezagueante. Caso único, o Godard, visto não ser capturado pela TV. Não satisfeito em somente mostrar o seu cinema, fez esta série - o Seis vezes Dois, ocupação da TV por seis vezes com dois programas - que em muito toca a própria TV. Entrevistas, mas entrevistas que povoavam a televisão duma outra maneira. Uma outra TV possível.
Pedem ao Deleuze que dê uma resposta mais diretiva, à maneira duma aula, sobre os programas do Godard. Como os percebe, os sente, como explicaria seu entusiasmo para com o programa. Deleuze aceita a encomenda, mas adverte, usando uma fórmula do próprio Godard: "não uma imagem justa, justo uma imagem" (p.53); não a ideologia, mas a prática. E diz o mesmo do filósofo: não idéias justas mas, justo, idéias. Continua. A idéia justa - significativa, dominante, ordeira, estabelecida - sempre verifica algo, ainda que seja algo-por-vir, a revolução! O "justo idéias", enquanto isso, é a gagueira nas idéias, é a questão colocada que faz calar as respostas. Devir-presente.
E, sendo assim, o Deleuze sugere duas idéias que se atravessam, uma a outra, nos programas do Godard. A primeira diz do trabalho, e de como há por demais abstração na noção duma tal "força de trabalho", que se venderia/compraria em condições tais que estabelecem seja uma tal justiça social seja uma injustiça social de base. A pergunta do Godard, mas formulada pelo Deleuze: "o que ao certo se compra e se vende? O que é que alguns estão dispostos a comprar, e outros a vender, que não é forçosamente a mesma coisa?" (p.53). Um soldador vende a sua "força de soldador", mas não a sua força sexual, ao tornar-se amante duma senhorinha. Uma faxineira vende horas de limpeza, mas não o trecho musical que solfeja enquanto faxina. Um relojoeiro - pago pela sua "força relojoeira" - recusa pagamento pelo seu hobby de cineasta amador. Diria o relojoeiro que não quer ser pago pelo seu cinema pois "existe uma grande diferença de amor e de generosidade nesses gestos" (p.54). Mas e o cineasta, pago pelo seu ofício? Não o ama, destarte!? E um fotógrafo, que ora paga o seu modelo e ora é pago por ele? Guattari propôs, num congresso de psicanálise, que os analisandos fossem pagos tanto quanto os analistas, visto que, para além do serviço de escuta do psicanalista, há o trabalho do inconsciente do paciente. Godard pergunta, na mesma onda, qual o porquê de não se pagar aos que assistem TV, visto que as mesmas exercem um verdadeiro serviço público, ali. Todas essas questões - imagens - escanteiam a noção de força de trabalho, posto que esta isola o trabalho de seus próprios produtos, do ato criativo no trabalho, do amor ao trabalho. O trabalho não como uma criação mas como uma força produtora de bens e consumos, força abstrata reprodutora de si mesma.
A segunda idéia diz da informação. Uma professora, ao explicar uma operação matemática ou ensinar ortografia aos seus meninos, transmite informações. Nada mais improvável que isto, para o Deleuze. "Ela manda, dá palavras de ordem. E fornece-se sintaxe às crianças assim como se dá ferramentas aos operários, a fim de que produzam enunciados conformes às significações dominantes" (p.55). A linguagem não como "meio de informação", mas como um "sistema de comando". A informática criou o seguinte esquema: dum lado, a informação pura, máxima; doutro o puro ruído, interferência; entre ambos, a redundância, informação ruidosa. Deleuze, com o Godard, aponta para uma inversão deste esquema: coloca a redundância no topo, transmissão, repetição, ordens, comandos; a informação pura vem abaixo, como o mínimo necessário para que a ordem seja bem recebida; e, mais abaixo, o ruído. O silêncio. A gagueira. O grito. Um algo que escorre por entre os dedos da linguagem. "Falar, mesmo quando se fala de si, é sempre tomar o lugar de alguém, no lugar de quem se pretende falar e a quem se recusa o direito de falar" (p.56). Assim dispondo a situação, coloca Deleuze o problema: como falar sem dar ordens, sem representar algos e alguéns? E como fazer falar os que não tem esse direito, como lhes devolver os sons, e como devolver aos próprios sons seu poder contra o poder, seu valor de luta? "Sem dúvida é isso, estar na própria lingua como um estrangeiro, traçar para a linguagem uma espécie de linha de fuga" (p.56).
Godard questiona duas noções correntes: a Força de Trabalho e a Informação. Mas, Deleuze deixa claro, não se trata de dar informações verdadeiras, nem de pagar bem pela força do trabalho. Grifos do autor. O bom e o verdadeiro apontam para "idéias justas", ele diz, e Godard escreve FALSO do lado delas! Deleuze começa a "bergsoniar", traçando a seguinte história paralela: existem imagens. As coisas são imagens. Mas as imagens não estão no cérebro, na "cabeça". O cérebro, percebamos, é que é mais uma imagem entre tantas outras. As imagens do mundo não cessam de agir, de reagir, de produzir, de consumir entre si. Imagens, coisas, movimento. Idênticos. As imagens, no entanto, possuem um "dentro". São "sujeitos". Entre a ação sofrida e a ação executada (reação) pela imagem, há uma certa defasagem. Essa defasagem é a percepção, é a subtração da imagem do que não interessa. Perceber é subtrair. Existem imagens, ao contrário, que não são sentidas por "dentro", mas como "avesso", imagens capazes de capturar outras imagens, tomando-lhes o poder e centralizando-as. Voz de Hitler, diz o Deleuze! Graças à defasagem, destarte, configuram-se dois movimentos opostos: um, das imagens exteriores, por si mesmas, às percepções; outro, das idéias dominantes, "golpes centrais", às percepções.
Num único ato, Godard desdobra-se em dois. Quer tanto restituir a plenitude das imagens exteriores - fazer com que percebamos não menos que a imagem, mas coincidir a percepção com a imagem mesma - quanto tomar da linguagem o seu poder e fazê-la gaguejar, destilando das idéias "justas" uma e outra gota de, "justo", idéias. O primeiro capítulo do Matéria e Memória - obra-prima do Bergson - trata duma querela semelhante, ao tratar a fotografia como já tirada no interior das próprias coisas e em todos os pontos do espaço. Não que Godard seja bergsoniano ou o renove. Melhor dizer que Godard, em sua própria trajetória para renovar a TV, encontrou pedaços de Bergson pelo caminho. Godard e Bergson. E Deleuze.
O "e", para o Godard - e para a filosofia deleuziana - é o que importa, ao contrário das embotadas discussões sobre o atributo das coisas, sobre sua existência, suas possibilidades e afins, sempre pautadas pelo ser, pelo verbo "ser", pelo "é". O "e" não é uma simples conjunção, uma simples relação, mas arrasta consigo todas as relações, equilibrando-as e desequilibrando-as todas. A gagueira criadora: "e... e... e...", uso estrangeiro da língua, a se opor ao seu uso conforme, dominante, comme il faut, fundado sobre o ser. Diversidade e multiplicidade a destruir as identidades. Godard diz que tudo se divide em dois. Mas quando fala da manhã "e" da tarde, não diz de um ou de outro, nem de um que vira outro, nem dos dois. A multiplicidade não mora nos termos ou em seus conjuntos, por mais detalhados e numerosos que sejam. Reside, isso sim, no "e", de natureza diversa dos elementos e dos conjuntos destes. A força não residiria num ou noutro lado do campo, mas na fronteira, nesta um-outreidade. Godard quer fazer ver as fronteiras, tornar percebido o imperceptível. Uma fronteira que não é nem um nem outro, mas um-outro, o hífen, arrastando a ambos numa evolução em fluxo, na qual não se sabe quem está em cima ou embaixo, quem vai na frente ou atrás, nem qual o destino de um e do outro. Uma política da um-outreidade é uma micropolítica das fronteiras, a combater as macropolíticas dos conjuntos fechados. A fronteira, o hífen, o "e", "onde as imagens tornam-se plenas demais e os sons fortes demais. É o que Godard fez em seis vezes dois: 6 vezes entre os dois, fazer passar e fazer ver esta linha ativa e criadora, arrastar com ela a televisão" (p.61)...
DELEUZE, Gilles. Três questões sobre ´seis vezes dois´; In: Conversações; Trad. Peter Pál Pelbart; Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 51-61.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mercado: pontos e encontros

Breve preâmbulo. Ao vasculhar meu disco rígido, agorinha mesmo, encontrei esse relato que fiz, a respeito duma etnografia. Era parte do trabalho de conclusão da disciplina Psicologia Social III, que cursei a um ano atrás. Muito tempo, verdade. Ignoradas as distâncias temporais, gostaria de compartilhar a experiência - tanto de intervenção quanto de escrita - com os senhores. Pois bem!...
* * *

Enquanto conversávamos – eu e meus parceiros de escrita – sobre o que pesquisaríamos no trabalho final de nossa disciplina, foi sugerido o Mercado Thalez Ferraz como locus de intervenção. Vago demais! A escolha duma temática de pesquisa não equivale ao delineamento do objeto de estudo. Diz Narita (2006) que é preciso recortá-la, defini-la, limitá-la para um bom conduzimento da coleta. Falou-se, então, nas senhorinhas que vendiam ervas na praça central. Começamos a bem colocar o problema, embora pouca ou nenhuma experiência anterior tínhamos em relação a tal domínio. Com nenhum conceito a nortear nossas reflexões, sair a campo mostrou-se ação urgente. Fizemos, logo de começo, uma visita em conjunto ao Mercado. Mas aqui eu deixo registrado apenas minhas andanças pessoais, sendo a primeira destas no dia nove de outubro, dois dias depois da visita coletiva de nossa comitiva de pesquisadores.

