sábado, 17 de agosto de 2013

Um pensamento fora do eixo

A professora Sylvia D. Moretzsohn, pelo website do Observatório da Imprensa, enaltece a Mídia NINJA no tocante à sua "coragem da verdade" e ao seu modo de cobrir as manifestações de Junho de 2013, mas comenta que um jornalismo "assim", tão "ligeiro", tão "cobertura das ruas", tão "bruto e sem edição", tão "sem mediação e ética", não produz textos e matérias adensadas, coesas, coerentes e que respeitem tudo isso a que chamamos de boa linguagem e bom jornalismo, linguagem e jornalismo estes que nos ajudam a bem compreender e interpretar "o que está acontecendo", através deste filtro de informações e pintor da "realidade coerente" que é o jornalista minimamente responsável com o seu ofício. Ora, lembremos de todos os pensadores da cibercultura, das novas mídias, do pós-jornalismo etc. Não são eles que nos falam que esses novos tempos pedem novas maneiras de (se) escrever, de (se) ler, de produzir sentido? Não é já Platão, o primeiro filósofo a deixar uma obra escrita coesa e coerente, que nos incita a pensar a escrita como simulacro, nos incita a não levar a sério nem a escrita nem o homem que escreve, e que nenhum dos dois pode conter o pensamento, muito mais um exercício da alma na existência que um conhecimento técnico (muito mais um éthos, uma tribé, uma epimeléia, que uma tekhné)? Como pode um acontecimento - sempre fugaz e intempestivo - produzir outro tipo de escrita que não essa escrita fragmentada, "fractalesca", imagética, caleidoscópica que os "Ninjas" produzem? Uma escrita que demanda do seu leitor mais do que a alfabetização e a "consciência" de ocupar um dos dois lados das guerrilhas frias de trincheira (a ideologia dá lugar ao meme, e o tratado dá lugar ao aforismo), uma escrita que "dá trabalho" para o leitor, que o põe pra trabalhar, pra montar e articular e criar seu próprio sentido e sua própria força. 

O próprio texto, ao seu final, cita o grande cineasta russo Dziga Vertov pra falar desse modo fragmentado de produzir imagens, mas parece ignorá-lo e volta a defender o uso de uma "montagem orgânica" (seja Eisenstein-esquerdista seja Griffith-coxinha-reaça).

Ao invés dum tipo de escrita que respeite a acontecimentalização, o Observatório parece defender uma escrita de especialista, no qual uns e outros monopolizam os instrumentos para produzir - se não bens de consumo - sentidos, compreensões e subjetividades. E a isto chama de "responsabilidade do jornalismo". Em entrevista ao programa Roda Viva, Bruno Torturra e Pablo Capilé - entusiastas da MN e do Fora do Eixo (misto de casa cultural e coletivo, que intenta produzir artes, saberes e relações não mediadas pelo dinheiro) - são o tempo inteiro alvo de comentários sobre a legitimidade do jornalismo que eles produzem, um jornalismo de suposições, mas não de apurações (sendo Alberto Dines, apresentador da versão televisiva do Observatório, o único a não tentar encurralá-los); de militâncias, verdade - ao ponto de serem comparados aos próprios entrevistadores em suas épocas de panfletagem - mas muito pouco, ou quase nada, ou nada mesmo, refinado, além desta "modalidade jornalística" estar afiliada a um modelo de gestão muito confuso aos presentes. No mesmo programa, Capilé afirma que as verbas públicas - como os financiamentos a festivais, fundos de incentivo a cultura etc. - compõem um pequena porção do orçamento geral do FdE; A grand mídia, a exemplo do blogueiro Andre Forastieri, passa a questionar não só a qualidade das coberturas da MN, mas a sua autonomia, já que não há documentação que comprove essa independência financeira do FdE. "Se", afirma Forastieri, "é dinheiro de governos municipais e estaduais, governo federal e empresas públicas que bancaram e bancam a maior parte do orçamento do Fora do Eixo, não há como o FdE, ou a Mídia Ninja, se autoproclamarem independentes ou manterem a credibilidade que conquistaram". O que era, antes, uma simples questão pedagógica, uma questão de método ("isso é suposição ou apuração?", pergunta Mario Sérgio Conti a Torturra), passa a ser uma questão administrativa, interferindo a (falta de) autonomia administrativa (do FdE) na legitimidade metodológica (da MN). 

Levando o "jogo de acusar" um pouco mais a sério, a mídia orgânica diz ainda do fato de Pablo Capilé ser suplente do Conselho Estadual de Cultura, o que o faz perder (assim como, sofismando, o FdE, e a MN por tabela) a independência produtiva devido a sua relação com o PT. Confunde-se alhos com bugalhos, o ser com o não-ser, uma coisa com outra. Descartes instala um falso dualismo ao pensar Deus, o administrador do mundo, como algo de mesma natureza que o homem e a sua razão que, bem empregada, pode adequadamente prever e controlar as coisas. Condunde-se o pensamento-das/nas-coisas com a ação-sobre-as-coisas, diagnóstico que tanto Spinoza (ao pensar Deus não como res publica, como coisa pública, mas como natureza naturante) quanto Bergson (ao pensar em termos de Duração) já fizeram sobre essa tradição do pensamento que, ela sim, é confusa, ela sim confunde pensar com adequar(-se), pensar com o uso de protocolos e procedimentos "seguros".

