quarta-feira, 16 de maio de 2012

A leitura como arte

Citação direta:

... não existe um tal substrato; não existe "ser" por detrás do fazer, do atuar, do devir; o "agente" é uma ficção acrescentada à ação - a ação é tudo. O povo duplica a ação, na verdade; quando vê o corisco relampejar, isto é a ação da ação: põe o mesmo acontecimento como causa e depois como seu efeito. Os cientistas não fazem outra coisa, quando dizem que "a força movimenta, a força origina", e assim por diante - toda a nossa ciência se encontra sob a sedução da linguagem, não obstante seu sangue-frio, sua indiferença aos afetos, e ainda não se livrou dos falsos filhos que lhe empurraram, os "sujeitos" (o átomo, por exemplo, é uma dessas falsas crias, e também a "coisa em si" kantiana).

Que dizer da sentença acima? Depende, eu diria. De quê? Depender é sempre pender para um outro, a coisa que depende sempre depende de outro, depende de coisas que não ela mesma. O interlocutor de Sócrates, ao ignorar que ignora, precisa dele, esse filósofo chato, esse tavão, esse inseto ferroso, para lhe apregoar a verdade na carne viva, uma verdade que não é um modelo de vida nem, tampouco, um saber a ser transmitido, mas um incômodo em relação ao seu ser mesmo de sujeito e à sua existência inteira. Algo parecido ocorre com o stultus do estoicismo, esse indivíduo que cuida de seus bens, cuida da família, cuida do corpo, cuida das coisas públicas, mas não pratica o cuidado de si mesmo; disperso de seu eu enquanto objeto de cuidado, essa atenção para si não pode vir de si, já que o que caracteriza a stultitia, esse estado do homem comum, esse homem tão longe da sapientia estóica, é, justamente, a desatenção de si, o que torna a presença do outro imprescindível numa tal prática filosófica. Depender é, repito, pender para um outro para ser um eu, para ser um. Ora, se peço ao senhor leitor que comente a citação inicial, e não lhe dou nenhuma informação auxiliar para a hermenêutica da citação, muito pouco se avançaria em nossa conversa, já que o máximo a ser feito seria reproduzir algumas frases do período acima com outros termos. Esbanjaríamos vocabulário, mas sem avançar na discussão.


Se digo, porém, que a citação é de F. Nietzsche (e, de fato, o é; pode ser encontrada na primeira parte de seu Genealogia da Moral), tudo muda. Um outro aparece e retira a sentença da ignorância e da estultícia. Um movimento se dá, uma relação se estabelece e o pensamento pode se desenrolar, agora. Pelo martelo de Nietzsche, a frase pretende destituir o sujeito psíquico de sua individualidade, independência e liberalidade, colocando o homem como fruto dum conjunto de forças históricas e propondo uma filosofia destituidora de toda origem e fundamento universais, articulando uma política da saúde e um pensamento do corpo, em oposição aos idealismos e moralinas exangues que sanguessugam o ocidente. Caso o acaso, porém, tivesse lançado essa sentença num dos poucos livros de H. Bergson, filósofo de estilo imagético, escrita-pincel, teríamos agora uma crítica a todas essas filosofias abstratas que não abordam o objeto nele mesmo, em sua duração concreta e temporal, mas em seu correlato espacial e linguajeiro, tomando por problemas reais mal-colocadas aporias, problemas insolúveis. O psicólogo B. Skinner, por fim, poderia pronunciar a mesma sentença e, com a mesma, quereria propor um ataque mordaz ao mentalismo e, ao mesmo tempo, ao comportamentalismo meramente metodológico, propondo noções como Operante e Evento Privado, constituindo uma filosofia do comportamento independente tanto da introspecção quanto da análise e mensuração descontextualizada do organismo a ser estudado.

