sexta-feira, 27 de maio de 2011

Marvelous!

Depois duma sequência de filmes pedantes - nacionais e do estrangeiro, clássicos e desconhecidos, do horror ao humor - vou ao cinema para assistir a nova película da Marvel Studios: Thor. O primeiro Thor, do roteirista Larry Lieber, era "apenas" um humano com poderes semelhantes ao deus do trovão; na segunda versão, do legendário Stan Lee (que faz uma ponta em todos os filmes da Marvel, detalhe), Thor era o mimado e arrogante filho de Odin que, ao violar um tratado de paz entre os asgardianos e os gigantes de gelo, é enviado pelo seu pai à Terra para aprender o valor da humildade ("certo..."), tendo suas lembranças apagadas e encarnando no corpo humano de Donald Blake, um talentoso médico manco (Dr. House!?). A premissa do filme se aproxima mais da segunda versão, a do Stan Lee, mas sem o Donald Blake (ou quase sem). Enfim, não é do filme que vim aqui, falar. Mas, enquanto assistia o filme, lembrava de comentários antigos dum sujeito, amigo meu, sobre a salada que é o universo da Marvel.
A primeira formação d´Os Vingadores, por exemplo: Thor (um deus mimado, expulso do panteão asgardiano para a Terra dos homens pra aprender a ser homem de verdade), Homem de Ferro (Tony Stark, um bilionário playboy que, investindo dinheiro e talento para a construção de armamentos, acabou ligado a uma armadura de combate que o mantém vivo, devido a seu ausente coração perdido num acidente), Gavião Arqueiro (Clinton Barton, um excelente artista marcial, de mira fabulosa e exímias habilidades acrobáticas), Wolverine (Logan, - ou James Howlett, para os que leram "A Origem" - um mutante com regeneração celular, garras retráteis e sentidos aguçados que participou, como cobaia, do projeto governamental Arma X), Homem-Aranha (Peter Parker, um tímido porém genial estudante nova-iorquino que, após ser picado por uma aranha radioativa, adquire um físico sobre-humano, aderência e um sensor de perigo que beira à clarividência), Hulk (Bruce Banner, um cientista que - atingido por raios gama enquanto salvava uma criança durante um teste militar duma bomba que ele mesmo desenvolveu - passa a se transformar num gigante verde sempre que se ira), Capitão América (o líder Steve Rogers, um patriota magricela que teve seu alistamento recusado nas fronteiras e que, para contribuir com a vitória da sua nação, aceita participar como cobaia de um ainda não testado experimento para a cria do chamado Supersoldado), Vespa (Oi!?) e o Homem-Formiga (Oi!? [2]). Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove.
Olho para o outro lado da comicbook store e vejo os quadrinhos da DC e a sua igualmente profusa liga. Os integrantes originais da Justice League: Superman (o repórter Clark Kent - ou Kal-El, o último filho de Krypton - que, com habilidades inumeráveis e inumanas, está sempre lá para salvar o dia), Batman (Bruce Wayne, um bilionário que, ao ver o assassínio de seus pais quando ainda era um pivete, decide investir todo o seu intelecto, aptidão física, tecnologia e - claro! - dinheiro na batalha contra o crime), Aquaman (Arthur Curry, o Rei dos Mares, filho de um faroleiro e de uma exilada de Atlântida, pode se comunicar telepaticamente com seres aquáticos, regenerar tecidos quando em contato com a água e capaz de força e agilidade descomunais em decorrência das pressões subaquáticas que costuma enfrentar), Mulher Maravilha (Diana, princesa das amazonas, inicialmente uma estátua esculpida pela própria rainha Hipólita de Temiscira, e animada pelos deuses; é forte como Hércules, sábia como Atena, bela como Afrodite e ligeira como Hermes), o segundo Lanterna Verde (Hal Jordan, piloto de testes da Força Aérea estadunidense, escolhido pelo anel de Abin Sur, um Lanterna Verde que morreu na Terra), Ajax (J'onn J'onzz, o caçador de Marte, sobrevivente da Grande Peste devido a uma máquina de transporte construída por um cientista humano) e o segundo Flash (Barry Allen, cientista policial - à la CSI - que recebeu um banho de elementos químicos ao mesmo tempo em que era atingido por um raio [!]).