Os estoicos já diziam do convertere, do dobrar-se, do verter-se, do criar-se um outro. Não é abandonar o Império que vai de encontro ao espírito (o que ainda mantém o falso dualismo cartesiano), mas, ao contrário, ser conselheiro do espírito do imperador (é Sêneca, o estoico político, como preceptor de Nero; é Sócrates e o seu amor por Alcibíades; é Platão em Siracusa). Estar ali como um "espião e cuidador de si", estar ali em duplipensamento, para usar uma expressão cara à distopia de G. Orwell. Os barões da mídia (chefes administrativos) e os donos da palavra "jornalismo" (as figuras de notório saber metodológico) são um e só sujeito transcendental; pensar fora deste esquema, "fora do eixo", é não entender, necessariamente, os espaços institucionalizados como os espaços privilegiados para a tomada de decisão, embora deles se nature (Spinoza) e se mature (Bergson).

Mas a questão, radicalizada, vai além: a noção de Cubo Cards dobra a ideia de capital e desmonetariza as relações de trabalho, tornando o Real uma segunda moeda, de segundo plano, moeda subvertida pelo coletivo FdE que investe noutras maneiras de viver que não as pautadas pelo dinheiro; a MN, para além de um grupo particular de sujeitos, é um modo distinto de se produzir informação e comunicação; a tal da "Universidade FdE", a despeito de ser constituída por pessoas e grupos e eventos específicos, constrói uma prática de produção de conhecimento à parte das universidades e dos seus departamentos e linhas de pesquisa. E isto tudo - Mídia NINJA, Univ. FdE, o FdE ele mesmo - sem abolir as mídias tradicionais, a Universidade padrão, a Economia Global etc. etc. O que está em pauta não é a defesa de cada um desses elementos, desses sujeitos e seus formatos, mas a iniciativa de se pensar um modo de fazer as coisas distinto do modo que já está aí, dado, e que sempre criticamos, hipocritamente, em nossos postos de trabalho. 

Numa entrevista realizada com Bruno Torturra pelo próprio Forastieri, o jornalista NINJA diz, a despeito dele e do produtor cultural Capilé, que "se estamos nos tornando personagens é porque a polícia, e a imprensa, está vendo a MN como uma pauta em si. Mas, insisto, nunca foi nosso plano. Estamos na rua para cobrir e passar a notícia. Não para ser a notícia." Assim como a mídia tradicional, ao perceber que era correr contra o furacão a sua tentativa de moralizar e criminalizar o "Junho de 2013", passou a querer coptá-lo, a dar-lhe sentido, visando sugar suas forças em pautas abstratas e insossas (a corrupção, o governo [municipal, estadual ou presidencial?], a PEC 37), a mesma foca agora a MN como a notícia nela mesma, como um personagem, uma celebridade, uma coisa, e não no que ela noticia e, mais importante, no seu modo de noticiar. A cineasta Beatriz Seigner causou um rebuliço quando, via Facebook, denunciou o FdE como algo entre uma seita, uma quadrilha e um centro de trabalho escravo, tudo isso articulado pela mente pérfida de Capilé, um canalha que capitaliza em cima de seu público e dos demais integrantes do FdE. Em resposta à postagem, Torturra escreve, em seu próprio mural, um texto que é a antítese da denúncia, uma defesa do Capilé/FdE e uma colocação real do problema, o de "gente em geral passiva, cínica em seu emprego, insatisfeita com o status quo, ao mesmo tempo salivando com a possibilidade de minar um laboratório de algo novo". O mesmo sujeito que enuncia que "temos de combater o sistema (econômico, midiático, educacional etc.) por dentro do sistema, sem abolí-lo" é o mesmo sujeito que não suporta o efeito de retorno dessa verdade e, no aparecer duma prática que minimamente "combata as coisas por dentro", sem, necessariamente, querer "abolir" nada, a conversa é logo alterada, criminosamente adulterada, fazendo com que até as iniciativas neste sentido sejam postas de lado na discussão (e na prática), numa iniciativa que, assustadoramente, mobiliza tanto a literatura jornalística da esquerda governista quanto da extrema direita.

Questão: o que a dobradinha Capilé-Torturra tem em comum com a trindade Assange-Snowden-Manning? O que a Mídia NINJA tem em comum com os Wikileaks? Resposta: o foco da discussão sobre eles está nos atores individuais, nas pessoas físico-jurídicas e suas atribuições pessoais, e não no que é exposto e noticiado por eles, nem tampouco no modo de exposição e noticiamento que poderia servir de incentivo e exemplo para outra maneiras de produzir o real. O contra-texto de Torturra, em verdade, é ele mesmo a indireta denúncia de que 1) uma coisa é o FdE, 2) outra coisa é o MN e 3) uma outra, ontologicamente distinta de ambas, é a iniciativa em subverter o conhecido, tatear o desconhecido e experimentar novas maneiras de criar e de viver. O dualismo Seigner-Capilé não é adequado para o pensamento (e sim para a ação de adequação, de encaixe e de resolução do problema). Atacar os indivíduos e seus grupos não deve ser confundido com minar o espírito criador que impulsiona tais iniciativas. Quando atacar o primeiro se confunde com o segundo - e o estado atual de coisas assim dispôs a realidade do FdE - faz-se necessário mudar as resistências e as estratégias de combate...