Escrever é uma arte, dizem. Bilac "trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua" e, "longe do estéril turbilhão da rua", escreve. No segundo parágrafo do mesmo soneto, A um poeta, diz:

Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço: e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua
Rica mas sóbria, como um templo grego

E, assim dizendo, o que o poeta talha e constrói? A poesia de e para o Bilac é análoga a um processo fabril, uma maquinação industrial ou, ainda melhor, um ofício de escultor, de ourives. Poesia como templo grego e vaso chinês, como forma feita e bem feita. Já completada, essa boa forma deve olvidar todo o sacrifício do santo beneditino ao conceber, gerar e dar luz a seu rebento de palavras. A poesia como objeto da arte, como obra da arte. Essa fabricação artificial, destarte, é pensada em dois instantes: há o trabalho do sujeito-artista e há o objeto-de-consumo resultante deste trabalho. A imaterialidade do trabalho do sujeito é recomposta por biografias, correspondências pessoais, rixas deste sujeito-artista com outros sujeitos (artistas ou não, humanos ou não). A materialidade do objeto é, por sua vez, alvo dos exegetas, teóricos e estetas a interpretarem e alocarem esta obra entre tantas outras obras que já atravessaram o crivo dos acadêmicos ("parnasianos aqui, simbolistas um pouquinho mais pra cá, românticos lá pra trás e modernistas... modernistas... deixa eu ver, os modernistas ficam... er...").

A hermenêutica da atividade poética se divide em duas, então. Uma do sujeito (o que nos legará biografias, compêndios e relatos historiográficos) e outra do objeto (realizando interpretações sobre o que quis dizer a obra, qual a relação dela com as teorias de base da sua arte e como se pode categorizá-la num ou noutro movimento artístico, já estabelecido ou não). Um modo interessante de se recortar o problema - e que, usando o vernáculo husserliano, opera a distinção sujeito-objeto típica da atitude natural, compartilhada tanto pelo senso comum quanto pelo saber conceitual científico -, mas que põe no mesmo palco, em implícito, um terceiro personagem nesta historieta: de um lado, os especialistas do sujeito-artista; de outro, os especialistas do objeto-de-consumo; do lado de fora, como um terceiro excluído, está a figura do leigo. Que cabe ao leigo, este amador, este não-profissional, frente a esses latifundiários da arte? Consumir, apenas consumir, se nos mantivermos neste esquema no qual a arte se espartilha e se divide entre alguns como num conchavo de pós-guerra.

Este dualismo bilaquiano parece nos levar a uma contradição nos conceitos que subrepticiamente articula. De início, cria uma separação entre a linguagem poética - advinda de Apolo e das Musas, do Monte Parnaso, da ética, da estética, da noética, da ascética, palavra que dança, que musica, que teatra, que palavra, que palavra!, se insinua, nua, toda nua, nada sua, fora da rua, "No aconchego / Do claustro, na paciência e no sossego", palavra bela, forte e graciosa "na simplicidade" - e a linguagem prosaica, aquela mesma do "estéril turbilhão da rua". Temos, aí, não apenas duas apropriações da linguagem, ou dois usos duma mesma coisa chamada linguagem, mas duas coisas diferentes, duas noções da atividade linguística que diferem por natureza: uma voltada para a ação no cotidiano, a representação da coisa, a geometrização da experiência, a percepção do objeto, o dizer de algo; e outra que se dá como uma experiência nela mesma, uma intuição em velocidade infinita, um dito puro, uma primeiridade, um fluir, um submergir, um sufocar-se, um afogar-se nas águas espirituais da escrita artística. Neste ponto, duas metafísicas incompatíveis se desenrolam, já que o mundo prosaico não é nada além dum espaço vazio no qual coisas e homens constituídos se inserem e se comunicam, fornecendo uns aos outros informações e referências, ao passo que o mundo do poético, tomado e levado ao extremo, é, em verdade, uma infinidade de mundos, de existências, de atualidades e virtualidades, a se acoplarem, se interferirem e ressonarem mutuamente, ainda que cada um desses mundinhos se experiencie como um átomo, um individuum. A contradição que pretendo mostrar é uma outra, não obstante, é a sua consequente.

