domingo, 2 de novembro de 2014

ἴδιώτης

Os gregos são exemplares jogadores e inventores de jogos.

Um desses jogos, o voto, é extremamente divertido e foi inventado a quase 2.500 anos; consiste no seguinte: uma galera chega e apresenta uma questão que é pertinente a todo mundo, mas cujos encaminhamentos não são consensuais; essa galera, então, formaliza esses encaminhamentos no mínimo de propostas possíveis e elege um candidato para verbalizar cada proposta aos demais presentes no parlamento (o lugar no qual os jogadores usavam da fala, da 'parole', para enunciar o jogo e suas regras atuais).

Depois de formalizados os candidatos e suas propostas, a galera decidia em qual proposta iria se vincular.

Por exemplo, digamos que uma outra galera, jogadores de outros jogos que não o do voto, tenha declarado guerra ao pessoal votante; os votantes, daí, se reuniriam e formulariam os encaminhamentos desse problema em duas propostas, minimamente - uma parte da galera acha que é prudente ir para a guerra antes que o inimigo se articule militarmente, enquanto uma outra parte da mesma galera ache mais interessante fortalecer os vínculos diplomáticos com esses estrangeiros e evitar o confrontamento físico, péssimo para ambos os lados. Que fazer, agora? Vota-se. "Levanta a mão quem prefere partir para o pau com esses estrangeiros!". Contabiliza-se. "Levanta a mão quem prefere ficar de boas e trocar uma ideia com esse pessoal de fora!" Nova contabilidade. "Levanta a mão quem prefere não jogar, pelo motivo que seja, o jogo do voto!". Passa-se a régua. A proposta vencedora é aquela que conseguir mobilizar o maior número de votos. E é agora que vem a graça e a diversão do voto.

Antes de jogar, todos fazem um pacto: não importa o "lado" que ganhe, todos os jogadores - sim, todos os jogadores - devem, gostando ou não, sendo a proposta escolhida pelo jogador ou não, vincular-se à proposta vencedora. Não precisa ser uma vinculação afetiva, e nem precisa-se militar pela mesma durante todo o tempo em que vingue (inclusive, militar contra ela através de outros jogos aparentados aos do voto e ao da palavra era incentivado pelos próprios jogadores), mas enquanto a decisão vigorar, estão todos - sim, todos - submetidos ao seu funcionamento.

Se "ir à guerra e lutar pelas batatas" venceu, todos irão à guerra e lutarão pelas batatas, pactuando com isso ou não. Se "ficar de boas e não responder ao chamado de batalha" foi a proposta vencedora, todos deverão ficar na sua e procurar outras alternativas ao perigo estrangeiro que não a guerra. Repito: faz parte do próprio jogo do voto ir contra e continuar lutando contra propostas e candidatos vencedores com os quais o jogador não se vincula, mas deve fazê-lo articulando outros jogos de palavra, de λόγος - não necessariamente o do voto, quase nunca o do voto - mas nunca jogos de força, de constrangimento, de retóricas vazias, enfim, jogos de violência e de poderio, no qual só um, e não muitos, e não todos, e não o todo, sairão ganhando.

O jogo do voto e da palavra levanta e produz, ele mesmo, inumeráveis pepinos - Qual a legitimidade do problema posto nos termos em que está a ser discutido? Qual critério usar para avaliar a vinculação proposta-candidato? Como relacionar a proposta em sua versão ideal e discursiva com a política concreta a ser efetivada? Quem efetivará a política vencedora? Nenhum desses pepinos, porém, é mais danoso em termos gerais que uma política que resolve seus litígios através da força. Numa política de força, o forte é quem ganha. Numa política de palavra, a palavra, e não somente o seu detentor, é que sai ganhando (definir "força" e "palavra" renderia outro texto).

Daí, o idiota (ἴδιώτης) ser tão execrado entre os jogadores gregos.

O idiota, o sujeito individual e privado, é aquele que se abstém de participar do jogo do voto. Não é o que não vota, porém: o sujeito que não o faz não o faz por um motivo, e o enuncia ao não votar (pode não pactuar com a postura do problema no parlamento, pode não se vincular a nenhum dos candidatos enunciando as propostas, pode não pactuar com uma política posta em termos de voto etc., mas sem-querer-querendo também está jogando o jogo da palavra, e enuncia, mesmo que implicitamente, uma postura que exclui o jogo de força e de violência). O idiota não é o que não vota, mas o que votando ou não quer fazer prevalecer seu mundinho individual, e o faz, claro, sem a envergadura do "político da força". Não sabe nem vive o que fala. Nem palavra nem força, mas apenas desvinculação e impostura.

