quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Senhorinha


Dança comigo, moça! Que importa se você não tem um par de sapatos!? Posso ficar descalço, se quiser. Pronto. Fiquei. Vem cá, agora. Conta pra mim aqueles segredos que nem você conhece. O quê? Repete, que não entendi. Rouquidão. Deixa eu chegar mais perto. Mais. Um pouco mais. Isso. Fala no ouvido, agora. Um sussuro. Tremo. Continuo a não entender coisa alguma. Mas agora estou com um sorriso estranho, estranho e sem propósito, a estampar minha seriedade. Sorriso bobo. Palavra boba, esta. Bobo. Bobo! Bobo? O signo rachou. Qual o teu encanto, feiticeira? Um pouco de mel nos olhos, uma pitada de açucar nos lábios, algumas palavras sussurradas ao vento. Mágica das mágicas, a tua poesia. O cotidiano se torna o mais fantástico dos mundos. Teu olhar foge, entretanto, e não consigo desvendar-lhes o sabor. Por que? Por que não mira a mim!? Isso, devagar. Fugiu de novo! Olha mais uma vez. Sustenta. Sustenta a dor. Sorrimos. Mas você se vai. E vai para longe. Estico o braço mas não te alcanço. Distante, faço arte. O romântico enumera: uma dança, mas não tenho mais par, deveras; ponho e componho música, mas sem um instrumento para lhe carregar; faço poesia, então, mas não há livro que a suporte; pinto a beleza em você, mas as tintas não bastam; esculpo seu movimento, mas ele morre - inerte - congelado no mármore; um museu de infinitos quartos para guardar tudo isso. 15 minutos de fala e de fama. Os blocos do artista querem construir castelos no espírito de outrem. Não para aprisioná-lo, como se acostumam os estetas. Mas para fazer com que o espírito se perca e se encontre, ria e se desespere, espante-se e compreenda. Blocos sutis, os seus. Arte feita com os pedaços do cotidiano. Pedaços de mim, esmigalhado, esfacelado, disperso. Reunido, em suas mãos. Estou em suas mãos. Pequeninas. Não cabem muitos delírios, nelas. Principalmente os do futuro. Abomina-os. Escondo-os comigo, para não te afugentar. E continuamos no baile. Sem sapatos. E a banda toca, mais uma vez. Dança comigo, moça?

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Três questões sobre ´Seis vezes Dois´

