domingo, 13 de dezembro de 2015

Uatu

Há pouco mais de dois anos, o presidente Rafael Correa tornou pública uma carta-conferência, resumo de uma fala sua proferida na Sorbonne. Mesmo a temática sendo datada ("conselhos" de um político equatoriano aos dirigentes europeus quanto à gestão da crise financeira), algo na estrutura de seu texto ainda interessa: sempre que as discussões tomam ares de dualidade, um sábio aparece do recanto de sua montanha e entoa cânticos heraclitianos, enuncia que devemos deixar de lado esse lance pendular de esquerda e direita, liberalismo e estatismo, idealismo e realismo, empirismo e racionalismo, Dilma e Cunha, Marvel e DC etc. etc., e apenas compreender as regras e condições que produzem um e outro lado de um mesmo jogo.

O fogo e o raio de Heráclito fizeram escola, e outros pensadores, como Spinoza, pavimentam a mesma estrada que nos ensina a "não julgar, mas compreender". Praticamente todo o academicismo do século XX segue essa mesma esteira anti-dualista: marxismo, fenomenologia, bergsonismo, vitalismo, behaviorismo, existencialismo, estruturalismo, cada um, a sua maneira, uma recusa à postura intelectual que equivale pensar a escolher um lado de uma trincheira. Palmas. Essa estrada possui um atalho, no entanto, a que chamarei de emcimadomurismo.

O emcimadomurismo é um pseudo-posicionamento que, recusando ocupar um e outro dos lados de um conflito, passa a equivaler pensar a não escolher nada, a não atualizar nenhum esquema de ação, real ou possível. O pensamento, ao se efetivar, vira o seu contrário: Winston e seu duplipensar se atualizam. Correa falava, à época do artigo, do neoliberalismo (resolução intelectual do conflito liberal v estadista) como um emcimadomurismo, um lobo político disfarçado de cordeiro neutro, suspenso das mundanidades, uma "ideologia disfarçada de ciência", pra usar uma expressão do próprio texto.

O emcimadomurista equivale ocupar escolas pelo direito à educação a invadir o patrimônio público, defender minorias a buscar privilégios, sustentar uma posição a ser imparcial e, portanto, falso. Ter um corpo, ocupar um lugar no mundo, dialogar com a tradição e com o outro tornam-se o falso, o ilusório e o erro para o emcimadomurista. Sua posição, ao se revelar, anuncia uma não-posição. Ser real e verdadeiro, para o emcimadomurista, é ser uma aparição sem aparição, um fantasma, uma cabeça acima do mundo. E o conflito se resolve, sem se resolver.

Heráclito, o ermitão, hesitava em falar: sabia que a diferença entre o sábio e o idiota nunca foi muito clara...