Chego ao mercado às 13:30. Carrego o sol sobre minha cabeça, mas é o almoço recém-deglutido que mais pesa em mim. Antes de cercar as senhoras e suas ervas no “Thales Ferraz”, resolvo fazer uma andança por todo o Mercado. Passo por um corredor colorido e perfumado por flores. 10 reais o vaso!”, diz a Dona que me nota olhando para um buquê de jasmins. Sorrio e continuo meu caminhar reto, até dar de vista com gaiolas e jaulas empilhadas umas sobre outras. Passarinhos, filhotes de cachorro e um gato com os olhos quase fechados, como que dopado de tristeza. Olho o animal de perto e ponho alguns dedos dentro da gaiola. Ele olha para minha mão imóvel e acaricia seu rosto nela, meio sonolento.

Saio e sigo. A feira de artesanatos, logo a seguir, me lançou na indecisão. Esquerda? Direita? Vou em frente? Retorno? Nem lembro o que escolhi; só sei que rodei, rodei e rodei, meio perdido naquele lugar cheio de matizes. Percebi que estou sendo olhado pelo pessoal do artesanato. Talvez pensem que sou um “de-fora”, visto estar de alpargata e camisa de botão em pleno mercado municipal! Ou, então, estranharam a minha pessoa ter passado duas ou três vezes pelos mesmos lugares. Andar em círculos é coisa de quem está perdido, mesmo!

Turistas e comerciantes almoçando lado a lado; um barbeiro a aparar os pêlos faciais dos homens com uma senhora hidratando os cabelos das clientes na sala vizinha; crianças correndo para dentro das lojas e velhos tentando pô-los pra fora. Resolvi cair fora, também! Coisas demais pra enxergar.

Saíndo do mercado, dei a volta por fora e reentrei no Thales Ferraz. Cheguei perto duma banquinha de ervas e comecei a manusear algumas folhas estranhas. Uma senhora se aproxima; baixinha, de cabeleira loura, poucos dentes no sorriso e muita experiência nas mãos.

Quer alguma coisa, meu filho?

Er... Não, não! Mas qualquer coisa, eu chamo a senhora!

Então, qualquer coisa, eu tô por aqui...

Entrou em sua banca, voltou com uma laranja e, notando que a fruta estava com manchas na casca, a arremessou longe. Entra na sua lojinha mais uma vez – número “cento-e-alguma-coisa-que-não-lembro-agora” – e retorna com outra laranja. Começa a falar sobre limpeza e o cuidado que tinha com comida.

Pergunto eu sobre algumas daquelas ervas à mostra: um toquinho de madeira que é bom pra coluna, pros ossos e pro sangue”, uns galhos secos que ajudam na filtragem renal e umas bolinhas verdes que são boas contra anemia. Cedro, limpa-pedra, jurubeba. Digo a ela que estou estudando o mercado e que gostaria de ficar conversando um pouco com ela, pra aprender sobre o lugar e ver como é o comércio dali. Ela, sentada e chupando uma laranja, tira uma cesta de jurubebas de cima dum banco e me diz pra sentar e perguntar. Começamos nossa prosa.

Stella Narita (2006) coloca o discurso livre como preparatório para a situação de entrevista, para a utilização de um questionário já estruturado ou para a apreensão de dados quantitativos. No entanto, pela gratuidade com que a Dona começou nossa conversa e pelo voto de confiança que – com este ato – ela me concedeu, resolvi apostar tão somente no discurso livre, querendo não apenas atender meus objetivos de erudito ao confeccionar um relato de pesquisa, mas responder a uma demanda que a senhorinha me expunha no momento de sua fala.

Diz-me ela, D. Maria Luciana, que trabalha por ali a uns 4 anos, e que a banca não era dela, mas da irmã. Olho para o lado e vejo uma senhora de cabelo curto, imponente, uma matrona de avental, a cuidar de artesanatos: cofres, estatuetas, barquinhos, João-bobos a dividirem espaços com folhas, galhos e troncos.

Três mulheres – cariocas, intuo pelo forte sotaque – perguntam entusiasmadíssimas sobre aquelas bolinhas estranhas na banca da D. Maria. Enquanto começam a agenciar seus negócios, dou uma de estrábico e, mantendo um olho na conversa delas, começo a vislumbrar com o olho restante a estante de Maria Luciana. Noto uns pacotinhos estranhos contra mal-olhado. Pergunto sobre eles e ela diz que não acredita nessas coisas mas, como tem gente que acredita, ela vende. Diz que o negócio das ervas é fraco, que o lucro mesmo vem dessas outras coisinhas e do artesanato.

Fala ela que desde que João Alves construiu o mercado de artesanatos, próximo à praia e aos hotéis turísticos, a venda dos produtos caiu consideravelmente, pois o turista – afirma – por ter acesso a uma feira artesanal mais próxima da sua pousada, não visita mais o mercado. A situação, desse jeito, ficava cada vez mais difícil. Coloco, aqui, a Rosane Neves para falar, mas não por academicismo. Essa é uma citação direta, sim, mas a insiro pois a menina trova sobre tais assuntos melhor do que eu poderia cantar. Ao compor versos e odes sobre a construção do mercado de artesanatos, intuo – com o Rosane – que


é a partir do momento em que certos disfuncionamentos de uma sociedade não são mais regulados de uma maneira relativamente informal no tecido dessa sociedade que podemos falar de uma “problematização” do social. As relações sociais informais não são mais suficientes para resolver tais disfuncionamentos. Assistimos então à criação de alguns equipamentos institucionais e, por conseguinte, de um corpo profissional especializado que passará a se ocupar de tais disfuncionamentos (SILVA, 2004, p.14).


Feirantes postos em ordem pela vigilância sanitária. Assistentes sociais transformando o fluxo do local em geometria. Estudantes psi a lidarem com o mercado enquanto problemática. O mercado é asseptizado, com a separação da feira turística de artesanato das filigranas realmente locais. Os ratos são expulsos, mas junto com os ratos parece que vão-se embora, juntamente, as clientelas. O mercado artesanal levantava um problema a ser abordado. Penso em pesquisar a historiografia oficial da construção e reforma dos mercados e pareá-las com a memória dos viventes. Duplo desapontamento: em primeiro, não encontro nenhuma referência – livro, jornal ou website – ao Mercado fora da simples comunicação turística; e por fim, constato meu pouco tempo restante em campo, o que me fez desistir à busca de discursos conflituosos, desarmoniosos e ambíguos. Fica a deixa para uma futura intervenção.

Entre um e outro cliente, pergunto se ela já almoçou; responde que nunca almoça por ali. Fazia sempre uma merenda e nada mais, pois não gostava da comida do mercado. Percebo o Rafael, um de meus companheiros de pesquisa, se aproximando da banca – eram umas 14:15 – e, distintamente, me despeço de D. Maria. Digo que vou dar uma voltinha pelo mercado, mas que ainda volto. Ela diz que tá sempre por ali se eu quisesse fazer mais perguntas. Saio e começo a dar voltas pelo mercado, com o Rafael.

Atravessamos o corredor de flores e comento sobre o gato solitário na gaiola. Arrodeamos a sessão de artesanatos e, sedentos, tomamos um suco. Lembramos uma nota feita em nossa visita anterior, sobre as lojas funcionarem como espaço de transição entre pontos do mercado: só éramos atendidos caso parássemos dentro do ambiente; no caso contrário, seríamos tomados por passantes.