Se, como dito, escrever é arte, e arte é trabalho, constitui-se nessas equivalências um ambivalente produtor-operário do texto artístico e um consumidor dos objetos deste sistema de produção de bens. Mas, como a escrita tomada como trabalho artístico demanda uma metafísica da interferência, o leigo leitor de poesia vê-se na impossibilidade de consumir a obra como o homem consome a sua refeição, o modelo consome a sua moda, a família consome a sua novela, o percipiente consome o seu percipii ou o filósofo consome os seus princípios lógicos, por não se tratar duma monadologia, duma unidade atômica a apreender, cognitiva e cumulativamente, os dados lançados ao mundo, mas um mundo que, ele mesmo, se cria e se recria ao chocar-se com a alteridade, tornando o processo cognitivo um processo de invenção, de si e do outro. A contradição que tanto quero exprimir é a de que o leitor só pode ser entendido como um consumidor, um devorador, se nos mantivermos no registro da palavra que representa o mundo e faz a correspondência deste mundo no sujeito do conhecimento; mas se a palavra adentra no outro circuito, no circuito da arte e de sua velocidade infinita, saímos também da correlação produtor-consumidor, necessariamente, e caímos na relação produtiva ela mesma. O leitor de poesia não consome nada, já que a afirmação faz coligar duas metafísicas, dois partidos inconciliáveis. Aliás, a própria ideia de contradição só responde ao modelo geométrico da linguagem, no qual contradizer-se é sustentar uma representação e, no mesmo instante, a representação que lhe nega. Adendo: dizer que o leitor é um consumidor não é contraditório, já que a contradição se dá apenas no plano das formas, no plano das diferenças de grau. A poesia diferencia-se da linguagem cotidiana por natureza. O poético e o prosaico não são dois modos de abordar a palavra e as coisas, já que "as coisas" só existem, como realidades extensas e representáveis, no linguajar que comunica e referencia. Com a poesia, é a atividade criadora, o movimento inventivo e a produção que está em jogo, e em constante jogo.

Com a poesia cabe, tão-só, produzir. Escrever é arte e trabalho, sim, mas ler também. Cozinhar é arte (Culinária), mas comer, para além de consumir, também pode ser uma poética (o gourmet). Destilar a cerveja em quantidades ideais de água e álcool, de cevada e trigo e malte e lúpulo, é uma arte (Cervejaria), mas saber apreciar esta cerveja é, igualmente, uma arte (o sommelier). Organizar sonoridades de maneira agradável ou intencionalmente desagradável, harmônica ou atonalmente, visando este ou aquele efeito, esta ou aquela conjuntura, é uma arte (Música), mas saber acompanhar e recompor no espírito os movimentos articulados por estes sons demanda muita poesia. O cinema, considerado como o enquadramento, a decupagem e a montagem de diferentes imagens em movimento num plano-sequência virtual, configura uma superfície de legibilidade, como diria J-L Godard, que deve não apenas ser vista em sua evidência e obviedade, mas lida, criticizada. O crítico culinário, o crítico musical, o crítico de cinema, o crítico de poesia, o crítico de arte. O papel do leigo é criticizar, mas este leigo é tanto equidistante do leigo-senso-comum a devorar e tomar como óbvias as imagens que lhe são colocadas quanto do sábio de bon sens, o filósofo cartesiano que, aqui, assumiria aqueles papéis de especialistas do sujeito e do objeto artístico, de crítico de arte profissional, e não mais amador, o amador que ama e adentra no movimento da arte, tornando-se, ele mesmo, movimento, e não mais uma coisa-que-pensa. Se Kant criticava no sentido de colocar as condições formais de possibilidade do conhecimento - espaço, tempo, substância, relação de causalidade etc. - aos moldes de uma arquitetônica da razão, a crítica amadora e leiga investe numa "História da razão pura", aquela mesma que o prussiano diz ser uma lacuna a ser preenchida em sua doutrina transcendental. O filósofo-arquiteto busca fundamentar seus agregados sensíveis num sistema, apoiando e fomentando assim os fins essenciais da razão, isto é, a unidade dos conhecimentos diversos numa ideia; já o amador agencia ideias, faz com que pendam e se dobrem uma na outra, e produz sentido e calor ao atritar essas partículas moventes. O estilo, já dizia G. Deleuze, é o movimento do conceito, tanto em filosofia como alhures.