Pois bem. Expressionista algum poderia compor sinfonias mais atonais que as desses super-amigos. Harmonia impossível, esta. Como o Thor suporta o mauricinho do Homem de Ferro? Como o Batman suporta o excesso de cores, o eterno sorrisinho e o penteado sempre impecável do Superman? Como o Wolverine suporta os moralismos do Capitão América? Como o apressadinho do Flash suporta a paciência extra-terrena de Ajax? Como o Hulk suporta as eternas piadas do Homem-Aranha? Como a Mulher Maravilha suporta todos os homens da liga?
O Homem-Aranha escala os prédios de Nova York, cidade de movimentos, luzes e arranha-céus; tivesse nascido em Wisconsin não teria onde lançar suas teias e praticar suas acrobacias. Bruce Wayne não teria se tornado o cavaleiro das trevas se a cidade de Gothan não fosse tão obscura e tenebrosa; caso fosse um órfão na cidade de Las Vegas, seu destino seria totalmente outro. Não é à toa que Kal-El deixa de ser o fazendeiro Kent e passa a ser um super-homem quando sai dos milharais de Smallville e fixa morada na futurista Metrópolis. Cada herói não é um sujeito individual, mas é o ponto de condensação dum mundo inteiro, e só existe pois existe, antes, este mundo que lhe dá suporte. Não é um herói que suporta o outro. Mas é o mundo de cada um, enquanto uma tendência (Nova York é altura, velocidade e extase; Gothan City é pobreza, decadência e corrupção; Metrópolis é a super-população, a super-qualidade-de-vida, a super-cidade), que suporta seus próprios personagens. E são esses mundos que, por vezes, entram em crise e colidem com outros universos, abrindo a porta para a diferença.
E quando falo diferença não falo do que distingue uma identidade de outra, mas da diferença interna, da diferença da coisa consigo mesma. Um prazer é distinto dum sofrimento, mas dentro do mundo dos prazeres posso falar em comer chocolate, escutar Beethoven, fazer sexo, ler Dostoiévski, dormir e tantas outras atividades que em nada se assemelham, todas chamadas de "prazeres" por um simples movimento intelectual e utilitário da linguagem para com a vida. Uma mesa é distinta duma cadeira, mas dentro do paradigma "cadeira" cabem a cadeira de balanço que me embalava na infância, as duras cadeiras de madeira da universidade em que estudo, a velha cadeira estofada na qual estou sentado no momento etc. Dentro de uma categoria aparentemente homogênea estão inseridas realidades tão distintas entre si quanto coisas de categorias diferentes. Busquemos a diferença nela mesma, pois!
De início, podemos espartilhar as categorias em pacotes cada vez menores em busca desta diferença de natureza perdida. Prazeres, artes, música, música erudita, música erudita romântica, Beethoven, as obras para piano de Beethoven, as sonatas para piano de Beethoven, a sonata nº 14, o terceiro movimento - Presto Agitato - da sonata nº 14, a coda estendida do terceiro movimento da sonata, os acordes quebrados ao final da coda. Desisto. Esta análise poderia durar eternamente, durar enquanto durasse a obsessão do cientista deveras maluco que se lançou nesta empreitada. Minha loucura, porém, não caminha pela neurose e desconfio, levemente, que a diferença não está aí. Multiplicamos as identidades, afinal. Cadê a diferença mesma, a diferença da coisa, aquilo que pode definí-la sem que precisemos recorrer a esta dissecação intelectual!? A coisa parece sempre escapar, toda faceira, das minhas representações. A diferença, então, está aí: é o movimento, o movimento do conceito dentro de seu campo criador, do objeto dentro de seu laboratório, do herói, do capanga, da mocinha e do vilão dentro de seus próprios cenários e núcleos.