Decidimos visitar o Sr. Albano Franco e as ervas de lá. Uma coisa que estranhei logo ao entrar foi a feira daquele mercado. A beleza medieval das barracas que se adequam aos contornos da rua e dos movimentos foi substituída pela retidão da ordem matemática. A feira tornada instituição! Este sentimento, que já me afetava na parola de Maria Luciana, socou-me ainda mais forte. Ponho o disco da Rosane Neves na vitrola uma vez mais. Continuamos a andar, ao léu, pelo lugar e, mesmo não tendo parado em nenhum vendedor, noto a profusão de produtos que podem ser encontrados por ali. Sementes e grãos, frutas e leguminosas, temperos e ervas.

Mais para dentro, encontramos uma sessão de pescados e, caminhando um pouco mais, encontramos televisores, relógios, calçados, um caixa bancário do Banese e dois guardas que, embora conversassem entre si, pareciam não prestar muita atenção nos transeuntes. Tomamos a saída lateral do mercado e, voltando ao Thales Ferraz, sentamos à sombra do casebre central de informações. Terminada a visita desta sexta-feira, começamos a conversar um pouco sobre nossas experiências.

Minha segunda e última ida ao Mercado deu-se oito dias depois. Sábado, dia dezessete. Estava agitado e de cabeça pesada, o que não me deixou fixar raízes num lugar só. Logo, não colhi discursos. Só andei, andei e andei um pouco mais. Longe de fazer disto um pesar, considero o meu jugo como suave. A Stella (2006) faz uma rápida e sucinta distinção entre o discurso manifesto e o conteúdo latente dos mesmos. Pega emprestada uma aparelhagem psicanalítica para reflexão nossa. Não encontrei ditos nem registrei escritos, mas esbarrei com indizíveis que corriam na vida mesma do mercado. Não conversei com ninguém, deveras, mas minha andança nervosa e incessante me deixou ver aspectos velados pela linguagem.

Desço do ônibus meio cambaleante – eram quase 14:00 – passo pelo calçadão, atravesso as portas fechadas e cruzo olhares com um mendigo que, logo, desvia seu olhar do meu. Continuo num passo apressado e vejo – nas passarelas do Antônio Franco – mesas, mesas e mais mesas a ocuparem o lugar. Homens bebendo, mulheres conversando, casais brigando, senhores com instrumentos, carne do sol, cerveja Pilsen.

Ando um pouco mais apressado e adentro no Thales. Entro e, quando percebo que tem mais gente por metro quadrado do lado de dentro, penso em sair! Mas só penso. Pela inércia, continuo. Vejo a D. Maria, de avental, e até que desejo falar com ela. Minha narradora oficial. Como bem colocou o velho Benjamin, “o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história” (apud Narita, 2006, p.28). Figura rara é o narrador, assim como rara é a D. Maria. Mas, pelo meu estado de ânimo, fico com medo de não conseguir levar adiante uma conversa decente. “Mas que merda! Por que resolvi vir a campo nesse estado!?!?Confesso que quase bradei isto em plena praça central do Mercado. E, claro, é o mesmo que as senhorinhas e o rapaz – meus convivas no campo – pensaram. Mas segurei a minha onda e continuei. Peço, com carinho, que o Senhor Leitor faça o mesmo.

Acalmei um pouco meus humores e meu passo, e fui até a passarela de flores. Tinha tanta gente indo e vindo, tantas mesas alocadas nos arredores, tantas conversas paralelas, perpendiculares, coincidentes, que não consegui sentir o cheiro das flores. Andei, olhando para uma flor e outra mas, como eu não parava os pés, ninguém parava pra me dar atenção. Bola de neve. Antes de entrar na clareira que leva à sessão de artesanatos, cruzei as gaiolas de animais e, pra minha surpresa, meu amigo felino não estava mais lá. Tinha sido vendido? Morreu? Tirou o final de semana de folga? Falar com os carcereiros seria uma boa, mas ânimo pra falar com gente eu não tinha.

Fui à feira de artesanato. Mais gente! Senhoras abarrotavam uma lojinha de tecidos e confecções manuais, homens com violões trocavam acordes, famílias banqueteavam-se nos restaurantes. Tudo muito ruidoso e movimentado, mas falo no bom sentido, desta vez. Todo mundo muito bem posicionado. Estavam à vontade demais para serem turistas que, geralmente, ficam irrequietos girando lá e cá. Como eu!

Ando, passo pela banquinha de livros usados, encaro um senhor que está afinando um violão numa mesa de bar e saio do mercado, em direção ao beco dos cocos. Dou a volta pelo lado de fora, em direção ao “Reino de Ogum” – meio loja, meio terreiro – mas estava fechado. Parece que os santos também tiram folga ao final da semana.

Volto ao ponto de partida e dou de cara com a alegria figurada naquelas pessoas. Uma alegria corriqueira e cotidiana. E, digo de novo, não é a alegria besta e saltitante do turista. É coisa de gente dali. Gente daqui! Gente nossa, ainda que a gente não seja com eles. Aponto institucionalizações, esquadrinhamentos e territorializações. Mas o bonito é que o espaço não consegue aprisionar a história, o assujeitamento não consegue anular a rotina própria daquela gente e, claro, as práticas políticas não conseguem conter a vida. O Mercado transborda vida! Transborda a ação dum povo que, mesmo preso em coordenadas, brincam e fazem seu próprio uso do espaço dado. Um dado que, assim como as coletas da nossa intervenção, é produção constante de nós mesmos...


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Referências Bibliográficas


NARITA, Stella;
Notas de Pesquisa de Campo em Psicologia Social; In: Psicologia & Sociedade; 18 (2); mai./ago. 2006; pp. 25-31.

SILVA, Rosane Neves da; Notas para uma Genealogia da Psicologia Social; In: Psicologia & Sociedade; 16 (2): mai./ago. 2004; pp. 12-19.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A praça e a invenção da razão

No século V, antes do Cristo, a Grécia estava dividida em muitas micro-cidades, sendo Esparta a maior delas, em extensão. Pela fala de François Châtelet (1994), sabemos que todas as cidades compartilham os mesmos deuses, idiomas e traços culturais, embora guerreiem entre si; contudo, a ameaça de invasões bárbaras, pesando constantemente sobre tais cidades, cria condições para o surgimento dum espírito novo a elaborar um novo urbanismo, novas constituições e, mesmo, uma nova modalidade de pensamento, visto as antigas tradições, míticas e religiosas, não bastarem mais para a manutenção das colônias de tais cidades e da relação entre as mesmas. Esse espírito renovador toma conta, principalmente, duma pequenina cidade de menor importância, Atenas, onde surgirá o que, futuramente, chamar-se-á “democracia”, definida pela igualdade de direitos de qualquer cidadão perante a lei, tendo todos os mesmos poderes para intervir e tomar a palavra nas assembléias, decidindo o destino da cidade.

Na antiga aristocracia, as decisões eram tomadas e aplicadas pela nobreza, descendente dos deuses e duma tradição moral e militar. Já na democracia, a palavra é que ganha estatuto nobre e “quem dominar a palavra dominará a cidade” (ibidem, p.16). A democracia ateniense se restringia a seu próprio território, porém. Os bárbaros oriundos da Pérsia, não obstante, invadiram as colônias gregas por duas vezes (490 e 480 a.C.) sendo a mirrada Atenas a cidadela que travou os combates mais decisivos contra tais invasões, em especial na Batalha de Salamina. Atenas, a partir daí, torna-se modelo de governo, e o gosto pela palavra toma conta da Grécia inteira.

Châtelet (1994) usa do termo grego tekhnê, demarcando o sentido duplo a que o mesmo aponta – podendo ser tanto um conhecimento aplicado quanto uma produção original, tanto uma técnica quanto uma arte – para explicar a importância do desenvolvimento da palavra na cidade, acarretando o nascimento dum saber específico: a retórica. Ocupar um lugar numa tal cidade implica, necessariamente, saber falar. Em específico, saber convencer. E, como em geral ocorre, o surgimento duma tekhnê promove o nascimento duma profissão. Platão muito nos fala desses professores da democracia, chamando-os com uma expressão que, em sua escrita, ganhou sentido pejorativo. A retórica, enquanto conhecimento de técnicas específicas, possibilita a existência dum intelectual que sabe falar, dum profissional que domina a linguagem: eis o sofista, pois.

A realidade social grega cria o personagem do sofista, extremamente colado a suas exigências democráticas de saber como convencer o outro. Por outro lado, havia o aristocrata, representante duma tradição gloriosa, deveras, mas envelhecida e não mais articulada às exigências do real. Entre esses dois vetores, podemos situar a aparição duma figura no mínimo curiosa, oriunda – ao contrário dos estrangeiros sofistas – da própria cidade de Atenas. Entra em cena Sócrates que, para o Châtelet (ibidem), é um sofista a seu próprio modo, com a diferença de que não abre escolas nem pede dinheiro aos cidadãos com que trava suas conversas. Fala em nome de seu gênio pessoal, diz.