O pessoal da Cahiers du Cinéma, interessado em saber das opiniões dum filósofo sobre os recentes programas do Jean-Luc Godard para a televisão, entrevistou o Gilles Deleuze com este propósito, posto que este muito admirava os trabalhos do diretor. A entrevista saiu na edição de número 271 da revista, em novembro de 1976, e foi publicada no Conversações, uma coletânea de "entrevistas que se estendem por quase vinte anos", e que "não sabemos mais se ainda fazem parte da guerra ou já da paz" (p.7). É com esta entrevista - Três questões sobre Seis vezes Dois (Godard) - que realizamos o exercício de escrita abaixo disposto, à maneira duma resenha.
Deleuze diz de como imagina Godard. Um homem só, sozinho, solitário. Uma solidão povoada, no entanto, mas não de sonhos, projetos, fantasias e sim de coisas e atos e mesmo pessoas. Solidão criativa. Godard-força! Suas perguntas nos espantam, nós espectadores, mas não incomodam a quem são dirigidas. Fala com os delirantes, mas não com as falas do psiquiatra. Nem com as do louco. Nem com as de alguém se fingindo doido. Fala com os operários, mas não com as falas do patrão. Nem com as do próprio operário. Nem com as falas dum intelectual. Nem como um diretor para com os seus atores. Godard gagueja. Não gago da fala, mas gago da própria linguagem. Só se pode ser estrangeiro numa outra lingua mas Godard, diz o Deleuze, é estrangeiro em seu próprio idioma. Antecipa-se a todos, mas não pelo sucesso. Visto sempre estar só, continua sempre em sua própria linha, ativa, quebrada, fugidia, ziguezagueante. Caso único, o Godard, visto não ser capturado pela TV. Não satisfeito em somente mostrar o seu cinema, fez esta série - o Seis vezes Dois, ocupação da TV por seis vezes com dois programas - que em muito toca a própria TV. Entrevistas, mas entrevistas que povoavam a televisão duma outra maneira. Uma outra TV possível.
Pedem ao Deleuze que dê uma resposta mais diretiva, à maneira duma aula, sobre os programas do Godard. Como os percebe, os sente, como explicaria seu entusiasmo para com o programa. Deleuze aceita a encomenda, mas adverte, usando uma fórmula do próprio Godard: "não uma imagem justa, justo uma imagem" (p.53); não a ideologia, mas a prática. E diz o mesmo do filósofo: não idéias justas mas, justo, idéias. Continua. A idéia justa - significativa, dominante, ordeira, estabelecida - sempre verifica algo, ainda que seja algo-por-vir, a revolução! O "justo idéias", enquanto isso, é a gagueira nas idéias, é a questão colocada que faz calar as respostas. Devir-presente.
E, sendo assim, o Deleuze sugere duas idéias que se atravessam, uma a outra, nos programas do Godard. A primeira diz do trabalho, e de como há por demais abstração na noção duma tal "força de trabalho", que se venderia/compraria em condições tais que estabelecem seja uma tal justiça social seja uma injustiça social de base. A pergunta do Godard, mas formulada pelo Deleuze: "o que ao certo se compra e se vende? O que é que alguns estão dispostos a comprar, e outros a vender, que não é forçosamente a mesma coisa?" (p.53). Um soldador vende a sua "força de soldador", mas não a sua força sexual, ao tornar-se amante duma senhorinha. Uma faxineira vende horas de limpeza, mas não o trecho musical que solfeja enquanto faxina. Um relojoeiro - pago pela sua "força relojoeira" - recusa pagamento pelo seu hobby de cineasta amador. Diria o relojoeiro que não quer ser pago pelo seu cinema pois "existe uma grande diferença de amor e de generosidade nesses gestos" (p.54). Mas e o cineasta, pago pelo seu ofício? Não o ama, destarte!? E um fotógrafo, que ora paga o seu modelo e ora é pago por ele? Guattari propôs, num congresso de psicanálise, que os analisandos fossem pagos tanto quanto os analistas, visto que, para além do serviço de escuta do psicanalista, há o trabalho do inconsciente do paciente. Godard pergunta, na mesma onda, qual o porquê de não se pagar aos que assistem TV, visto que as mesmas exercem um verdadeiro serviço público, ali. Todas essas questões - imagens - escanteiam a noção de força de trabalho, posto que esta isola o trabalho de seus próprios produtos, do ato criativo no trabalho, do amor ao trabalho. O trabalho não como uma criação mas como uma força produtora de bens e consumos, força abstrata reprodutora de si mesma.