Qual a liga, a cola, o cimento que une o Batman e o Superman? Justiça!? Sim, também, mas não só. É a justiça (no sentido de justeza) que coloca uma coisa nesta categoria e não naquela. Batman é herói, Coringa é vilão, mas ambos são loucos a desfilarem suas fantasias e delírios pela noite gótica. O primeiro é "do bem" por estar articulado com o comissário de polícia, a imprensa local e as empresas Wayne. O outro é malvado por queimar dinheiro, usar maquillage em demasia e rir antes do término do concerto. Batman é herói, repito. Superman, idem. Dois heróis. Que é um herói, pois? Quem sabe!? Herói é um conceito vazio e negativo, ao que parece, visto não precisar o nosso objeto nele mesmo. Define-o por oposição a outras identidades (herói é o que não é vilão, vilão é o que não é só um capanga, capanga é o que rapta a mocinha, a mocinha é apaixonada pelo herói, que é o que não é vilão...). Digo o mesmo para o prazer. E para as cadeiras. A precisão destes conceitos reside, tão somente, em sua utilidade prosaica. Mas nenhuma poesia rola nas terras pedregosas do intelecto. A amizade faz-se necessária, agora, e já pode entrar no quadro como a segunda liga. Batman não é um herói, e sim toda uma cidade decadente e melancólica prestes a ruir - autofagicamente - devido a sua corrupção. Superman não é um herói, mas é um planeta extinto, uma cidadezinha do interior e uma megalópole mundial. Acompanhar o movimento dos personagens dentro de seus cenários é que é buscar a diferença deles em relação com as outras coisas! Amizade. Não (somente) a amizade entre um e outro herói, um e outro sujeito, mas a amizade entre os sistemas e planos que tornaram a existência de um e outro deles possível.
Vamos inventar um roteiro. Quando Lex, através da Luthorcorp, tenta uma associação com as empresas Wayne que, recentemente, começaram a investir em fusão nuclear (planos de dominação mundial do careca?...) como fonte de energia barata para a população, o jornalista Clark Kent se vê na busca de documentações negociárias do bilionário Bruce, para acusar o príncipe de Gothan de corrupção e barrar uma transação econômico-política que julga nociva para todo o planeta. Pronto, esta é uma deixa para o encontro Batman/Superman. Caso o jornalista acione aparatos policiais para a empreitada, podem entrar em cena o legista Barry Allen ou o investigador John Jones. Flash e Ajax na parada. Como o enriquecimento do material radioativo está desequilibrando o bioma de todos os cinco oceanos (as fábricas estão espalhadas pelo globo, digamos), Aquaman surge para integrar a equipe. E assim ocorrem as ligas: com a amizade e a articulação de um herói com outro, mas uma amizade que revela uma amizade maior, ou melhor, uma amizade menor, molecular, quase invisível entre os seus sistemas. Gotham invade Metrópolis que polui os oceanos que desperta o interesse da imprensa que aciona instituições policiais. Polvo de mil tentáculos é o cosmos. Quando um cosmos, já bagunçado desse jeito, adentra noutro cosmo, a situação se adensa ainda mais: o Planeta Diário pede informações ao Clarim Diário sobre um laboratório enriquecedor de Urânio em Nova York. Lá vai Peter Parker atrás de fotos para o jornal e o Homem-Aranha atrás de uns capangas pra socar. Já Lex Luthor, além de tentar coligações com as misteriosas empresas Wayne, já está de olho na Stark Enterprise e suas armaduras de combate (o urânio de um, o material bélico do outro; deu certinho...). Não é um universo, nem muitos universos juntos, mas um multiverso, um mundo aberto e criativo! Mundos fractais!
David Hume diz que somos o que somos pela experiência. Estou com ele. Nada há na mente que não tenha passado, primeiro, pelas nossas impressões mais simples. Uma ideia abstrata e complexa, neste esquema, seria apenas um agregado e um remanejamento dessas percepções mais fortes e imediatas. Hume explica como podemos imaginar coisas que nunca passaram pela nossa experiência: se sou capaz de imaginar um pégaso, um cavalo alado, é porque eu já tive a impressão de um cavalo e de um par de asas, proveniente de algum outro animal. Pégaso = cavalo + par de asas. Um anjo, seguindo a esteira, seria um homem com o mesmo par de asas. E aqui me separo do Hume e retomo todo o bergsonismo destilado na postagem. Um anjo ou um pégaso não é a simples resultante dum processo de adição, mas é a condensação de todo um outro universo possível do qual tais entes provém. Pégaso é castelo da princesa, é reino encantado, é grupo de aventureiros, é magia, é panteão de deuses, é grifo, manticora, dragões. Anjo é céu, é inferno, é julgamento final, é mensageiro de Deus, é guardião da alma humana, é Miguel, Gabriel, Lúcifer. Sou pela experiência, mas não a minha. Sou pela experiência do próprio mundo, que tende, evolui e dura ele mesmo.