Sócrates é cidadão ateniense e, como tal, sério cumpridor de seus ofícios na pólis. Sua profissão, no entanto, é falar com seus conterrâneos. Fala por prazer, por lamentar ver seus convivas se entregarem “à imoralidade e ao gosto pelo luxo” (ibidem). Num típico diálogo platônico, podemos ver Sócrates em seus diálogos a desdizer os juízos dos seus interlocutores e desmontar suas argumentações. Fala que, para responder ao que quer que seja, é preciso saber o que está contido na pergunta, conhecer a idéia que nela se encontra e, assim sendo, dar-lhe uma representação adequada. Sócrates inventava o que, em nossos tempos modernos, chamamos de conceito (ibidem). Começa a ser inaugurada a filosofia como a conhecemos, hoje.

Com seus argumentos destrutivos, Sócrates abalava as certezas sobre as quais a cidade ateniense estava construída. Procedia com refutações sistemáticas aos aristocratas, defensores da antiga ordem; aos sofistas, mestres da democracia; e ao cidadão comum. Coloca que o número de votos não faz a verdade. Saber construir um barco ou costurar sapatos não nos torna capazes de dirigir a cidade, dizia. Destruía a argumentação moral do aristocrata, a retórica sedutora do sofista e a logística da própria democracia ateniense. Tornou-se insuportável a todos! Refutava o discurso da autoridade, a retórica do competente e a opinião da maioria. Não é a toa que foi condenado à morte por cicuta.

Platão, através de Sócrates, se propõe a produzir um princípio condutor de toda ação. Se a razão não governar, a força prevalecerá”. De onde se originou este debate pouco importa, mas no Górgias, de Platão (apud Latour, 2001), ele é apresentado com muita clareza. O que se afigura não é a simples oposição entre razão e força, o direito e o poder, filosofia e retórica, Sócrates e Cálicles, mas o poder de um, o patrício, contra a força de muitos, a massa. Sócrates é irônico quanto ao poder de Cálicles, mas ele mesmo defende e tenta manejar um poder maior, capaz de controlar os “dez mil papalvos”: o poder da igualdade geométrica, o poder da razão, ignorado por Cálicles e pelos atenienses. A palavra filosófica se sobressai aos demais modos de dizer e se constitui como verdade. É ainda mais profundo, notem, visto constituir o próprio conceito de verdade (CHÂTELET, 1994)! Julga não somente os discursos mas, também, as condutas. Discurso totalitário!

É neste cenário disposto que a vida social se inventa. A construção das relações éticas, diz-nos Vernant (2006), na Grécia da antiguidade, passa pela constituição dos espaços públicos a se oporem às inúmeras sociedades e confrarias secretas. Os jogos políticos, outrora restritos à nobreza, ganham a praça e tornam-se controvérsia pública. A palavra perde seu estatuto ritual e se torna instrumento de debate. As leis, ainda que figurem como superioridades a guiarem o social, preservam um fundamento demótico atento às transformações e nuances da vida na pólis para a elas se adequarem (MACHADO, 1999).

Essa democracia, libertária e cidadã, passa a não suportar algumas desigualdades e incoerências que ganharam atenção pública, como a escravidão numa cidade que pretende representar o exercício ético da virtude política (VERNANT, 2006). Essa crise na pólis grega, iniciada no século VII e prolongada até os anos seiscentos a.C., é caracterizada por uma notável discussão sobre os sistemas a regerem nossos valores e o mundo. Nos séculos V e IV pré-cristãos, identificamos um deslocamento na atenção da filosofia, tornando as questões cosmogônicas e geométricas de outrora submissas às discussões éticas, às teorias políticas e às epistemologias. A cidade grega inventa a dialética filosófica que, como vimos, anseia produzir discursos universais e totalizantes. Verdade. Mas, ainda assim, o discurso sai das academias esotéricas e das confrarias aristocráticas para ganhar a praça pública, seja a praça do sofista, o bom falador, seja a fala do filósofo, missionário do verdadeiro...

***

CHÂTELET, François; A Invenção da Razão; In Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël; trad. Lucy Magalhães; Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editora; 1994; pp. 15-33.

HERODOTUS; Diary of Xerxes' campaign; disponível em http://www.livius.org/he-hg/herodotus/diary.html.

LATOUR, Bruno; A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson César Cardoso de Souza; Bauru: EDUSC; 2001.

MACHADO, Leila; Ética; In Barros, Maria Elizabeth; Psicologia: questões contemporâneas; Vitória: Ediufes; 1999.

VERNANT, Jean-Pierre; As origens do pensamento grego; trad. Ísis Borges da Fonseca; 16ª ed.; Rio de Janeiro: Difel; 2006.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Centro de indeterminação

Eu, mesmo, separaria a trajetória do Gilles Deleuze em três fases, do mesmo modo que os doutos fazem com o Platão: uma primeira, dedicada à história da filosofia (Empirismo e Subjetividade, Diferença e Repetição, Lógica do Sentido); uma segunda, em colaboração com o Félix Guattari (O Anti-Édipo, Mil Platôs); e uma terceira, dedicada ao estudo do conceito - e dos afectos e perceptos que aquele comporta - através das imagens, em especial das imagens pictórica e cinematográfica (Lógica da Sensação, A Imagem-movimento, A Imagem-tempo). Falaria, também, da influência de certos filósofos sobre o sistema deleuziano, em especial Spinoza, Nietzsche e Bergson, dos quais o Deleuze se apropria de diversos conceitos (imanência, potência, duração) para a constituição de seu próprio pensamento. Recomendaria, para o neófito desejoso em adentrar no conjunto da obra deleuziana, a leitura de algumas entrevistas disponíveis no seu Conversações, como Carta a um crítico severo, Dúvidas sobre o imaginário e, principalmente, seu afamadíssimo Os intercessores. Lapido aqui, lapido ali, lapido acolá e construo, com todo esse meu labor de ourives-pensador a unidade do pensamento de Gilles Deleuze.
Que contraditório afirmar-se um especialista na obra deleuziana! Platão permitiria isto com a sua trajetória, já que é um pensador das identidades e semelhanças. Homem de idéias! Mas o Deleuze, que prima pela diferença e pelo movimento, pelo afeto e pelo fluxo, não se sentiria muito feliz ao me ouvir falar em "fases da trajetória", "unidade do pensamento", "leituras iniciais", "sistema deleuziano", "conjunto da obra" e outros pecados que cometi no parágrafo anterior. Ganha um doce quem descobrir a todos! E ganha uma caixa de chocolates inteira aquele que já sacou aonde esta postagem pretende chegar. Mesmo que o erre no final, pois é esta potência do falso mesma que o Deleuze pontua ao caracterizar o pensamento. Não o substantivo, mas o verbo. Pensar! E verbo sem pronome, este.
Para o Deleuze, as coisas se dão por dom ou captura. Imagem bonita. Diz o menino que a leitura dum livro de filosofia em muito se assemelha à escuta duma música qualquer. Ou a música nos convém ou não nos convém. Simples complexidade. Posso, muito bem, submeter meu corpo a uma ascese severa que me possibilite - eu, brasileiro, nordestino, classe média - a gostar de, sei lá, música clássica italiana, cançonetas do renascimento, rapsódias polonesas, estudos russos. Mas julgo muito difícil entrarmos em contato com a diferença e não lhe sermos indiferentes. A menos que, num e noutro ponto de sua trajetória, a música, o pensamento, o movimento nos capturem e nos levem com ele. Enquanto para a tradição mais carola da filosofia, o pensamento seja uma faculdade capaz de representar e represar à sua própria maneira o fluxo do real, como uma aldeia a se aproveitar das margens férteis do rio, em Deleuze intuimos um pensamento que é, ele mesmo, o rio a arrastar, em sua corrente incontrolável, os corpos que habitam as suas margens.
Pensar, pois, é realizar encontros. Seja na arte, na ciência, na filosofia. Lembro de meus tempos de católico romano - a uns 5 anos passados, mas um passado que não mais parece me pertencer - e da força que me constrangia a buscar um embasamento melhor encadeado para as proposições que já eram verdades em mim. Descobri o Platão. Seu mundo de idéias oferecia-me um correlato perfeito da noção de paraíso, típica da cristandade ressentida. Li o Fedro, o Fédon e a República antes da minha adultescência, lá encontrando um bom espaço para repousar meu corpo. Mas o pensamento não para nunca! Movimento incessante. E mesmo tendo encontrado no Platão um bom amigo - daqueles cujo vocabulário tomamos de empréstimo e tudo o mais - o fluxo da vida levou-me a outros lugares.
Conheci, por acidente, o Jung. Sua teoria dos arquétipos em muito se assemelhava aos personagens conceituais da fantasia medieval, que eu conhecia dos jogos de interpretação e da literatura inglesa. Enganado pelo caráter "RPGístico" de sua obra, acabei encantado pela sua psicologia profunda, numinosa, quase mística. Na mesma época, mantive relações com o espiritualista Huberto Rohden, a quem muito devo até no estilo de escrita. Esbarrei-me, em posterior, nalguns escritos sobre o príncipe Sidarta. Buda informe. E, com ele, fiz nova parceria, tentando - inclusive! - apresentá-lo a meus velhos convivas. Não se deram muito bem e, com o tempo, comecei a andar mais com o Sidarta, que me apresentou novos amigos. Krishna e Lao-Tsé, seus nomes, embora o Platão ainda vivesse em mim, de alguma maneira. Nesta mesma época, entro em contato com os honrados samurais e sua ética. Depois de conviver com essa galerinha de olho puxado por algum tempo, minha permanência nos espaços da igreja romana se tornou insustentável. O pensamento em mim demandou a construção de novas espacialidades, ainda que inomináveis em mim.
Dentro da universidade, não consegui estabelecer cumplicidades a respeito do Jung. Foi deixado de lado, então, e deu lugar a outras amizades. Veio o Heidegger, o Foucault, os pré-socráticos. E, claro, o Bergson, que desde o 2º período letivo do curso de Psicologia me acompanha, mas só em recência começou a encarnar em mim. Com o Bergson, o Nietzsche, os sofistas, a Análise Institucional pós-Maio de 68, o Bruno Latour, começo a pensar o pensamento não como uma faculdade do eu, à maneira de um Descartes e sua mente-coisa-pensante, mas como um devir ininterrupto de homens e coisas, sendo a consciência, o eu, um simples relé dessa rede. Só depois dessa história toda é que o Deleuze, antes um ininteligível filósofo francês, ganhou sentido e vida em mim. É a trama tecida que sustenta o personagem e seus diálogos. É a memória que possibilita e dá suporte a uma matéria. A história-de-mim produziu um corpo capaz de suportar algo do Deleuze, assim sendo.
Dizer do pensamento como um fluxo do real é um meio-termo entre a faculdade do juízo cartesiana e o pensamento acentrado esquizofrênico. O eu é como que um cristal do tempo, um fractal a recontar, a todo momento, a história do todo a lhe originar. Deleuze me diz de mim, de minha história toda. O mesmo do Bergson. E o mesmo do Platão, aquele mesmo lá no início da trajetória. Cada ponto que nossa inteligência demarca é um tijolo a carregar toda a estrutura da casa e a reinventar a história do universo em nós, cada vez que a contamos e recontamos. O eu é fruto da trama do mundo, é seu centro de indeterminação, visto não ter um passado definido, passado-baú-de-lembranças, nem um futuro determinado, visto ser acumulação da história e consequente criação de si mesmo e do universo. Sou parte do mundo, mas sou o mundo em sua plenitude, ao mesmo tempo. Sou imagem do mundo e filho da sua imaginação. Penso, logo sou, diz o outro. Infere, do pensamento, uma unidade sólida e definida a lhe servir de causa. O eu como verdade indubitável, como realidade clara e distinta em si mesma! Delírio de grandeza por excelência é o eu achar-se alguma coisa, não sendo - em verdade - coisa alguma. O mundo é que pensa! Não é de uma Psicologia que precisamos, mas duma Psicopatia; não duma ciência fria para bem delimitar as partes do todo, mas duma ética afetiva que nos obrigue a tomar posição diante da diferença. Deleuze sabia disso. E o Bergson. Nietzsche também, com toda a certeza. Talvez o Platão - mentiroso político! - também o soubesse, mas rendeu-se aos confortos da identidade. Ficou na mesmice...

