domingo, 2 de novembro de 2014

ἴδιώτης

Os gregos são exemplares jogadores e inventores de jogos.

Um desses jogos, o voto, é extremamente divertido e foi inventado a quase 2.500 anos; consiste no seguinte: uma galera chega e apresenta uma questão que é pertinente a todo mundo, mas cujos encaminhamentos não são consensuais; essa galera, então, formaliza esses encaminhamentos no mínimo de propostas possíveis e elege um candidato para verbalizar cada proposta aos demais presentes no parlamento (o lugar no qual os jogadores usavam da fala, da 'parole', para enunciar o jogo e suas regras atuais).

Depois de formalizados os candidatos e suas propostas, a galera decidia em qual proposta iria se vincular.

Por exemplo, digamos que uma outra galera, jogadores de outros jogos que não o do voto, tenha declarado guerra ao pessoal votante; os votantes, daí, se reuniriam e formulariam os encaminhamentos desse problema em duas propostas, minimamente - uma parte da galera acha que é prudente ir para a guerra antes que o inimigo se articule militarmente, enquanto uma outra parte da mesma galera ache mais interessante fortalecer os vínculos diplomáticos com esses estrangeiros e evitar o confrontamento físico, péssimo para ambos os lados. Que fazer, agora? Vota-se. "Levanta a mão quem prefere partir para o pau com esses estrangeiros!". Contabiliza-se. "Levanta a mão quem prefere ficar de boas e trocar uma ideia com esse pessoal de fora!" Nova contabilidade. "Levanta a mão quem prefere não jogar, pelo motivo que seja, o jogo do voto!". Passa-se a régua. A proposta vencedora é aquela que conseguir mobilizar o maior número de votos. E é agora que vem a graça e a diversão do voto.

Antes de jogar, todos fazem um pacto: não importa o "lado" que ganhe, todos os jogadores - sim, todos os jogadores - devem, gostando ou não, sendo a proposta escolhida pelo jogador ou não, vincular-se à proposta vencedora. Não precisa ser uma vinculação afetiva, e nem precisa-se militar pela mesma durante todo o tempo em que vingue (inclusive, militar contra ela através de outros jogos aparentados aos do voto e ao da palavra era incentivado pelos próprios jogadores), mas enquanto a decisão vigorar, estão todos - sim, todos - submetidos ao seu funcionamento.

Se "ir à guerra e lutar pelas batatas" venceu, todos irão à guerra e lutarão pelas batatas, pactuando com isso ou não. Se "ficar de boas e não responder ao chamado de batalha" foi a proposta vencedora, todos deverão ficar na sua e procurar outras alternativas ao perigo estrangeiro que não a guerra. Repito: faz parte do próprio jogo do voto ir contra e continuar lutando contra propostas e candidatos vencedores com os quais o jogador não se vincula, mas deve fazê-lo articulando outros jogos de palavra, de λόγος - não necessariamente o do voto, quase nunca o do voto - mas nunca jogos de força, de constrangimento, de retóricas vazias, enfim, jogos de violência e de poderio, no qual só um, e não muitos, e não todos, e não o todo, sairão ganhando.

O jogo do voto e da palavra levanta e produz, ele mesmo, inumeráveis pepinos - Qual a legitimidade do problema posto nos termos em que está a ser discutido? Qual critério usar para avaliar a vinculação proposta-candidato? Como relacionar a proposta em sua versão ideal e discursiva com a política concreta a ser efetivada? Quem efetivará a política vencedora? Nenhum desses pepinos, porém, é mais danoso em termos gerais que uma política que resolve seus litígios através da força. Numa política de força, o forte é quem ganha. Numa política de palavra, a palavra, e não somente o seu detentor, é que sai ganhando (definir "força" e "palavra" renderia outro texto).

Daí, o idiota (ἴδιώτης) ser tão execrado entre os jogadores gregos.

O idiota, o sujeito individual e privado, é aquele que se abstém de participar do jogo do voto. Não é o que não vota, porém: o sujeito que não o faz não o faz por um motivo, e o enuncia ao não votar (pode não pactuar com a postura do problema no parlamento, pode não se vincular a nenhum dos candidatos enunciando as propostas, pode não pactuar com uma política posta em termos de voto etc., mas sem-querer-querendo também está jogando o jogo da palavra, e enuncia, mesmo que implicitamente, uma postura que exclui o jogo de força e de violência). O idiota não é o que não vota, mas o que votando ou não quer fazer prevalecer seu mundinho individual, e o faz, claro, sem a envergadura do "político da força". Não sabe nem vive o que fala. Nem palavra nem força, mas apenas desvinculação e impostura.

Quando sua vontade e desejo individuais não prevalecem na forma do voto, o idiota quebra o jogo da palavra: diz que não quer mais jogar, que vai sair do país e não mais fazer parte dessa galera, que a votação deve ser refeita, que os votos devem ser recontados, que a galera não sabe jogar o jogo do voto, que parte da galera não sabe jogar o jogo do voto e deve ser retirada do jogo, que - o maior delírio de todos - o jogo da força e da violência deve prevalecer sob a forma de militarismo para que o jogo da palavra seja garantido e valide a sua opinião e tão só a sua opinião. Não suporta outras palavras que não as suas, o idiota. Não suporta a existência de um mundo e de uma existência neste mundo que não as suas.

O interesse pelo jogo do voto e da política da palavra aumentou exponencialmente nos últimos anos entre "a galera", isto é notável. Mas sejamos menos idiotas, por favor. Só isso - e tudo isso - basta para que o jogo possa continuar.

P.S.: o votante-que-votou-no-candidato-vencedor, ao riscar um traço no chão e caçoar do candidato alheio, dizendo que ali é a sua mãe, também está sendo um ἴδιώτης. Numa política da palavra, é a palavra, e só a palavra, que deve prevalecer.