Félix Ravaisson - curador do Louvre de 1870 até a sua morte, em 1900 - utilizava da seguinte analogia para ilustrar essas duas críticas. Pensemos nas cores do arco-íris, do vermelho ao violeta. Há duas maneiras de se fazer filosofia em cima delas. A primeira é dizer que todas são cores (laranja, amarelo, verde, azul, anil...). Mas faz-se notável que, para obtermos esta idéia geral - o conceito de cor - apagamos do laranja o que faz dele laranja, do anil o que faz dele anil, do verde o que faz dele verde. "Cor" é uma definição negativa, visto que aponta para o vazio. O trabalho deste filósofo é unificar o plural, extinguindo a luz que diferencia as diferentes nuances e confundindo-as todas na treva do universal. A unificação segunda lida com os infinitos matizes e os faz convergirem, através duma lente, a um mesmo ponto. Este filósofo busca a luz branca, pura, do qual todos os raios multicolores provêm.

Tomo quatro películas para uma demonstração ligeira: Um Cão Andaluz, filme surrealista de 1928, escrito e dirigido por Luís Buñuel e Salvador Dalí; Akira, um anime cyberpunk de 1988 baseado no mangá homônimo de Katsuhiro Otomo, e dirigido pelo mesmo; A Liberdade é Azul, filme de drama dirigido pelo polonês Kieslowski, em 1993; e O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, comédia francesa de 2001 do diretor Jean-Pierre Jeunet. O que têm em comum: são filmes, todos. E o que é um filme? Qual a essência comum que os mantém reunidos nesta categoria una? Digo-lhes: nada. Simples e puramente. Temos decupagem e enquadramento, trilha sonora e roteiro, personagens e cenários. O que cada um destes filmes entende por cada uma destas coisas difere tão gritantemente dos demais que só com muita ignorância e mouquice de nossa parte podemos dizer que se tratam de uma mesma coisa, que se tratam de "filmes". Se todos nos apresentam 24 fotogramas por segundo, o modo como montam, modulam e enunciam tais imagens é díspare. Cada filme monta uma experiência diferente, configura uma noética muito particular e organiza um mundo de coisas assim e não assadas. Estética = Política? A mulher que tem a sua íris fatiada por Buñuel seria parte de um experimento na Neo-Tókyo de Akira. A viúva Julie não seria tão sorumbática caso vivesse na França de Jeunet. Kaneda não teria propósitos tão bem definidos no mundo onírico de Um Cão Andaluz. E a radiante Amélie não poderia co-existir com o mundo monocromático de Kieslowsli. Cada personagem, objeto, ator, jogo de câmera, plano de fundo é idêntico a seu mundo. Podemos dizer o mesmo da música e da literatura. O que faria Paulinho da Viola na orquestra de Carlos Gomes? Como soaria o piano de Ernesto Nazareth junto dos sintetizadores do Marcelo D2? E se pudéssemos ouvir a Ivete Sangalo cantando Chico Buarque junto da Bidu Sayão? Dowland, Buxtehude, Salieri, Beethoven, Listz, Debussy e Prokofiev - todos músicos clássicos, todos "eruditos", e todos dessemelhantes - fariam um bom jazz fusion, juntos? Jesus se inspiraria lendo o Manifesto do Partido Comunista? Como viveria o príncipe maquiavélico na politéia platônica? O que faria Kant para consolar as angústias de Werther? Como Freud interpretaria os sonhos de Josef K. e Gregor Sansa? O inimaginável, imagem impossível. Alocar um mundano para um mundo outro que não o seu causaria a entropia da parte recém-chegada, do ambiente a recebê-la ou de ambos. Choque de universos, de cosmos, de mundus, e mundos que não se colam (mas que podem se bricolar; a natureza da criação poética poderia ser investigada nestes termos, inclusive...). O que é uma música? E um livro? A resposta, mutatis mutandis, já foi dada no correr do parágrafo. Filmes, músicas e livros não são coisas, mas sim experiências políticas.