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O erro de Husserl

Título pretensioso à beça, eu sei. Como um moleque tem a audácia de falar o que seja sobre o paizão da Fenomenologia? Husserl foi aluno do medievalista Brentano, estudou em Leipzig e Berlim, é cria direta do racionalismo ocidental de Descartes, Leibniz e Kant, doutorou-se com uma tese - incognoscível a minha pessoa, saliento - sobre o conceito de número e trabalhou, antes de forjar seu projeto fenomenológico, numa verdadeira filosofia da aritmética. Contruiu noções cabeçudas, como a Redução Fenomenológica, a Região Eidética, o Sujeito Transcendental. E, principalmente, fecundou o pensamento e lhe deu nova vida, principalmente no que toca à epistemologia e à ontologia. São tributários diretos do Edmund a fenomenologia estrutural do Merleau-Ponty, a hermenêutica do Heidegger, o existencialismo do Sartre, a Gestalttheorie dos meninos da escola de Berlim, só para citar os que já tive a decência de estudar. A oposição entre mecânica e dinâmica, partes-extra-partes e conjuntos de relações, estímulo-resposta e totalidades ordenadas - ainda presente no fazer científico das físicas, das biologias, das psicologias - tem seu débito no pensamento husserliano.
Colocando as coisas dessa maneira, aparece-nos com clareza que o título desta postagem se deu como fruto de desentendimento da minha pessoa frente à pedreira conceitual que é a obra do Husserl. Se o for, que seja! Filosofia se faz através de desentendimentos e entraves, de qualquer maneira. No caso contrário - aquele no qual se entra tão profundamente no plano de experiência dum sistema teórico - passamos a constituir o mundo tal qual o filósofo, e nos tornamos, ademais, simples comentador deste. Prefiro, pois, minha precariedade criativa. O próprio Husserl colocava que havia um certo desejo secreto, em todo filósofo, de ser o fundador e o findador do conhecimento, entendendo por filosofar não a busca do conhecimento de isto ou aquilo, mas do que fundamenta, baseia, sustenta - chão firme, terra natal, plano de consistência - isto e aquilo. Husserl não pergunta "o que é isto?", mas "o que é o que é?"
Recusando tanto o terreno elameado da especulação metafísica quanto o chão duro da formalidade positivista, Husserl segue um terceiro caminho, ansiando nos colocar no mesmo plano da realidade, das “coisas mesmas”, como gostava de dizer. O fenômeno - conceito kantiano, atentem, embora Husserl faça seu próprio uso da ferramenta - é lastrado de pensamento. É logos ao mesmo tempo que fenômeno. Não existe nenhum fato do qual possamos dizer que ele não é nada. Se não nos perguntamos “o que é!?” a um algo qualquer é porque já acreditamos sabê-lo. Todo fenômeno traduz-se pela possibilidade de ser nomeado, designado, essencializado.
As essências, aqui, enquanto estruturas a priori do pensamento, independem da experiência sensível, embora se manifestem através desta. Mas tal assertiva não é, necessariamente, inovadora; Platão já criara um mundo de idéias condicionante do sentido das coisas. A grande sacada de Husserl foi retirar as essências de sua morada transcendente e inteligível e fazer seu retorno às "coisas mesmas”. Coloca-as na consciência, pois é como visada de consciência que elas se manifestam a nós. A intuição das essências, logo, não se identifica às factualidades materiais, mas sim ao sentido ideal que lhe atribuímos, como o menino que chama de círculo a gravura levemente oval que suas mãos trêmulas e descompassadas desenharam. E é aqui que começo a engasgar com o husserlianismo. Antes de expor minhas desavenças com o barbudinho, acho interessante lapidar um pouco mais seu pensamento, seja para dar sentido à minha crítica, seja para prestar homenagem a este inegável - e obssessivo! - gênio.
A consciência - diria Husserl-inspirado-por-Brentano - é sempre “consciência-de-algum-objeto”, só é consciência estando dirigida, buscando sentido, intencionando coisas. Já os objetos só podem ser nomeados e definidos em relação a um sujeito, sendo sempre “objetos-para-uma-consciência”. Chama-se a isto pelo bonito nome de Princípio da Intencionalidade. Até aqui, não nos parece nada além do que um Kant ou mesmo um Schopenhauer já não tenham colocado abertamente, ao lapidarem - cada um a sua maneira - uma teoria da representação. O que o diferencia dos representacionistas é que, para Husserl, as essências não existem fora do ato de consciência que as visa e as apreende. Não há númeno! É impossível sair desta correlação sujeito-objeto – noese e noema – já que, fora deste relacionamento, não há nem um nem outro.
Então. A consciência é constitutiva das coisas do mundo. Noética. O sujeito-todo-poderoso é que dá sentido ao real com as suas visadas de consciência. Beleza. Toda a fenomenologia husserliana é uma tentativa, assim, de descrever, delimitar, criticizar a consciência. Estudar as essências da consciência constitui, para Husserl, a fenomenologia. O próprio Husserl, no entanto, esqueceu do movimento segundo que constitui seja o mundo seja essa consciência que o constitui. Noemática. A fenomenologia de Husserl possui caráter notavelmente noético, puxando a correlação consciência-objeto para o lado do sujeito. Sua filosofia é, grosso modo, idealista e transcendental, visto que o mundo se dá pela consciência que o constitui, deixando de lado o movimento oposto dessa correlação: as coisas mesmas que, articuladas entre si, configuram uma consciência! E a consciência, esta mesma constitutiva das coisas e constituída por elas torna-se, ela mesma, coisa lançada ao mundo! E este é o ponto que acho mais difícil de encaminhar. Vamos a um exemplo do próprio Husserl para clarear o pensamento.
Suponhamos uma consciência no mundo. Ou seja: pense em qualquer coisa! Um número, uma paisagem, o interior duma casa, um sentimento de medo ao andar de montanha-russa, a tensão antes duma prova importante. Pois bem! Nossa consciência, constitutiva destas coisas, vai realizar um exercício de imaginação, agora. Começemos a destruir o mundo em nossas cabeças. Quem pensou em paisagens, por exemplo, que vá apagando todas as partes que compõem a imagem, até não sobrar nada. Apaga-se o sol, o céu, o chão, as árvores, os caminhantes. Isso, isso, isso. Façamos o contrário, desta vez. Deixemos o mundo intacto e passemos a destruir a consciência. Anulemos a percepção, a compreensão intelectual, as emotividades. Conseguiram? "Claro que não", diria o Husserl, pois ao mantermos o mundo intacto ainda estamos mantendo uma consciência - a nossa! - a lhe visar. Um a zero para a consciência neste simples embate. E, assim, conseguimos colocar, ainda que singelamente, a superioridade da consciência sobre o mundo no husserlianismo. Mas o Husserl, no processo de destruição da realidade, tem a crença intelectual de que o Ser original veio preencher um vazio, um Nada que preexistia à existência deste Ser mesmo, um Nada que pre-existe sem precisar de explicação alguma. O Nada como uma abstração lógica, mas vazia, para fazer funcionar nossos esquemas explicativos. Fiz uma melhor discussão deste problema aqui, para os que quiserem atingir o problema mais profundamente. Os que quiserem me acompanhar na política da precariedade, que sigam em frente.
