sábado, 13 de agosto de 2011

Carta a um rato

Tenho as mesmas dores no fígado que tu, camarada. E, assim como tu, sou um sonhador. Desses que perdem dias, anos, vidas inteiras a planejar vinganças para aqueles que, num tempo perdido, neles se esbarraram. Gastamos litros de saliva para condenar os homens brutos - sim, os homens brutos! - impulsivos e desapegados à prudência. Homens de ação, como tu o chamas! Mas não são eles os abençoados pela natureza? Não são esses homens pouco sensatos os filhos da verdade? Se lhes ofendem, já se encontram dispostos para o chiste, o soco, a faca, o sangue, a morte e a vida; nós, os de consciência refinada, nos pomos a pensar. Se lhes suscitam desejos na carne, já se encontram dispostos para o cortejo, a bebida, as risadelas, o beijo, o coito e o gozo; nós, os de consciência refinada, nos pomos a pensar. Se lhes... Creio que tu não precisas de mais imagens e exemplos. Tuas barbas não são maiores que as minhas à toa, fato. Mas veja só: a natureza e a verdade pariu esse homem desarrazoado. Eu e tu, do contrário, fomos concebidos numa biblioteca ou num laboratório ou sabe-se lá em qual lugar alheio ao império do real. Somos um império dentro do império. Olhamos para esse homem, esse búfalo ignorante, de cima, de lado, mas nunca de frente. Não sabemos lhe afrontar e, mesmo de cima (ou de lado), sempre lhe cedemos passagem. Somos ratos, eu e tu, e por isto nos damos tão bem. A ignorância, aí, é benção, amigo. Ignorar passados, presentes e futuros não é tarefa para nós, homens de memória e de decoro. Homens de gnose e de pensamento. Devemos desenvolver a ignorância? Não, não é isso que lhe recomendo, meu velho. Temos a mania de tagarelar (ainda que seja só para nossa própria consciência) astuta e maliciosamente de tudo, de todos e além. Mas nossa maldade não ultrapassa as fronteiras da lalação. Arquitetamos nossas torturas, mas não sabemos erigí-las. Somos arquitetos, e não pedreiros. Pena. Nem a estupidez conseguimos realizar. Somos potentes, mas não reais. Cheios das virtudes, mas sem boas ações. Não temos a maldade da vida: não comemos a carne, não comemos a folha. Viveríamos de luz, se pudéssemos. Mas a vida nos devora a todos, vorazmente, insaciávelmente. A vida nos come, e nos come por detrás, a mim e a tu, também. Desconhecemos a força da ignorância e a alegria da maldade. Somos bons e, por isso, somos feios. É a feiúra do estupor, da flor que brochou, do coito que se interrompeu. Que nos resta a fazer neste mundo, já que nada sabemos fazer? E, para piorar, ainda somos feios. Só sabemos falar, eu e tu. Água numa peneira, como tu mesmo o dizes. Devemos nos calar? Sim. Sim!? Não, claro que não! Devemos é falar, mais e mais. Se é impossível (ou pior: sé é inútil!) falar das coisas - já que a coisa nos escapa a nós, homens da inteligência - falemos, ao menos, sobre essa impossibilidade de se falar das coisas. Se não sabemos usar as espátulas, preparar os rebocos e equilibrar os tijolos, que as palavras nos sirvam de ferramentas, então. Eu escrevo para tu, agora. E escrever não é apontar um estado de coisas, mas sim montar uma armadilha para o leitor, um alçapão de enunciados, como um marujo que não leva o tesouro consigo, mas rabisca e marca xis num papelão velho a habitar garrafas. Tudo isso para que seus convivas refaçam sua caminhada trôpega e povoem a ilha deserta na qual habita solitário. O ignorante não quer saber de nós, porém. Sejamos malvados, pois, e montemos nossas armadilhas para retirar-lhes o que nos foi negado: uma vida de plácida e translúcida ignorância. Se eu desejo ser um ignorante? Não. Só quero receber as visitas do continente, em minha ilha. E sorrir. E não mais ser feio. Se a ignorância do homem-búfalo não é negativa, não é ausência, a malvadez do homem-rato também não o é. É a nossa virtude maior, a armadilha, o veneno e a furtividade. Não empunhamos espadas, e sim punhais. Somos ratos e gostamos de sombra e água fresca, como todo bom punguista. Uma ode e uma recomendação à maldade, essa minha carta, caro camarada. À maldade, sim, e não à ruindade. Esta é coisa de búfalo medíocre. Nossa ontologia roedora não nos dá coragem, certezas e caminhos. O rato é um jogador, todo bom jogador é um ratinho, e um ratinho malvado. A melhor das coisas que o rato pode aprender do seu irmão búfalo: a aposta. É substituir a sua covardia exangue não por uma coragem estúpida e ignóbil, mas pelo jogo. Malvadear não é desconstruir e prejudicar. Malvadear é armar alçapões, inúmeros alçapões, que nos suspendam da solidez e nos tornem menos ignorantes; e, ao mesmo tempo, não nos façam perder contato com a crueza do mundo que nos come por detrás. Bebe, companheiro, bebe. E piora tuas dores do fígado. Aposta. Perde tudo. Bebe mais para não esquecer de tudo isso, das tuas dores, de tuas apostas, de tua vilania. És um vilão, mas não és gente ruim, amigo. Nem eu o sou. Mas somos ratos, e ratos malvados, e ratos que apostam, e ratos que bebem. Nunca seremos búfalos: a graça não nos brindou com o dom da ignorância. Mas não tenhais inveja. Deixe-a para os simplesmente ruins. Vamos beber - vamos! - e produzir nossas próprias doenças, tirar delas nossas forças e fazer ruir as tábuas da verdade. Um brinde. Um abraço. E adeus...

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Silence

Uma vez em Amsterdã um músico holandês me disse: "Deve ser muito difícil pra você escrever música na América estando tão longe dos centros da tradição". Fui obrigado a lhe responder: "Deve ser muito difícil pra você escrever música na Europa estando tão perto dos centros da tradição".
John Cage