quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Je (ne) suis (pas) Charlie

Pensar é o exercício de legitimar uma vida alheia à vida do senso comum.

O que todos os pensadores tem em comum é o compromisso com uma ética distinta da ética banal e cotidiana; pensar é superar a condição humana. Neste sentido, somos todos devedores de Platão.

Toda a filosofia não passa de uma série de notas de rodapé ao platonismo, diria A. N. Whitehead.

Platão, ao dialogar com a Assembleia ateniense, ou quando desafia o tirano de Siracusa frente a sua corte, instaura uma discursividade longe das performances dos jogos da retórica e da escolha política. A doxa é seu alvo privilegiado - a opinião do homem que diz tudo e nada ao mesmo tempo, que diz o que quer e quando quer, que fala sem vínculo algum com o que foi falado, a opinião de qualquer um e de todo o mundo. A crítica platônica à democracia, antes de cair num elitismo aristocrático, reside aí: não há, na democracia, uma marcação institucional para a verdade e para aquele que a carrega; ou a verdade se dissolve na efervescência dos múltiplos discursos que caracterizam o demos, ou ela toma a forma do escândalo e da impiedade; ou ninguém lhe dará ouvidos ou, lhe dando alguma atenção que seja, acarretará riscos para o sujeito que a enuncia; em todo caso, não há lugar para o dizer-a-verdade na democracia, e democracia, inversamente, se define para o platonismo como a impossibilidade institucional para a prática da verdade.

A parrhésia é, necessariamente e ao mesmo tempo, uma epistéme e uma asebeía.

Esse saber e essa impiedade que caracterizam a prática da verdade é um rompante das possibilidades já estabelecidas e dadas de antemão para a escolha por parte do sujeito democrático. Laques e Nícias, embedidos numa discussão política, dual, sobre a educação dos filhos, jogam a querela para Sócrates: "pra quem vai o seu voto?", perguntam; Sócrates extrapola o jogo da política e se recusa a pactuar com uma discussão posta em termos de voto, de escolhas possíveis. Sócrates, o filósofo, não é o que sabe escolher, não é o que sabe a melhor resposta para o problema colocado, mas é o que, assumindo não saber, se abstém de ocupar um dos lados de uma guerrilha retórica e política, se abstém de jogar inteiramente o jogo binarista das escolhas e se abstém mesmo de pactuar com o modo discursivo do homem comum. Sua função no diálogo é, em especial, operar essa transformação discursiva, mesmo que não se chegue a posição alguma ao cabo da discussão, e principalmente quando não se chega.

Nous sommes Charlie, ainda que nenhum de nós tenha sido alvejado por Kalashnikovs no dia 7 de Janeiro, ainda que nenhum de nós tenha presenciado o fato, ainda que nenhum de nós tenha estado em território francês à época do massacre, ainda que nenhum de nós tenha lido uma página sequer do semanário francês antes de aderir à causa. Se se é ou não, que importa? Qual a relevância da escolha e da adesão a ela? Poucos conheceram o trabalho pregresso do Charlie Hebdo, ou mesmo de alguns dos vitimados, umzinho que seja, no massacre ocorrido em Janeiro; nenhum cartum erótico de Wolinski, nenhuma análise do keynesiano Bernard Maris, nenhum artigo da psicanalista Elsa Cayat, nenhum material, texto, imagem ou que seja foi consultado ou levado em conta pelo partidário que se identifica com isto ou aquilo. O homem de bem, ao se vincular à discussão, também parece se tornar especialista no islamismo e em questões do Oriente Médio, ainda que nunca tenha ouvido falar em Edward Said ou Alain Gresh. O voto já está feito, o jogo do voto já está colocado e a política das escolhas já está estruturada.

Esse batalhão de indivíduos que se identificam com Charlie equivale "não ser Charlie" com "pactuar com o massacre"; na esteira dessas identificações sensório-motoras, todos os islamitas se tornam terroristas, os já marginalizados estrangeiros em territórios franceses passam a ser alvo violento de segregação social, a imprensa livre e a liberdade de exprimir toda e qualquer opinião se tornam prioridade pública e a religião como um todo torna a figurar como força de alienação e signo da ignorância na modernidade.

Tupiniquins escolhem seu lado e se tornam Charlie; passam a se mobilizar apaixonadamente por temas e pautas que, dias antes, ignoravam; exigem extradição dos muçulmanos imigrantes, a suspensão do direito de acesso a políticas públicas por parte dos descendentes islamitas, o reforço do aparato policial no patrulhamento das favelas e zonas habitadas por muçulmanos, a conivência com programas de espionagem que, ora bolas, só querem garantir a segurança do cidadão que nada de ruim tem a esconder.

O soldado compra uma guerra que, assim como todas as guerras, não pertence a ele.