A consciência do Husserl não é coisa lançada ao mundo, mas o ser mesmo que o constitui. Platão ficaria orgulhoso. Sofistas, poetas, artistas, todo o resto da pólis olharia com estranheza para tamanho idealismo. A razão grega é filha da cidade. O homo sapiens é, antes, um homo politicus. E a idealização da realidade coloca a vida no plano do conhecimento intelectivo. Exemplo. Estou a escutar, no momento em que escrevo estas ousadias, o novo CD que a Roberta Sá gravou, em parceria com o Trio Madeira Brasil. Quando o Canto é Reza é o nome do álbum, e só têm composições do baianíssimo Roque Ferreira. Situação um. Noutro caso, eu estou sentado na primeira fileira do Teatro Tobias Barreto - aqui, pertinho de casa - vendo a Roberta interpretar Zambiapungo, uma de minhas músicas preferidas do disco. Num terceiro momento, estou num bar, na ladeira do Bonfim, escutando o próprio Roque cantar e tocar no seu violão, rodeado de vendedoras de acarajé e cocadas, baianas fogosas e manolos meio bêbados. O nosso momento número 4 é que o CD - cheio de riscos e arranhões - começou a gaguejar em todas as canções. E, por fim, no quinto contexto, eu arrumo a cifra de Zambiapungo e começo a tocá-la no violão.
Cinco Zambiapungos. Em todos os casos, entretanto, um ouvinte que conhecesse este trabalho da Roberta Sá ou as músicas do Roque Ferreira, diria: "trata-se de Zambiapungo, ora", seja com a Roberta no Teatro, com o Roque no bar ou comigo, num luau. Trata-se do mesmo "conhecimento", mas não da mesma "compreensão" ou "existência". A intuição das essências, a que alude o Husserl, em geral descamba na transformação do devir em categorias transcendentes e, pior, num sujeito fora do mundo a lhe constituir. Não há nem mundo nem sujeito! Há a dança da existência, sem centros, referenciais ou idéias. A totalidade é anterior às partes, que se revelam nesta totalidade mesma! Enquanto Husserl pressupõe um sujeito e um mundo - duas realidades - e cria uma tecnologia filosófica para erigir uma ponte entre ambos, acho mais saudável considerar a existência como um devir para além de toda relação mecânica, ou mesmo dinâmica, entre as partes. Distinguir mecanicismo de dinamismo, como dois modelos teóricos, duma terceira opção, um campo de práticas, deve ser um próximo texto a figurar por estas bandas. Por enquanto, adianto. Não se trata de homens e coisas se relacionando, mas de imagens e figuras de luz a se atravessarem, dobrarem-se, ganharem consistência e servirem de ecrã umas às outras. O Matéria e Memória trata, exclusivamente, dessa maluquice toda. Antes do homem e da máquina, há a interface. Bergson e Einstein ao invés de Husserl e Newton. Antes dos corpos, há a luz. Absoluta luz...

sábado, 2 de outubro de 2010

Comme il faut

Véspera de eleição. Acordo tarde por ter atravessado a madrugada. Chico Buarque, fenomenologia, função parental, poesia libanesa, o Pequeno Príncipe, seriados ingleses. Conversas, sono, sonho e despertar. Um café, dois biscoitos, três minutos pra digerir isto tudo. Depois de ajeitar meu cantinho - varre poeira, recolhe traça, vasculha teias - resolvo assistir um filme, só pra descansar as idéias. Vasculho meus arquivos e ponho um Truffaut pra rodar. Bonito. Tristeza sem necessidades. Por isso, bonito. Findado o sublime, resolvo dar conta de toda a leitura atrasada que pilha e empilha sobre o chão de meu quarto. Começo a jornada. A edição de abril da Piauí, um artigo sobre a ontologia bergsoniana, algo do Merleau-Ponty sobre aprendizagem e comportamento, um conto do Lev Tolstói. Uma cerveja escura faz companhia a mim, mas não se demora em sua visita. Resolvo convidar sua prima, uma holandesa, para continuar a prosa, mas ela também insiste em não durar. Entretido com a vida do decente Ivan Ilitch, dou conta de mim como num lampejo. Compreensão profunda! Ligo o computador. Seleciono o usuário, cuja imagem de exibição é o vieux guitariste aveugle, do Picasso. Caio na área de trabalho, cujo papel de parede é um quadro pré-impressionista do William Turner. Entro no messenger e dou de cara com a mesma amável pessoinha com quem adoro compartilhar meus silêncios. E o ciclo parece se reiniciar. Conclusão: que pedante do caralho, eu sou!...

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O pensamento, temporalidade e a política de imagens

Um ano em 10 minutos. Uma contração temporal – precária, sempre precária – se dará aqui, conosco. Bloco de espaço-tempo bergsoniano. Dispenso fotogramas, vídeos ou qualquer outro recurso de imagem, para que a própria fala se configure como imagem disparadora. Pois bem. Essa minha fala, fala em mim, é produto da pesquisa Produção de imagens e os modos de imaginação: pensamento, cinema e contemporaneidade, vinculada ao PIBIC, que visou analisar processos de produção-consumo de imagens, articulando-os ao acionamento da imaginação no contemporâneo. Procuramos criticizar o pensamento e os modos de produção da atividade cinematográfica contemporânea, demarcando, por fim, a disposição de encontro com um cinema que busque se constituir como uma estética que permita a coexistência temporal. Bergson, mais uma vez.

Como parte desse projeto de pesquisa, foi ofertado – no 2º semestre de 2009 – a disciplina Tópicos Especiais em Psicologia Social e Institucional, na qual todos os envolvidos nesta pesquisa tomaram parte. Como objetivos a serem atingidos em sala de aula estavam o compartilhar experiências e leituras do cinema contemporâneo, discutindo sobre a produção de imagens e dimensionando, assim, possibilidades de imaginação.

Nossas conversações em sala de aula transbordaram num espaço de registro e de produção coletivos – a saber, um weblog aberto, que servia tanto como dispositivo acadêmico, visto que seriam as postagens no blog usadas como sistema de avaliação, quanto um lugar de discursos e discussões, pois o sítio eletrônico servia como extensão das prosas disparadas em sala de aula.