Qual é o lance: é transformar objetos em problemas, resultados em processos criadores, espaço em tempo, substâncias em acontecimentos, categorias em diferenças. A diferença interna de uma coisa não é uma categoria que a distingue de outra. Categorias são conceitos vazios, que representam o real negativamente, dizendo-lhes o que eles não são em decorrência de sua função utilitária. Batman é herói, assim como Superman, Wolverine e Hulk. Coringa é vilão, assim como Lex Luthor, Dentes-de-Sabre e o Departamento de Defesa dos Estados Unidos da América. Mas Batman não é Superman. Nem o Coringa se assemelha ao Lex Luthor. Devemos talhar conceitos, isto sim, que respeitem a diferença interna da coisa, que revele a sua tendência evolutiva e fale de seus movimentos. Dizer do Batman é dizer das tecnologias políticas de Gotham City a fabricar mendigos famintos, latrocídas psicóticos, policiais corruptos e, mesmo, heróis como ele e outros: Robin, Asa Noturna, Canário Negro, Bat Girl, Comissário Gordon (é preciso ser herói, mesmo sem fantasia, pra assumir honestidade numa cidade como Gothan). Dizer do Batman é criticar, falar das condições de possibilidade de um Batman. Falar dos movimentos do mundo que tornaram um Batman possível. E, principalmente, falar das prováveis relações de amizade de um Batman/Gotham com outros heróis possíveis/mundos virtuais. Só assim para que haja alguma justiça, alguma filosofia justa e adequada a esse mundo. E a outros mundos, também...

terça-feira, 3 de maio de 2011

Lavoura Arcaica, Moderna, Contemporânea

Eu coloco uma questão. Lavoura Arcaica projeta um tal André (mas que poderia ser João, Pedro ou José) sufocado por um patriarcalismo universal e um maternalismo anestesiador. André sofre, se afeta, reage. Bergsonismo beirando a Nietzsche. Este último, mesmo, tornou-se carne na conversa-ação entre o pai e o filho, quando o pródigo à casa retorna. Filme apolítico e intimista, gritam alguns. Pergunto: onde reside o individualismo, aí? André é só André? André é um André? Ele é só? Ele é um?
É um filme que fala de afeto. Não o afeto do romântico, do mentalista e do cristão (quase a mesma coisa, os três), mas sim o plano-paisagem que vira primeiro plano. Só isso. Não o primeiro plano que parcializa, que recorta uma parte da totalidade e esquadrinha os seus interiores, à maneira dum cientista, mas o primeiro plano que transforma o próprio "objeto parcial" numa realidade independente. Primeiridade, diria o Peirce. Não é um filme que nos "fala" da alma do André, mas que nos coloca na dor do mesmo. O filme nos dói e nos pesa pois doído e pesado é o próprio afeto que arrebatou o André. O próprio afeto que o configurou e que se projeta em nós. Não a memória das coisas mas a memória nas coisas e as coisas se lançando em nós (nós-pronome-plural e nós-ponto-da-rede).