Podemos, insisto, definir a coisa tomada nela mesma, numa falsa imanência - assistimos comédia, ação, horror; ouvimos sambas, rocks, músicas clássicas; bebemos Skol, Brahma, Heineken; lemos Gogol, Wilde, Kafka; provamos yakissoba, macarronada, lámen -, o que nos legaria uma representação vazia, já que tomamos as coisas como elas se nos aparecem em sua obviedade fenomenal, já serializadas e entificadas em marcas, tipos, gêneros, categorias ("são todos filmes, músicas, cervejas, livros, comidas..."); ou dizer do modo como as suas partes se agenciam, configurando a sua totalidade, e como esta totalidade, imenso articulado de intensidades, produz essas mesmas partes. Falamos, agora, não em "filmes", mas em cinema expressionista por este jogar com contrastes (luz e sombra, forma geométrica e forma indefinida, bem e mal, belo e horrendo), ou em neo-realismo italiano (apresenta temáticas cotidianas em seus roteiros e, mais importante, constrói imagens puras, imagens que não demandam nenhuma ação, nenhuma resposta) ou outra estilística, podendo estas serem cômicas, de horror, que seja. Esse exercício de leitura, de inserção numa imanência pura pode e deve ser continuado para além dos procedimentos de montagem da imagem mesma (em exemplo, poderíamos supor que o neo-realismo surge produzindo imagens cinematográficas que não demandam reações dado o contexto pós-segunda guerra, a condicionar descrença quanto às ideologias totalitárias e organizadoras da vida, quaisquer que sejam). A imanência, então, clama uma filosofia da relação – filosofia da vida e de suas relações -, uma filosofia prática que não se pauta pela discussão do método (“como posso bem conhecer o objeto?”, “qual a melhor abordagem frente ao objeto?”...) mas da ação; se aquela pretende “conhecer absolutamente” antes de agir sobre as coisas (ou mesmo independente de tal ação), esta não quer conhecer para agir (visto que o mundo já é ação) mas inventar as articulações responsáveis por uma ação que já se dá, possibilitando mais e mais ação (logo, mais e mais conhecimento). Uma filosofia da imanência pura recusa as epistemologias identitárias (constituidoras das caixas-pretas do sujeito especialista, do objeto dominado e do leigo band à part) e transformam a teoria do conhecimento num exercício vital, de construção da vida, e vida construída à maneira duma obra de arte.

Arte, inclusive, vem de ars, termo latino que designa tanto um saber e as práticas, técnicas e obras que lhe são derivadas, quanto um ato, uma ação, uma energia, um movimento. Retomando Olavo Bilac, vemos que o poeta - tomado como o produtor de informações a serem fagocitadas por um terminal de recepção - deve enxugar o suor de sua testa, esconder as máquinas, guardar para si todo o trabalho hercúleo que teve na esculturaria de seu texto sacrossanto e só revelar, nos altares do templo, o objeto óbvio, a obra dada e acabada, pronta para o consumo do mortal. Os atos, ações, energias e movimentos que serviram de condição de suporte para o produto artístico nada tem de ver com ele, dizendo Bilac aos poetas que

Não se mostre na fábrica o suplicio
Do mestre. E natural, o efeito agrade
Sem lembrar os andaimes do edifício

Este terceiro parágrafo do soneto desenvolve um pouco mais o que já foi prenunciado no segundo ("Mas que na forma se disfarce o emprego / Do esforço..."). Se a arte é a boa forma, o templo solidamente erigido, o crítico profissional deve buscar os "andaimes do edifício". Não é este o trabalho a ser desenvolvido pelo leigo amador, já que ele opera noutro regime de verdade. O profissional absolutiza, o profissional conhece a informação adequada, a que melhor corresponde e representa o mundo dado. O amador, o artista leitor, por sua vez, relativiza o saber; não o afrouxa mas, ao contrário, fabrica o seu rigor colocando-o em relação de dependência com outros saberes e, assim, estabelece um plano de tendências, uma inserção na história, uma reunião de imagens que não equivale a um conjunto de informações definitivas sobre um algo; ao invés de - pretensão de filósofo - fundar e findar o conhecimento, esta reunião de imagens demanda consistência, demanda mais imagens, mais criação.