A segunda idéia diz da informação. Uma professora, ao explicar uma operação matemática ou ensinar ortografia aos seus meninos, transmite informações. Nada mais improvável que isto, para o Deleuze. "Ela manda, dá palavras de ordem. E fornece-se sintaxe às crianças assim como se dá ferramentas aos operários, a fim de que produzam enunciados conformes às significações dominantes" (p.55). A linguagem não como "meio de informação", mas como um "sistema de comando". A informática criou o seguinte esquema: dum lado, a informação pura, máxima; doutro o puro ruído, interferência; entre ambos, a redundância, informação ruidosa. Deleuze, com o Godard, aponta para uma inversão deste esquema: coloca a redundância no topo, transmissão, repetição, ordens, comandos; a informação pura vem abaixo, como o mínimo necessário para que a ordem seja bem recebida; e, mais abaixo, o ruído. O silêncio. A gagueira. O grito. Um algo que escorre por entre os dedos da linguagem. "Falar, mesmo quando se fala de si, é sempre tomar o lugar de alguém, no lugar de quem se pretende falar e a quem se recusa o direito de falar" (p.56). Assim dispondo a situação, coloca Deleuze o problema: como falar sem dar ordens, sem representar algos e alguéns? E como fazer falar os que não tem esse direito, como lhes devolver os sons, e como devolver aos próprios sons seu poder contra o poder, seu valor de luta? "Sem dúvida é isso, estar na própria lingua como um estrangeiro, traçar para a linguagem uma espécie de linha de fuga" (p.56).
Godard questiona duas noções correntes: a Força de Trabalho e a Informação. Mas, Deleuze deixa claro, não se trata de dar informações verdadeiras, nem de pagar bem pela força do trabalho. Grifos do autor. O bom e o verdadeiro apontam para "idéias justas", ele diz, e Godard escreve FALSO do lado delas! Deleuze começa a "bergsoniar", traçando a seguinte história paralela: existem imagens. As coisas são imagens. Mas as imagens não estão no cérebro, na "cabeça". O cérebro, percebamos, é que é mais uma imagem entre tantas outras. As imagens do mundo não cessam de agir, de reagir, de produzir, de consumir entre si. Imagens, coisas, movimento. Idênticos. As imagens, no entanto, possuem um "dentro". São "sujeitos". Entre a ação sofrida e a ação executada (reação) pela imagem, há uma certa defasagem. Essa defasagem é a percepção, é a subtração da imagem do que não interessa. Perceber é subtrair. Existem imagens, ao contrário, que não são sentidas por "dentro", mas como "avesso", imagens capazes de capturar outras imagens, tomando-lhes o poder e centralizando-as. Voz de Hitler, diz o Deleuze! Graças à defasagem, destarte, configuram-se dois movimentos opostos: um, das imagens exteriores, por si mesmas, às percepções; outro, das idéias dominantes, "golpes centrais", às percepções.
Num único ato, Godard desdobra-se em dois. Quer tanto restituir a plenitude das imagens exteriores - fazer com que percebamos não menos que a imagem, mas coincidir a percepção com a imagem mesma - quanto tomar da linguagem o seu poder e fazê-la gaguejar, destilando das idéias "justas" uma e outra gota de, "justo", idéias. O primeiro capítulo do Matéria e Memória - obra-prima do Bergson - trata duma querela semelhante, ao tratar a fotografia como já tirada no interior das próprias coisas e em todos os pontos do espaço. Não que Godard seja bergsoniano ou o renove. Melhor dizer que Godard, em sua própria trajetória para renovar a TV, encontrou pedaços de Bergson pelo caminho. Godard e Bergson. E Deleuze.
O "e", para o Godard - e para a filosofia deleuziana - é o que importa, ao contrário das embotadas discussões sobre o atributo das coisas, sobre sua existência, suas possibilidades e afins, sempre pautadas pelo ser, pelo verbo "ser", pelo "é". O "e" não é uma simples conjunção, uma simples relação, mas arrasta consigo todas as relações, equilibrando-as e desequilibrando-as todas. A gagueira criadora: "e... e... e...", uso estrangeiro da língua, a se opor ao seu uso conforme, dominante, comme il faut, fundado sobre o ser. Diversidade e multiplicidade a destruir as identidades. Godard diz que tudo se divide em dois. Mas quando fala da manhã "e" da tarde, não diz de um ou de outro, nem de um que vira outro, nem dos dois. A multiplicidade não mora nos termos ou em seus conjuntos, por mais detalhados e numerosos que sejam. Reside, isso sim, no "e", de natureza diversa dos elementos e dos conjuntos destes. A força não residiria num ou noutro lado do campo, mas na fronteira, nesta um-outreidade. Godard quer fazer ver as fronteiras, tornar percebido o imperceptível. Uma fronteira que não é nem um nem outro, mas um-outro, o hífen, arrastando a ambos numa evolução em fluxo, na qual não se sabe quem está em cima ou embaixo, quem vai na frente ou atrás, nem qual o destino de um e do outro. Uma política da um-outreidade é uma micropolítica das fronteiras, a combater as macropolíticas dos conjuntos fechados. A fronteira, o hífen, o "e", "onde as imagens tornam-se plenas demais e os sons fortes demais. É o que Godard fez em seis vezes dois: 6 vezes entre os dois, fazer passar e fazer ver esta linha ativa e criadora, arrastar com ela a televisão" (p.61)...
DELEUZE, Gilles. Três questões sobre ´seis vezes dois´; In: Conversações; Trad. Peter Pál Pelbart; Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, pp. 51-61.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Mercado: pontos e encontros