Não é um filme intimista, privado ou coisa semelhante. É apenas o afeto feito imagem. Não, não acho que o filme seja filosófico, no sentido (e apenas neste sentido) de que o mesmo discuta conceitos, apresente teoréticas ou suscite postulados. É um filme para ser discutido dentro do próprio filme, dentro da própria linguagem cinematográfica. Podemos falar de contextos históricos, referências bibliográficas, críticas à cultura e outras extrapolações, outros além-filme (extracampo?...), mas intenciono puxar - não aqui, não agora - uma discussão do filme pelos jogos de imagem que o mesmo constitui: excesso de primeiros planos "mal-decupados" (como os rostos cortados pelo enquadramento, causando um efeito de confusão semelhante ao falso raccord), o silêncio em momentos nos quais deveria haver ruído (a mãe acordando o filho, naquela dança das mãos por sob os lençois), câmeras sobre-humanas ou, mesmo, inumanas (André entrando na casa velha e a câmera o pegando de baixo do assoalho), a constituição de "espaços quaisquer" (transformação de detalhes duma cena na cena inteira; não como simples close, simples aproximação dum objeto parcial, mas a transformação desse detalhe - desse objeto - na cena inteira, tornando o fundo irrelevante e tecendo o objeto numa imagem-afecção deleuziana).
Quando falo duma análise das imagens ou dum estudo da montagem do filme, posso sugerir que o critério de julgamento para um filme ser bom ou ruim é a sua "técnica". Ou, mais ainda, que nada há para além dum filme que a sua técnica! Certo. Ou errado. Não é de técnica que falo, mas de linguagem, de linguagem cinematográfica, de classificação dos signos. Falo em "linguagem" não em seu sentido mais formalzão, saussureano (significante + significado = linguagem), mas numa alternativa para a separação do sujeito puro/significado (o "indivíduo" que assiste a película) com o objeto puro/significante (o "filme-em-si"). Linguagem semiótica, peirceana, é a que proponho.
Skinner diria (não com estes significantes...) que o ato de fala, de significação, de linguagem, é um comportamento, deveras, mas um comportamento atrelado a um circuito construído e mantido por toda uma coleção de elementos contingentes (não-necessários) a se articularem. A língua-que-fala só existe pois existe, aí, um ouvido no qual as palavras lançadas ao ar podem pousar e repousar. Uma fala é um mundo. Estudar o signo da linguagem, assim sendo, é estudar o estruturante que lhe dá condições para existir. Criticá-lo, virtualizá-lo, é mapear as suas condições de possibilidade, é re-configurar seu campo problemático. Isto se dá tanto na mais grosseira das partículas materiais quanto nas mais sublimes das artes. Agora, puxo o cinema.
Quando falo em ver o filme dentro do próprio filme, ou estudar cinema dentro do próprio cinema, não falo - tão somente, mas também - em técnica de enquadramento, em captura de movimento, em jogo de cor, em boas atuações (humanas e não-humanas), em equipamentos de gravação, em cenografia. Falo destas coisas, sim, mas não como "técnicas"; falo delas como "linguagens". De onde vieram? Pra onde querem ir? Por que assim o são? A quê servem? Tais perguntas substituem o "que é isto?" da filosofia, questão intelectual e moderna por excelência. Que é isto, o sujeito? Que é isto, o objeto?
Tratar o cinema pelo lado do sujeito (gênero dos filmes, reação da platéia, a moral da história, as inspirações pessoais) é resumir o cinema a simples produto, a simples coisa humana voltada para nosso consumo e posterior configuração identitária (filmes pra rir, filmes de terror, filmes pedantes franceses, filmes de ação explosiva...). Tratar o cinema pelo lado do objeto (técnicas de enquadramento e decupagem, escolas de montagem, tipos de roteirização, estúdios) é transformá-lo em laboratório, em uma espécime a ser dissecada e analisada por especialistas e sapientes do fazer cinematográfico, distantes da massa mortal. O estudo duma linguagem cinematográfica deve passar, pra mim, longe destes dois pólos, embora se utilize de aspectos dum e doutro, por vezes. Mas a idéia não é retratar nem os homens ("é um filme inspirador...") nem as coisas ("o filme possui travelings impecáveis..."), mas narrar o porquê de termos estes sujeitos e estes objetos e não outros, porque a platéia e a crítica especializada é assim e não assado, investindo numa produção que enriquece tanto a natureza do cinema quanto as subjetividades humanas.