Esbarramo-nos, tanto em sala quanto no blog, com filmes que confortam e põe soluções; e filmes que colocam mais perguntas que respostas. Duas modalidades do fazer cinema: películas que apertam o coração e películas que retiram o chão. Trabalharemos nisto, mais adiante. Um desvio de percurso, agora. Luis Antonio Baptista, num dos sublimes capítulos de seu A Cidade dos Sábios, discute a condição de escuta em narrativas onde o que está em jogo é a fabricação do indivíduo. Fala duma escuta clínica, definida pelo processo de ensurdecimento da realidade histórica do acontecido, buscando dar conta do que seja o verdadeiro no evento mesmo. Em posterior, aponta uma escuta solidária, marcada por uma relação, na qual os sentidos e encaminhamentos são frutos duma realização comum de forças e interesses que trabalham coletivamente.

Um outro modo de apresentar essa discussão é apontar para os processos de produção que individualizam as experiências do viver e os modos de subjetivação marcados por uma política da coletividade. Entretanto, essas duas lógicas têm dinâmicas conflitantes nos modos de operar no tempo e no espaço. Esse conflito se revela nos termos que já dispomos: como processos que apertam o coração ou que retiram o chão. Ao invés da audição, no entanto, problematizamos aqui os modos de visão.

Cabe a mim, aqui, alguma definição desse olhar para bem colocar este problema. Poderíamos tomar o olhar como algo que produz intencionalmente o mundo e daí outros subsequentes olhares que recebem e assimilam esse mundo. Nessa relação, teríamos um super-olhar – olhar privilegiado – produzindo os modos de olhar, enxergar, ver. Um grande olho, que se faz e se quer verdadeiro, produzindo olhos. Decidimos, no entanto, por outra expressão que pontua melhor o nosso plano de experiência. Resolvemos trabalhar com a noção dum olhar parcial como força que participa dos processos de produção de sentido. A ele, designamos a expressão olhar precário.

O olhar precário possui essa sina, eterna seara, de não se bastar, e com ela pode encontrar aquilo que seja capaz de potencializar ainda mais a parcialidade do seu alcance visual. Ou seja, o incremento da sua insuficiência, da sua precarização. É olhar que possibilita a invenção das imagens que mira e não sua decodificação. Bruno Latour nos diz: o ato de conhecer – melhor dizendo – o ato de produzir saber não está no registro do transcendental sujeito conhecedor, nem na imposição à realidade pela coisa mesma a ser conhecida. O olhar é fruto de articulações coletivas, de encontros e colisões entre homens e coisas, humanos e não-humanos. É, portanto, necessariamente precário.

A precariedade do olhar soa e ressoa como condição para uma política por intercessores. Deleuze aponta para um modo de precarização criativo e parceiro nos modos de composição do mundo. Diz que esse olhar se opõe aos pré-estabelecidos, às formas colonizadoras. Fabulação dum povo que ainda não existe. Parece emergir, daí, a questão de como algo que ainda não é pode resistir a aquilo que já é. Vejamos. Com Nietzsche, aprendemos nós a buscar encontros e não uma extensão. Não se trata de interpretação, mas de maquinação. O que quero dizer, ainda com Nietzsche, é que antes da emergência de uma vida instrumental, havia a vida, em qualquer tempo. Antes do super-olhar, olhos. A imagem que pretendo construir: a vida normativa é quem resiste ao olhar precário, no sentido da invenção da vida.

Caio no olhar total, agora. Olhar, este, que busca através da instrumentalização do seu próprio foco ultrapassar a sua condição de precariedade. Um olhar que busca se dispor como “O Olhar”, com aspas, O” maiúsculo e tudo o mais, subvertendo a sua singularidade perceptiva por um modo de identificação persecutório. Panóptico. Máquina de Visão. Foucault e Virilio. Um olhar com razões que buscam se estabelecer antes da experiência do ver, para que o ver seja aqui o que se permite enxergar, aquilo que vai se dar as vistas, o verdadeiro.

Em resumo. Cabe, aqui, a crítica entre as forças que pontuam a condição de uma totalidade, ainda que finita e arbitrária, para as experiências do ver, o que definimos como olhar total, e uma outra condição que prima pela autonomia da imprecisão do ver e que aponta para produção de alternativas ao que está dado, o que tomamos por olhar precário. Como campo para este problema, tomamos – repito! – o cinema e duas experiências estéticas: as que apertam o coração e aquelas que retiram o chão.

O cinema como máquina que reforça; ou acusa essa condição de controle. O cinema como um entretenimento que ativa uma experiência sensório-motora; ou o cinema que se propõe uma dimensão estética que aciona possibilidades de diferença, que busca outra dimensão temporal que não o aqui-agora, demandando assim a criação de outras articulações do real. Produção de permanências ou jogo de descaminhos. As forças que trabalham por uma captura sentimental o fazem atuando como máquinas de repetição. A sua linguagem qualifica-se pela capacidade de síntese que uma experiência estética possa produzir. O cinema-que-aperta-o-coração assume uma dimensão industrial no seu fazer, fabricando experiências áudio-visuais voltadas para demandas sensório-motoras, que funcionam ao mesmo tempo de modo genérico, quando tomando seu público por conjunto, e também particular, quando viabiliza uma sensação de intimidade com o indivíduo, que se permitira uma absorção sentimental com aquilo que passa na tela. O filme de coração apertado é muito mais um caso que uma narrativa. Um exemplo que uma experiência. Não maquina, mas diz do movimento. História que identifica, visto ser história do indivíduo. Logo, história possível de cada um de nós.

O outro modo de cinema que disponho, aqui, é o cinema-que-retira-o-chão. Esse cinema atua noutra dimensão política, se posto em comparação com o cinema-que-aperta-o-coração. Retirar o chão é como que demandar desterritorializações, em oposição às zonas de conforto configuradas pelo cinema sensório-motor, anunciando um convite a outros possíveis territórios. É investir num tempo não disposto no instante, mas marcado por uma política do futuro do pretérito, por uma história efetiva. Nietzsche-Foucault. O filme sem chão mais desmancha que edifica, mas um desmanche que não configura dano. Nele, o imaginado subjaz ao inusitado.

O olhar precário busca, devido a sua percepção parcial, pares para que uma visão se dê. É na parcialidade e no encontro que se dá. O super-olhar, modalidade de exercício do olhar precário, se quer absoluto, tal qual a máquina de visão do Virílio que busca a produção dum sentido de totalidade. Pretensioso, o super-olhar quer estar em todos os lugares e a tudo ver. Ambicioso, quer ver os fatos e as vísceras. O super-olhar enquanto máquina de instantâneos quer representar o real, contrapondo-se às impressões inventivas que os olhares precários, em aliança, costumam pintar. Que modalidades de encontro são possíveis é a ocupação do olhar precário. O cinema voltado para uma sensibilidade sensório-motora, entretanto, funciona como fomentador desse desejo de totalidade do olhar.

Películas que apertam o coração e que retiram o chão. É a quarta ou quinta vez que disponho esse binarismo. Fala precária, esta minha. Não se trata, porém, de análise dos filmes – este é este, aquele é aquele – mas sim uma consequente aproximação dum campo de estudos que investe num modo outro de produzir olhares. Cabe-nos atentar para uma lógica problematizante, temporalizante, e buscar encontrar encaminhamentos de invenção em nossos encontros com modos outros, de abertura a uma produção – cinematográfica, psicológica, filosófica, que seja – que suscite olhares precários e ansiosos no hoje...

Fala que proferi, hoje mesmo, no vigésimo encontro de iniciação científica da UFS, a respeito da pesquisa "Pensamento, Cinema e Contemporaneidade", que participei durante o segundo semestre de 2009 e o primeiro de 2010. A pesquisa ganhará continuidade e, desta vez, investigará o pensamento deleuziano no que tange a questão do cinema, do tempo e do movimento e, num momento posterior, procurará dimensionar estética e politicamente o Cinema Novo em relação ao cinema clássico e de produção em escala industrial, focando a produção cinematográfica e literária do Glauber Rocha. Vamos nessa, então...

sábado, 25 de setembro de 2010

Herói

Ando, e já a algum tempo, decepcionado com filmes de ação. A decepção é para com o cinema atual, deveras, mas a ação - em particular - vem me causando tremendo desgosto. Diálogos a nível sensório-motor, enquadramento e decupagem clichês, interpretações que não convencem. Nunca gostei de ofensas a minha inteligência, que nem merece tantas considerações. É a sina do filme comercial: ao invés de nos lançar numa temporalidade, numa historicidade, dispõe-nos uma sequência prévia de cenas, de fotogramas e de movimentos. É ir na onda, só que não a Nouvelle Vague, o ato de criação, mas a Bad Trip, o stimuli-respond. O horror não sabe mais nos colocar no medo e apela para estripações e torturas. A comédia já não possui a sutileza do riso e tenta nos agradar com cenas espalhafatosas e constrangedoras. O drama não mais chora conosco e passa a narrar lições de moral e piedade. Decaida está a sétima arte, chego a pensar. Decaimento de Heideggeriano, entretanto. Interroga o Ser em termos de Ente mas, ao menos, faz a máquina funcionar.