Breve preâmbulo. Ao vasculhar meu disco rígido, agorinha mesmo, encontrei esse relato que fiz, a respeito duma etnografia. Era parte do trabalho de conclusão da disciplina Psicologia Social III, que cursei a um ano atrás. Muito tempo, verdade. Ignoradas as distâncias temporais, gostaria de compartilhar a experiência - tanto de intervenção quanto de escrita - com os senhores. Pois bem!...
* * *

Enquanto conversávamos – eu e meus parceiros de escrita – sobre o que pesquisaríamos no trabalho final de nossa disciplina, foi sugerido o Mercado Thalez Ferraz como locus de intervenção. Vago demais! A escolha duma temática de pesquisa não equivale ao delineamento do objeto de estudo. Diz Narita (2006) que é preciso recortá-la, defini-la, limitá-la para um bom conduzimento da coleta. Falou-se, então, nas senhorinhas que vendiam ervas na praça central. Começamos a bem colocar o problema, embora pouca ou nenhuma experiência anterior tínhamos em relação a tal domínio. Com nenhum conceito a nortear nossas reflexões, sair a campo mostrou-se ação urgente. Fizemos, logo de começo, uma visita em conjunto ao Mercado. Mas aqui eu deixo registrado apenas minhas andanças pessoais, sendo a primeira destas no dia nove de outubro, dois dias depois da visita coletiva de nossa comitiva de pesquisadores.

Chego ao mercado às 13:30. Carrego o sol sobre minha cabeça, mas é o almoço recém-deglutido que mais pesa em mim. Antes de cercar as senhoras e suas ervas no “Thales Ferraz”, resolvo fazer uma andança por todo o Mercado. Passo por um corredor colorido e perfumado por flores. 10 reais o vaso!”, diz a Dona que me nota olhando para um buquê de jasmins. Sorrio e continuo meu caminhar reto, até dar de vista com gaiolas e jaulas empilhadas umas sobre outras. Passarinhos, filhotes de cachorro e um gato com os olhos quase fechados, como que dopado de tristeza. Olho o animal de perto e ponho alguns dedos dentro da gaiola. Ele olha para minha mão imóvel e acaricia seu rosto nela, meio sonolento.

Saio e sigo. A feira de artesanatos, logo a seguir, me lançou na indecisão. Esquerda? Direita? Vou em frente? Retorno? Nem lembro o que escolhi; só sei que rodei, rodei e rodei, meio perdido naquele lugar cheio de matizes. Percebi que estou sendo olhado pelo pessoal do artesanato. Talvez pensem que sou um “de-fora”, visto estar de alpargata e camisa de botão em pleno mercado municipal! Ou, então, estranharam a minha pessoa ter passado duas ou três vezes pelos mesmos lugares. Andar em círculos é coisa de quem está perdido, mesmo!

Turistas e comerciantes almoçando lado a lado; um barbeiro a aparar os pêlos faciais dos homens com uma senhora hidratando os cabelos das clientes na sala vizinha; crianças correndo para dentro das lojas e velhos tentando pô-los pra fora. Resolvi cair fora, também! Coisas demais pra enxergar.