Contra o imediatismo da escolha, é comum um segundo pelotão tomar de assalto o campo de batalha - com a melhor das intenções - para, em seguida, apenas reforçar a política e a retórica dos binarismos. Se o primeiro comando confere a alcunha de terrorista a todo moi que não é Charlie, o segundo pelotão equivale sê-lo com reforçar as relações de exclusão que os islamitas e seus descendentes sofrem em território francês. Há alguma verdade, aí, mas não de todo.

O segundo grupo, o grupo dos que gritam je ne suis pas Charlie, parece bem mais informado (epistéme) e engajado (asebeía) que o seu antípoda, e de fato o é. Tentam entender o atentado, mapear suas origens e relativizá-lo. Os que não são Charlie trazem à baila o terrorismo de Estado sofrido pela Palestina por Israel, o massacre de dezenas de milhares de muçulmanos durante a Guerra do Iraque, a marcha hipócrita de dezenas de dirigentes na Place de la République, a legitimidade da sátira a um grupo social já marginalizado, a prisão - uma semana depois do massacre - do humorista francês Dieudonné M'bala por antissemitismo e apologia ao terrorismo ("papai, por que Charlie Hebdo é liberdade de expressão e não Dieudonné?"), os mal midiatizados atentados do Boko Haram na Nigéria etc.

É de se perguntar, também, por quê não houve manifestações cá no Brasil a despeito de Millôr, mas houve para o hebdomadaire: num humor semelhante, porém menos vulgar, ao do semanário, Millôr brinca sobre a origem de Jesus, filho de Maria com um centurião romano; a CNBB protesta oficialmente e Millôr é despedido do jornal 'O Cruzeiro'.

Ziraldo e Jaguar possuem histórias semelhantes.

Em caso mais recente, os irmãos Lino e Mario Bocchini, ao criarem o 'Falha de São Paulo', blog-sátira do Grupo Folha e do "jornalismo de esgoto" produzido por este, foram processados por criação explícita e intencional de confusão para com o leitor consumidor que, desavisado, poderia confundir o blog com material oficial do Grupo. O juiz conivente (cúmplice?) com a censura condenou os réus a uma multa de 1.000 reais por dia em que o blog esteve online. A única mobilização digna de nota foi um tumblr criado pelos leitores do blog para "impedir que a Folha, com sua liminar absurda, tirasse do ar toda referência a ele; e pra mostrar para quem não conhecia que a reação do jornaleco é completamente despropositada". Je suis Falha?

Os "blogueiros sujos" também se viram desassistidos pela opinião pública em sua própria batalha contra um gigante midiático.

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"Uma tia ninfomaníaca e suas sobrinhas estão de luto por causa da morte de um cachorro. Diretor de famosa rede de TV e seu amigo pilantra fingem que são primos e vão consolá-las" – escreve o Sr. Cloaca, pseudônimo do editor do blog ‘Cloaca News – as últimas do jornalismo de esgoto’, como sinopse ao filme ‘Solar das Taras Proibidas’; abaixo do texto, o vídeo em questão extraído do ‘Youtube’. A piada estava pronta: o nome do ator principal da película pornô é Ali Kamel. O Diretor Geral de Jornalismo e Esporte da Rede Globo, homônimo do ator, mobiliza um processo contra o titular do blog por "campanha difamatória". Oito advogados trabalham no processo. Rodrigo Vianna, do blog ‘O Escrevinhador’, aproveita a tirada do ‘Cloaca News’ e escreve uma série de textos sobre a homonímia, afirmando que "pornográfico, sim, é o jornalismo que Ali Kamel pratica tantas vezes à frente da Globo". Munindo-se de um "furor processório" – termo cunhado por Rodrigo – Kamel (o diretor, não o ator) iniciou ações judiciais contra o Sr. Cloaca, contra o próprio Rodrigo, e mais um punhado de blogueiros empenhados em "difamá-lo" (Luiz Carlos Azenha, do ‘Viomundo’; Marco Aurélio, do ‘Doladodelá’, Luiz Nassif, Paulo Henrique Amorim e outros).

Rodrigo Vianna teoriza que a estratégia de Kamel é o contra-ataque, mas fora do debate público, de conteúdo, como foi iniciado, partindo para a revanche judicial e o sufoco financeiro.

O Sr. Cloaca, acima da coluna lateral de sites amigos do seu, sites "por quem botamos a mão no fogo", dispõe o seu IP – 201.37.94.163 – e, acima do seu IP, uma chamada em letras garrafais: PROCESSE O CLOACA NEWS.

Miguel do Rosário, do blog ‘O Cafezinho’, sugere algum tipo de associação organizada para que os blogueiros progressistas possam se defender de ataques como esse; e coloca que Ali Kamel, o ator, "é que deveria nos processar por compará-lo a um sacripanta".