Quando sua vontade e desejo individuais não prevalecem na forma do voto, o idiota quebra o jogo da palavra: diz que não quer mais jogar, que vai sair do país e não mais fazer parte dessa galera, que a votação deve ser refeita, que os votos devem ser recontados, que a galera não sabe jogar o jogo do voto, que parte da galera não sabe jogar o jogo do voto e deve ser retirada do jogo, que - o maior delírio de todos - o jogo da força e da violência deve prevalecer sob a forma de militarismo para que o jogo da palavra seja garantido e valide a sua opinião e tão só a sua opinião. Não suporta outras palavras que não as suas, o idiota. Não suporta a existência de um mundo e de uma existência neste mundo que não as suas.

O interesse pelo jogo do voto e da política da palavra aumentou exponencialmente nos últimos anos entre "a galera", isto é notável. Mas sejamos menos idiotas, por favor. Só isso - e tudo isso - basta para que o jogo possa continuar.

P.S.: o votante-que-votou-no-candidato-vencedor, ao riscar um traço no chão e caçoar do candidato alheio, dizendo que ali é a sua mãe, também está sendo um ἴδιώτης. Numa política da palavra, é a palavra, e só a palavra, que deve prevalecer.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Conectar, representar, falar II

Esse esquema tripartite composto pela fala, pela representação e pela conexão é por demais rico e complexo e, como toda complexidade, levanta mais questionamentos que soluções.

O primeiro fio a ser desemaranhado é a confusão que vincula toda discussão sobre técnica aos seus acessórios tecnológicos, confusão que identifica fala tão-só com a operação ruidosa emitida pela boca de seu sujeito, faz equivaler representação com o significado abstrato de uma realidade concreta grafado numa superfície de inscrição qualquer através de signos convencionados, e entende conexão como o acesso de um armazenador-processador de dados aos dados de outro armazenador-processador. Fala não é (apenas) conversa, canto, fofoca, discurso; representação não é (apenas) escrita, pintura, brasões; e conexão não é (apenas) acesso à internet.

O aumento exponencial das performances dos instrumentos eletrônicos nas últimas décadas, aliado à também exponencial queda dos preços desses produtos, torna o acesso tecnológico um quase sinônimo de inclusão social; no entanto, e mais além, essa crescente naturalização do digital na cultura - assim como a fala e a escrita nos constituem enquanto sujeitos que falam e que leem de há muito - torna opacos os próprios processos sociais que constituem o digital, operando uma transformação de todo o campo problemático que constitui esse cenário em substâncias, instrumentos, práticas, instituições, estados de coisas. Esse processo de reificação do problema nos termos e respostas que o mesmo agencia também se deu e se dá, constantemente, na comunidade oral que a fala suporta e na cultura da representação condicionada pela escrita.

O "pólo tecnológico" e o "pólo social" compõem, juntos, um mesmo campo sociotécnico.

A técnica é, sempre, uma sociotécnica.

Confunde-se o virtual, enquanto um coletivo articulado de proposições, com o real, a sua interface.

Ora, entender a técnica e a tecnologia como simples instrumental é nos colocar numa perspectiva em que o sujeito do conhecimento já está pronto para os atos de escutar, aprender e enunciar a verdade. Equivaler a técnica a suas tecnologias é suspender a prática ascética como condição para o exercício do pensamento e do dizer-a-verdade. 

Para um autor como Pierre Lévy, usuário convicto do esquema tripartite, a abordagem tradicionalista da comunicação – na qual o comunicar teria, como função primeira, a transmissão de informações, o contexto intervindo, apenas, como um auxiliar na interpretação das mensagens dirigidas – deve ser substituída por uma teorização que considere o ato de comunicar como definidor, fundamentalmente, da situação que significa e valora a troca de mensagens; agir e comunicar são sinônimos, sim, mas apenas quando consideramos o contexto como o próprio alvo da comunicação, dos atos-de-comunicação. Dentro de escalas variáveis (pessoas, aparelhos, técnicas, organizações), os atores da comunicação e os elementos das mensagens que emitem (falas, objetos, planejamentos, dispositivos) criam e recriam universos de sentido, mundos de significação.