Saíndo do mercado, dei a volta por fora e reentrei no Thales Ferraz. Cheguei perto duma banquinha de ervas e comecei a manusear algumas folhas estranhas. Uma senhora se aproxima; baixinha, de cabeleira loura, poucos dentes no sorriso e muita experiência nas mãos.

Quer alguma coisa, meu filho?

Er... Não, não! Mas qualquer coisa, eu chamo a senhora!

Então, qualquer coisa, eu tô por aqui...

Entrou em sua banca, voltou com uma laranja e, notando que a fruta estava com manchas na casca, a arremessou longe. Entra na sua lojinha mais uma vez – número “cento-e-alguma-coisa-que-não-lembro-agora” – e retorna com outra laranja. Começa a falar sobre limpeza e o cuidado que tinha com comida.

Pergunto eu sobre algumas daquelas ervas à mostra: um toquinho de madeira que é bom pra coluna, pros ossos e pro sangue”, uns galhos secos que ajudam na filtragem renal e umas bolinhas verdes que são boas contra anemia. Cedro, limpa-pedra, jurubeba. Digo a ela que estou estudando o mercado e que gostaria de ficar conversando um pouco com ela, pra aprender sobre o lugar e ver como é o comércio dali. Ela, sentada e chupando uma laranja, tira uma cesta de jurubebas de cima dum banco e me diz pra sentar e perguntar. Começamos nossa prosa.

Stella Narita (2006) coloca o discurso livre como preparatório para a situação de entrevista, para a utilização de um questionário já estruturado ou para a apreensão de dados quantitativos. No entanto, pela gratuidade com que a Dona começou nossa conversa e pelo voto de confiança que – com este ato – ela me concedeu, resolvi apostar tão somente no discurso livre, querendo não apenas atender meus objetivos de erudito ao confeccionar um relato de pesquisa, mas responder a uma demanda que a senhorinha me expunha no momento de sua fala.

Diz-me ela, D. Maria Luciana, que trabalha por ali a uns 4 anos, e que a banca não era dela, mas da irmã. Olho para o lado e vejo uma senhora de cabelo curto, imponente, uma matrona de avental, a cuidar de artesanatos: cofres, estatuetas, barquinhos, João-bobos a dividirem espaços com folhas, galhos e troncos.

Três mulheres – cariocas, intuo pelo forte sotaque – perguntam entusiasmadíssimas sobre aquelas bolinhas estranhas na banca da D. Maria. Enquanto começam a agenciar seus negócios, dou uma de estrábico e, mantendo um olho na conversa delas, começo a vislumbrar com o olho restante a estante de Maria Luciana. Noto uns pacotinhos estranhos contra mal-olhado. Pergunto sobre eles e ela diz que não acredita nessas coisas mas, como tem gente que acredita, ela vende. Diz que o negócio das ervas é fraco, que o lucro mesmo vem dessas outras coisinhas e do artesanato.

Fala ela que desde que João Alves construiu o mercado de artesanatos, próximo à praia e aos hotéis turísticos, a venda dos produtos caiu consideravelmente, pois o turista – afirma – por ter acesso a uma feira artesanal mais próxima da sua pousada, não visita mais o mercado. A situação, desse jeito, ficava cada vez mais difícil. Coloco, aqui, a Rosane Neves para falar, mas não por academicismo. Essa é uma citação direta, sim, mas a insiro pois a menina trova sobre tais assuntos melhor do que eu poderia cantar. Ao compor versos e odes sobre a construção do mercado de artesanatos, intuo – com o Rosane – que


é a partir do momento em que certos disfuncionamentos de uma sociedade não são mais regulados de uma maneira relativamente informal no tecido dessa sociedade que podemos falar de uma “problematização” do social. As relações sociais informais não são mais suficientes para resolver tais disfuncionamentos. Assistimos então à criação de alguns equipamentos institucionais e, por conseguinte, de um corpo profissional especializado que passará a se ocupar de tais disfuncionamentos (SILVA, 2004, p.14).