Qual não foi a minha surpresa quando, em uma de minhas visitas diárias a um site de cinema cult [aka. um blog para cinéfilos chatos, pseudo-intelectuais, metidos a besta e arrogantes] encontro, para download, um filme com o Jet Li. Herói, o nome. Franzo a sobrancelha, num sinal de incompreensão. Vejo a ficha técnica do mesmo: filme colorido, lançado em 2002, uma hora e meia da tela inicial ao crédito final, diálogos em mandarim, classificado como Ação e Drama e dirigido por um tal de Yimou Zhang. Parece ser mais um daqueles Wushia, que sempre me desagradaram pela irrealeza dos seus movimentos. Coloco para baixar, motivado por um elán-curiosidade, e faço uma aposta silenciosa de que algo bom está a me esperar, por ali. O filme começa. E termina. De A a B. Entre os pontos, entretanto, muito se deu. Tudo se deu!

Recebam, agora, toda uma saraivada de palavreados, xingamentos, gesticulações e correlatos enquanto eu tento pintar o filme através da escrita. Não os porei, aqui, porém. Profanariam o silêncio de Herói. Há pouco diálogo, mas muito é dito. Há muito movimento, mas poucos moventes. Quase não há forma, mas a cor abunda. Herói é filme pra ser visto. Necessariamente visto! Sua fotografia é radiante, multicolor, pluritemporal. Poucos corpos, mas que irradiam paletas inteiras de cor. Da cor que cega ao incolorido. Seus personagens são mundinhos vastos: a bela Neve Flutuante e o austero Espada Quebrada, a menina Lua e o tranquilo Céu, o grande imperador Qin e o protagonista Sem Nome.


A história? Pouco importa. E não por esta ser apenas o papel de parede sobre o qual as miríficas batalhas se desenvolvem. É um filme de Kung Fu, afinal. Mas não é por isso que resisto a tecer uma sinopse. A trama é baseada numa das muitas lendas sobre a constituição do império da China. A história, no entanto, é tão só o corpo no qual a bonita narração encarna. Não é o tema, mas como ele se nos revela. O título original, 英雄 (transl. yingxiong), pode significar tanto "herói" quanto o seu plural, "heróis". Sentido duplo. Dividual. A história é o desinteressante, aqui, porque é o enlaçamento das muitas histórias - contadas e vividas - que matiza o filme. Cores, cores, cores. Sem Nome narra uma história vermelha ao ditador Qin. Este, velho de guerra, percebe a tentativa de engodo do reles Sem Nome e conta a sua versão do acontecido, todinha azul. Sem Nome, acoado por ter seu plano descoberto, revela a verdade. Branca. Multiplicidade de experiências, que não se anulam uma a outra.


Herói
é um filme informe. A cor precisa de extensão, mas não dum corpo pra existir. O diretor Zhang, genialíssimo contador de histórias, jogou com a regra até o seu limite, levou-a ao extremo num alternar saltitante entre combates voadores e diálogos soturnos, histórias de amor e casos de traição, assassinatos e sacrifícios, claridade e negritude, águas calmas e chamas trêmulas, espadas tensas e penas viris. Herói me salvou. Mostrou que ainda posso ter esperanças para com o cinema, para com a ação, a verdadeira ação criadora na sétima arte! Pouco sangue é derramado no filme, percebo. Mas o filme é violento, mesmo que não o pareça. É violento, pois nos coloca no próprio ondular zigue-zagueante da matizada narração. Uma hora e meia de Duração, de Tempo, de Violência. O corpo do espectador, de Sem Nome, dos soldados do imperador são destruídos no violento embalo da poética das cores de Zhang, e somos todos imersos na caótica ordem dos opostos. Não é dialética. É a escrita chinesa, meu amigo. Esgrima e caligrafia numa mesma mão. Espada Quebrada o sabia bem. E sabia de cor...

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O Estranho

Antes de tudo, não falo na condição de estranho. Não é de mim que falo. Nem de ti, nem dele, nem de nós ou mesmo daqueles, lá longe. O estranho é sobre-pronominal. Supera a condição humana e individual. É inumano e dividual, pois. Bergsonismos. Fala de percepções, ações e afecções, mas sem nenhum centro de indeterminação a lhes dar suporte. O estranho é o insuportável, sempre o insuportável. Não há "eu" que o suporte, que o contenha, embora precise dum continente para morar. Gestalten que, anterior às partes, precisa das mesmas para se exprimir. Grito: antes do móvel, a mudança! A arte de Apolo embeleza o destrutivo, pesaroso e sôfrego mundo sensível do sensível grego. Anestesia. Dionísio, nem aí pra isso tudo, quer mais é esquartejar! A poesia trágica é a conciliação dos dois. É a arte da estranheza, arte que não embota mas cria. Não casa os corpos, mas pula a cerca e vai além do território cerceado.
O estranho não é afeito aos números. Um estranho aqui, uma estranha ali, um grupinho de estranhos acolá. Isto, não! Impossibilidade. O estranho é pura qualidade que toma o corpo são de assalto e o devora as entranhas. O corpo estranho é oco. Formal, mas sem interior. Artaud pariu. Deleuze criou. E - pior de tudo para este corpo sem órgãos - insiste em permanecer vivo. Respirando. Respira com dificuldade, pois não tem pulmão para filtrar o ar que outrora penetrou sua narina, hoje inexistente. O corpo oco é um corpo sem orifício. Não pode vazar, senão vira vaso. E nenhum vaso pode conter as águas tempestuosas do infinito.
Penso. Não muito, mas penso. E amo. Por amar demais, desaponto-me. Lágrima, ora. Logo, letra. Música, ao final. O corpo estranho assusta, espanta, mas isto é apenas o episódio fenomenal. É a sombra do corpo sinuoso e suado. O estranho é, antes de espantoso, um espantado. Monstro de Frankenstein que chora de horror ao ouvir sua própria voz gutural. A saúde é a vida no silêncio dos órgãos. Canguilhem, professor do Foucault, o disse bem. É não sentir o corpo, imerso no mundo como num silente oceano. O corpo estranho, necessariamente, é um corpo doente. Sua carne. Sua alma. Seu espírito é dor, anormalidade e quebrantude. O estranho causa aversão quando não sabe, ou se recusa, a entrar nos eixos. Mas, em verdade, é o mundo que lhe constrange, esmaga, espreme. Seu corpo em pús causa nojinhos e cuspidelas ascosas, mas seu sangue fervilha por debaixo da casca. Quer respirar, mas sem explodir. Conspira, então. Mas, como não tem boca, conspira baixinho, na surdina.
Fala baixo, pois. Os do alto, assim sendo, não o escutam. Que seja! Vai fazer arte, então. Mas nada de representar. O corpo estranho derruba a 4ª parede. Cinema experimental, pintura cubista, música serial. O fotógrafo usa de sua objetiva para captar os dados do real. Um lado. Alguns, mais espirituosos, fotografam dois. Outros, ainda mais profundos, conseguem captar três lados. Não é disso que se trata, escreve na areia o estranho. Não é perspectiva, sussura ao pintor; não é harmonia, soa ao músico; não é o olho, visa ao cineasta. O corpo estranho estranha, mas - mais do que isso - se estranha. Trava. Mas não paralisa. Lança tudo pois está lançado no todo. E cria uma percepção, uma ação e uma afecção sem profundidade, sem dimensão, sem ponto de vista. É a própria luz - matéria da matéria - que irradia da arte do estranho.
O que quer um corpo estranho é uma pergunta difícil, porque nos parece fácil de responder. As fáceis são as piores, diz a experiência. E o estranho sempre se guia pela experiência. Nunca pelo experiente! A estética das estranhezas não quer pluriperspectivar, transdisciplinar ou multivalorar. Não é consenso, nem tampouco respeito. Não é a demonstração dos seis - 1, 2, 3, 4, 5 e 6 - lados dos dados do real. Quer, sim, o som sem instrumento e ouvido, a projeção sem anteparo e retina, e a pintura sem dimensão e realeza. Sustenta, ao limite, uma escrita que nada diz, uma música que não ambienta, uma pintura que não representa. Filme sem ecrã, cuja luz - de matizes mil - viaja e viaja pelo espaço sem esbarrar em coisa alguma. Luz invisível. Invisada. Impercebida. Arte que nos coloca fora dos pontos de vista. Sem interpretações. Descomedida. Absoluta. Luminosa. Estranha...