Somos todos blogueiros sujos?

Mais uma vez, que importa? Qual a relevância da escolha e da adesão pessoal a ela?

O problema do segundo pelotão em sua batalha contra o batalhão do imediatismo é transformar sua epistéme e sua asebeía em performance retórica e política, em mais uma opção a ser escolhida no jogo do voto, criando um intelectual sabichão, um sophos, um sophisté que entendeu as minúcias, detalhes e meandros do jogo da palavra e se resume a bem escolher, a bem falar e a convencer a opinião pública do que considera como mais verdadeiro. O sofista é o maior inimigo do filósofo pois é o seu fac-símile, seu duplo. O essencialismo e a identificação, por vezes, são estratégicos, mas não quando se afiguram como tática única para resistir à mediocridade de uma doxa sem espírito crítico algum.

O massacre no prédio do semanário Charlie, a demissão de Millôr, as perseguições ao Pasquim, o processo dos autores da 'Falha...' e dos blogueiros sujos não são possibilidades de escolha, de aceitação ou de concordância, de repulsa ou de discordância; são acontecimentos. Todas as coisas são, antes de coisas, acontecimentos.

"Que importa escolher?" é uma questão de método. À título de exemplo, o cristianismo.

* * *

Para além do ser ou não ser cristão (com todas as implicações de época que o não-Ser carrega; não-cristão é pagão? é ateu? é judeu? é islamita?), o cristianismo é um acontecimento, e pouco importa - para o acontecimento e para o sujeito que a ele tenta se vincular - se se concorda com o mesmo ou não, se se pactua com o mesmo ou não. Em pleno século I, vários grupos judaicos se reuniam e montavam estratégias de resistência contra o parasitismo de Estado perpetrado por Roma; um desses grupos terroristas, o cristianismo, pensava uma resistência não-militarizada ao poderio romano, já que seu reino, diziam os cristãos, "não é deste mundo".

Quando se considera o cristianismo um acontecimento, pouco importa se, dois mil anos depois, um qualquer brada aos quatro ventos je suis chrétien ou je suis athée. Não se trata de escolher os lados de uma querela historicamente constituída (ser cristão ou ateu? cristão ou pagão?) nem tampouco retomar e tentar reatualizar a sua origem perdida (o "verdadeiro cristianismo"), mas, ao contrário, interpretá-la e reconhecê-la em seu tempo, trazendo instrumentos para a nossa própria prática, nossa própria produção de acontecimentos.

Na mesma esteira, não faz sentido um qualquer dizer-se liberal ou estadista, defensor do livre mercado ou de um estado de bem-estar social; essa questão - sou isso ou aquilo - não faz sentido para a maioria dos sujeitos que com ela se metem. Um ministro ou chefe do Executivo se vê diante de um documento; se pergunta se deve autorizar o financiamento de diversos bancos privados para evitar uma quebra no sistema financeiro ou se deve abster-se, enquanto cargo público, de intervir na economia; o dualismo 'liberal ou estadista' só faz sentido, pragmática e estrategicamente, para ele, e apenas neste momento. A maioria dos demais cidadãos escolherá um ou outro lado da fronteira apenas de maneira performática, sem qualquer implicação ou ganho tanto para a questão quanto para o sujeito que se mete com ela. A este sujeito, abstraído da ação imediata e sem uma caneta em punho para assinar (ou não) um documento, cabe a liberdade para pensar o liberalismo e o estatismo, pensar as condições que os tornam legítimos e, nessa interpretação, sempre relativa (já que se relaciona às condições do próprio sujeito-que-pensa), produzir novos conceitos, novas noções que colem perfeitamente a demandas atuais.

Agostinho lê Platão e produz uma irreversibilidade paradoxal: ao mesmo tempo em que Agostinho, justamente por tentar aproximar o seu tempo do tempo de Platão, por tentar trazê-lo ao tempo presente, cria História, cria aquilo que visava abolir; além disso, nunca mais se lerá Platão do mesmo jeito.

Depois de Tomás de Aquino, jamais se leu Aristóteles do mesmo jeito.

Depois de Descartes, Hegel e Kant, jamais se leu filosofia do mesmo jeito etc.

Cada pensador visa legitimar uma vida diferente da vida e dos esquemas de escolhas atuais, e se tanto diferem entre si nas propostas e decisões tomadas, ao menos nisto concordam: pensar é sempre mais, bem mais, é o ir além.

Interpretar é sempre superar a condição de leitura e entendimento atual e trazê-la para seu próprio tempo, tornando-a potente, ativa, e não mais um simples esmeril, lembrança de museu ou ornamento intelectual.

Chega de doxa; mas chega, também, de um saber e de uma impiedade transformados em simples retórica e performance política.

Pensar é produzir acontecimentos.