Feirantes postos em ordem pela vigilância sanitária. Assistentes sociais transformando o fluxo do local em geometria. Estudantes psi a lidarem com o mercado enquanto problemática. O mercado é asseptizado, com a separação da feira turística de artesanato das filigranas realmente locais. Os ratos são expulsos, mas junto com os ratos parece que vão-se embora, juntamente, as clientelas. O mercado artesanal levantava um problema a ser abordado. Penso em pesquisar a historiografia oficial da construção e reforma dos mercados e pareá-las com a memória dos viventes. Duplo desapontamento: em primeiro, não encontro nenhuma referência – livro, jornal ou website – ao Mercado fora da simples comunicação turística; e por fim, constato meu pouco tempo restante em campo, o que me fez desistir à busca de discursos conflituosos, desarmoniosos e ambíguos. Fica a deixa para uma futura intervenção.

Entre um e outro cliente, pergunto se ela já almoçou; responde que nunca almoça por ali. Fazia sempre uma merenda e nada mais, pois não gostava da comida do mercado. Percebo o Rafael, um de meus companheiros de pesquisa, se aproximando da banca – eram umas 14:15 – e, distintamente, me despeço de D. Maria. Digo que vou dar uma voltinha pelo mercado, mas que ainda volto. Ela diz que tá sempre por ali se eu quisesse fazer mais perguntas. Saio e começo a dar voltas pelo mercado, com o Rafael.

Atravessamos o corredor de flores e comento sobre o gato solitário na gaiola. Arrodeamos a sessão de artesanatos e, sedentos, tomamos um suco. Lembramos uma nota feita em nossa visita anterior, sobre as lojas funcionarem como espaço de transição entre pontos do mercado: só éramos atendidos caso parássemos dentro do ambiente; no caso contrário, seríamos tomados por passantes.

Decidimos visitar o Sr. Albano Franco e as ervas de lá. Uma coisa que estranhei logo ao entrar foi a feira daquele mercado. A beleza medieval das barracas que se adequam aos contornos da rua e dos movimentos foi substituída pela retidão da ordem matemática. A feira tornada instituição! Este sentimento, que já me afetava na parola de Maria Luciana, socou-me ainda mais forte. Ponho o disco da Rosane Neves na vitrola uma vez mais. Continuamos a andar, ao léu, pelo lugar e, mesmo não tendo parado em nenhum vendedor, noto a profusão de produtos que podem ser encontrados por ali. Sementes e grãos, frutas e leguminosas, temperos e ervas.

Mais para dentro, encontramos uma sessão de pescados e, caminhando um pouco mais, encontramos televisores, relógios, calçados, um caixa bancário do Banese e dois guardas que, embora conversassem entre si, pareciam não prestar muita atenção nos transeuntes. Tomamos a saída lateral do mercado e, voltando ao Thales Ferraz, sentamos à sombra do casebre central de informações. Terminada a visita desta sexta-feira, começamos a conversar um pouco sobre nossas experiências.

Minha segunda e última ida ao Mercado deu-se oito dias depois. Sábado, dia dezessete. Estava agitado e de cabeça pesada, o que não me deixou fixar raízes num lugar só. Logo, não colhi discursos. Só andei, andei e andei um pouco mais. Longe de fazer disto um pesar, considero o meu jugo como suave. A Stella (2006) faz uma rápida e sucinta distinção entre o discurso manifesto e o conteúdo latente dos mesmos. Pega emprestada uma aparelhagem psicanalítica para reflexão nossa. Não encontrei ditos nem registrei escritos, mas esbarrei com indizíveis que corriam na vida mesma do mercado. Não conversei com ninguém, deveras, mas minha andança nervosa e incessante me deixou ver aspectos velados pela linguagem.