No entanto, tratar das subjetividades humanas ou da natureza cinematográfica, antes desse trabalho "temporal", é danoso, insisto. Danoso no sentido de produzir indivíduos (sujeito) e especialistas (objeto) do e no cinema. Já lidar com o cinema enquanto um campo de signos, uma linguagem, uma duração e, só depois, retirar-lhe os sujeitos e seus objetos, é que enriquecerá a ambos. Retomando. O dano está na produção dum saber (todo coletivo produz um saber) que se quer desatrelado do mundo e das relações. Ele nasce de um coletivo, como todo saber, mas se arvora como a última bolacha do pacote, tentando dizer que é puro, coado, já que filtrou a humanidade das imundícies da natureza, e filtrou esta das vontades e ideias humanas.
Falar das paixões pelas quais um e outro da platéia foram arrebatados não é cinema, creio. Isso daí já é vida. É algo maior; não o infinitamente maior, mas o infinito mesmo. Um filme que arrebata alguém (muito melhor que um filme que arrebata a todos...) não é um bom filme, mas uma boa coisa. E esta discussão, ao que digo, já foge ao escopo duma discussão cinematográfica. É ética, é existencialismo, é política, é psicologia. Mas não é cinema (ao menos não por isto). Creio que falar do filme em termos de sujeito (as implicações da película em quem assiste) é ainda mais danoso que tratar das tecno-lógicas do objeto (fotografia, decupagem, montagem). Isso seria apegar-se a um (sujeito) ou outro (objeto) aspecto do cinema, dissecando-o. Falar do cinema - mas como signo ou linguagem! - é que é adentrar na própria lógica fundamentante do mesmo.
Mas repito, atento, deixo claro, digo logo. Não digo que devamos saber de todos os badulaques e penduricalhos usados na construção e gravação duma cena. Só disse que, muitas vezes, ao não fazer isto, estamos saindo do cinema. Entramos na ética, na política, na psicologia (sujeito/significado) ou na estética, no estilo, na técnica (objeto/significante). "Cinemar" seria falar dos signos e linguagens que produzem tanto esses sujeitos e sentidos quanto seus objetos e símbolos. Não prego um tecnicismo, mas apenas uma fuga do sujeito empírico. Um filme que me serve, ou que serve a um e a outro, ou que serve a todo mundo, não é um bom filme, mas - de novo! - uma boa coisa. É uma boa entidade, uma boa arma política, um bom recurso terapêutico, uma boa diversão. Mas o filme possui a sua própria linguagem, seu próprio plano de conversa, que pode passar tanto por movimentos de câmera quanto por risos, tanto por maquiagem quanto por lágrimas, tanto por figurino quanto por inspirações pessoais. O que quero dizer: falar de cinema não é falar nem de um nem de outro, mas do que dá sustança aos dois. É falar do tempo antes de trazer o movimento para a cena. Consciência cinematográfica contemporânea.
Imaginemos um saber cinematográfico arvorado na separação S-O. Temos o saber subjetivo de um filme, como o Lavoura Arcaica, por exemplo ("mudou minha vida", "me identifiquei", "é uma crítica à cultura") e o saber objetivo do mesmo ("é um filme com enquadramentos geométricos, à maneira da escola francesa..."). Essa separação S-O prejudica o coletivo porque se cria uma corja de intelectuais cineastas que dizem deter o saber sobre como fazer e falar sobre cinema, e um grupo de pessoas que, despotencializadas em sua produção cinematográfica, só podem se agrupar em coletivos identitários (curto drama, curto Tarantino, curto filmes franceses da década de 60, curto Chaplin) se quiserem viver o cinema! Elas não podem curtir o filme adequadamente ("vocês não entenderam o real significado das cenas...") nem fazerem seu próprio cinema, pensarem seu próprio cinema.
Lavoura Arcaica é um prato cheio para se discutir imagem (logo, para se discutir o mundo; as imagens do cinema revelando as imagens do mundo; crítica cinematográfica = ontologia): imagens de percepção, imagens de agonia, imagens de raciocínio, imagens de (re)ação, porém - mais especificamente - imagens de afeto. Não falo que o filme me tocou e me fez chorar e repensar meus conceitos e blá-blá-blá e coisa e tal. É um filme cult, intelectual, elitista? Talvez. Mas não desprezemos o cânone só pela sua sacralidade. Os santos - e não apenas os profanos - também merecem ser ouvidos, antes que os crucifiquemos...