Bergson e William James, em suas constantes trocas de cartas, já falavam desse modo de produzir conhecimento que demanda não só uma nova metafísica mas um novo modo de exprimí-la, deixando a dedução lógica à parte e investindo na metáfora, na criação de impressões de conjunto, intencionando levar o leitor para além dum simples convencimento, levá-lo a experimentar todas as nuances, cadências e tonalidades do pensamento, fazê-lo acompanhar os percursos e sinuosidades do pensamento, recriando-os em seu espírito. Escrita musical, pictural, escrita-dança, imagem-movimento (e não simples imagem-em-movimento, simples coisa-que-muda). O belo livro de Bergson sobre o riso cômico é um bom exemplo desta operação do espírito, no qual o filósofo recusa de pronto as concepções acerca do cômico que pululam em seu tempo. Dá atenção especial à definição de Yves Delage, que trata o riso como um relação abstrata entre ideias no espírito, uma desarmonia entre o efeito e a sua causa. Apresenta o trabalho de alguns psicólogos como Ribot, Stanley Hall e Kraepelin e diz que, embora as conceituações destes não se excluam, elas respondem o problema de maneira distinta. A inculcação de Bergson não se dá pelas respostas oferecidas – “estão certas, estão erradas” – mas pelo modo das mesmas abordarem a questão. O campo problemático é resolvido, sempre, com o cerceamento dum conjunto-solução, conjunto geométrico, a compreender este e aquele caso. Traça-se um círculo e, dentro dele, vamos jogando as experiências específicas. Duas estranhezas: teremos situações cômicas que não estão dentro do círculo demarcado (estreiteza conceitual) e situações desgraçadas que inapropriadamente estarão (generalização indevida).

Esta metodologia intelectual satisfaz as exigências da lógica no que toca à tessitura dum enunciado firme e vigoroso. Dão a “condição necessária”, mas abstém-se da “condição suficiente”. Bergson, daí, procura em fontes diversas - “uma careta de palhaço, um jogo de palavras, um qüiproquó de vaudeville, uma cena de comédia fina” – não uma essência generalista mas os procedimentos de fabricação do risível. Ao invés de encerrar o cômico numa gaiola conceitual, fala do funcionamento da comicidade (e, mais profundamente, da intenção da sociedade-que-ri), o que dará ao leitor de sua obra O Riso não uma formulação receituária, mas um conhecimento flexível e útil – como o de um amigo frente a outro – sobre o cômico, forçando-nos e nos incentivando a encontrar e produzir efeitos semelhantes ao cômico-ele-mesmo. Ao invés de sabermos sobre a risibilidade, teremos de trabalhar, teremos nas mãos trabalho e mais trabalho para criar o riso. Uma filosofia que demanda não só condições lógicas para o acesso ao conhecimento, mas condições práticas, éticas.

A binaridade construída ao início do texto - linguagem poética, linguagem prosaica - pode dar a entender, como já colocado, que existem duas maneiras de se utilizar a linguagem, a mesma "coisa" chamada "linguagem" quando, em verdade, tratam-se de duas "linguagens" de naturezas distintas, duas metafísicas inconciliáveis em operação. Dito isto, não dá para reduzir a problemática, meramente, à proposição de duas modalidades de produção de conhecimento, já que fazer isto seria separar singularidades em duas categorias unitárias, visando bem identificá-las e representá-las (e este é o procedimento de apenas uma dessas modalidades). Como a poética pode se dar, então? Ela pode sempre se dar, oras, já que sempre se produz algo, mesmo no consumo. A exigência de exclusividade e separação fica para a geometria do cotidiano. A poética não como um modo de construír, mas de fazer, de facere, de sacrum facere, sacrificar e dissolver o objeto na temporalidade transespacial que lhe constitui. Um movimento rumo à interioridade das coisas, de ruptura com os hábitos intelectuais condicionados. Poetizar é, antes de estruturar poemas, de construir formas ditas poéticas, uma inversão no percurso natural do trabalho de pensamento. O ato de liberdade poética deve abandonar os conceitos prontos que estão à mão, no espaço, ou, melhor, deve temporalizá-los, reconstituir seu processo de constituição, de individuação, criar novas semânticas e até novas maneiras de se conceber o pensar, entendido não mais como a correlação de um sujeito com a realidade dada, mas, agora, como a inserção no movimento criador das imagens anteriormente tomadas por óbvias. Não é somente a verdade sobre o mundo que muda, mas é o próprio mundo, coletivo articulado de proposições, de homens e coisas, que muda, o próprio mundo é mudança, nos legando problemáticas, diferenciações e histórias. A poesia é apenas o ofício de não deixar a prosa, imersa em ignorância e estultícia, esquecer-se disto...