Desço do ônibus meio cambaleante – eram quase 14:00 – passo pelo calçadão, atravesso as portas fechadas e cruzo olhares com um mendigo que, logo, desvia seu olhar do meu. Continuo num passo apressado e vejo – nas passarelas do Antônio Franco – mesas, mesas e mais mesas a ocuparem o lugar. Homens bebendo, mulheres conversando, casais brigando, senhores com instrumentos, carne do sol, cerveja Pilsen.

Ando um pouco mais apressado e adentro no Thales. Entro e, quando percebo que tem mais gente por metro quadrado do lado de dentro, penso em sair! Mas só penso. Pela inércia, continuo. Vejo a D. Maria, de avental, e até que desejo falar com ela. Minha narradora oficial. Como bem colocou o velho Benjamin, “o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história” (apud Narita, 2006, p.28). Figura rara é o narrador, assim como rara é a D. Maria. Mas, pelo meu estado de ânimo, fico com medo de não conseguir levar adiante uma conversa decente. “Mas que merda! Por que resolvi vir a campo nesse estado!?!?Confesso que quase bradei isto em plena praça central do Mercado. E, claro, é o mesmo que as senhorinhas e o rapaz – meus convivas no campo – pensaram. Mas segurei a minha onda e continuei. Peço, com carinho, que o Senhor Leitor faça o mesmo.

Acalmei um pouco meus humores e meu passo, e fui até a passarela de flores. Tinha tanta gente indo e vindo, tantas mesas alocadas nos arredores, tantas conversas paralelas, perpendiculares, coincidentes, que não consegui sentir o cheiro das flores. Andei, olhando para uma flor e outra mas, como eu não parava os pés, ninguém parava pra me dar atenção. Bola de neve. Antes de entrar na clareira que leva à sessão de artesanatos, cruzei as gaiolas de animais e, pra minha surpresa, meu amigo felino não estava mais lá. Tinha sido vendido? Morreu? Tirou o final de semana de folga? Falar com os carcereiros seria uma boa, mas ânimo pra falar com gente eu não tinha.

Fui à feira de artesanato. Mais gente! Senhoras abarrotavam uma lojinha de tecidos e confecções manuais, homens com violões trocavam acordes, famílias banqueteavam-se nos restaurantes. Tudo muito ruidoso e movimentado, mas falo no bom sentido, desta vez. Todo mundo muito bem posicionado. Estavam à vontade demais para serem turistas que, geralmente, ficam irrequietos girando lá e cá. Como eu!

Ando, passo pela banquinha de livros usados, encaro um senhor que está afinando um violão numa mesa de bar e saio do mercado, em direção ao beco dos cocos. Dou a volta pelo lado de fora, em direção ao “Reino de Ogum” – meio loja, meio terreiro – mas estava fechado. Parece que os santos também tiram folga ao final da semana.

Volto ao ponto de partida e dou de cara com a alegria figurada naquelas pessoas. Uma alegria corriqueira e cotidiana. E, digo de novo, não é a alegria besta e saltitante do turista. É coisa de gente dali. Gente daqui! Gente nossa, ainda que a gente não seja com eles. Aponto institucionalizações, esquadrinhamentos e territorializações. Mas o bonito é que o espaço não consegue aprisionar a história, o assujeitamento não consegue anular a rotina própria daquela gente e, claro, as práticas políticas não conseguem conter a vida. O Mercado transborda vida! Transborda a ação dum povo que, mesmo preso em coordenadas, brincam e fazem seu próprio uso do espaço dado. Um dado que, assim como as coletas da nossa intervenção, é produção constante de nós mesmos...


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Referências Bibliográficas


NARITA, Stella;
Notas de Pesquisa de Campo em Psicologia Social; In: Psicologia & Sociedade; 18 (2); mai./ago. 2006; pp. 25-31.

SILVA, Rosane Neves da; Notas para uma Genealogia da Psicologia Social; In: Psicologia & Sociedade; 16 (2): mai./ago. 2004; pp. 12-19.