A estrutura da retórica, da gramática, do hipertexto enfim, não dão conta, tão-só, dos processos comunicativos, mas sobretudo dos processos sociotécnicos. A retórica, a gramática e o hipertexto como metáforas, ou melhor, como analogias, um análogon, para todas as esferas do real que tratem da produção, da distribuição e do consumo de bens e significações.

O segundo fio: pensar que fala, representação e conexão remetem a espaços alheios e paralelos ao espaço real.

São comuns as análises que tomam a internet como sinônima de sua interface digital, a internet como um ciberespaço, e o ciberespaço como um "espaço virtual" entendido como negativo do real; ou então a linguagem, seja da fala seja da escrita, como criadora de um simulacro que duplica a existência em "mundo em si mesmo" e "mundo como representado por nossas faculdades" (um representacionismo, um kantismo vulgar).

O engodo tem a sua razão-de-ser. O internauta, desejoso em aprender um pouco de música, pode facilmente “ter acesso” a muita informação com um e outro mouse click: história dos estilos, organização dos instrumentos numa orquestra moderna, procedimentos para a leitura de pautas, cifragem europeia, luthieria; uma simples busca no Google o apresenta a bibliotecas e compêndios sem fim. Ele pesquisa um manual de teoria musical, lê um artigo sobre o nascimento da noção de harmonia, assiste interpretações históricas no Youtube, faz download de discos diversos, interage com outras pessoas num fórum digital dedicado à música instrumental. Depois disto tudo, quando, numa roda de conversa, o perguntam onde aprendeu sobre, exemplo, as diferenças técnicas e históricas entre o tango e o flamenco, o barroco e o classicismo, o choro e o samba, ou onde ele, outro exemplo, aprendeu a interpretar certa música do cancioneiro popular numa versão mais elaborada, responde: "na internet, oras". E a resposta, embora correta, opera um falso problema através da noção de espaço (o onde da questão).

Pensar a internet como um espaço (ou um conjunto de espaços, de sites) no qual impera a livre produção de conhecimento e o compartilhamento de informações é assumir uma posição que não engendra novidade alguma se não se remodela, com este movimento conceitual, a própria ideia de espacialidade. Afinal, se o internauta aprende japonês com um amigo nipônico (por telefone e Skype) e o perguntam na mesma roda de conversa onde (e quando) o mesmo aprendeu o idioma, seria estranho se se respondesse "no telefone" ou "no Skype" (e ficaria ainda mais clara a impossibilidade de se precisar uma coordenada temporal para a atividade). O telefone e o Skype estruturam, isso sim, a ecologia cognitiva que condiciona o aprendizado do internauta (o análogon desta rede), que não é o aprendizado simples de um organismo, de um eu, mas a atualização dum coletivo em virtualidade, dum campo de imagens numa consciência. Idem para a internet; a noção de internet pensada como um lugar – ou, pior, como um objeto tecnológico – só é válida se se pensar o telefone, a televisão, o rádio e tantas outras tecnologias da informação como outros lugares (o que não faz muito sentido). Se, por insistência, mantém-se a internet como um espaço, é mister considerá-la como um espaço trans-local, um trans-lugar, um espaço-trans-espacial, espaço-entre-espaços, espaço ciborgue, ciber-espaço (aqui, não mais um "espaço virtual"). Logo, o internauta, o sujeito conectado, o ciborgue, é trans-egóico e se identifica com o coletivo articulado de tecnologias que o condiciona.

O mesmo para a fala e para a escrita. 

A fala articula e propicia modos de sociabilização literalmente impensáveis sem a mesma, fazendo o tempo operar numa circular infinita e jogando a memória para fora do corpo orgânico, regulada através de rituais, festas, cânticos, mitos, lendas, parábolas, histórias.

A escrita opera outra torção no tempo, transformando-o numa reta ascendente e progressiva a que comumente chamamos de História, colocando nossa memória e nossos dizeres em tábuas, pergaminhos, paredes, livros; com a impressão da linguagem numa superfície de inscrição solidificada, noções como Verdade ou Lei ou Estado se tornam possíveis (não apenas "mais prováveis"; se tornam de fato possibilidade pensável) e, numa mesma esteira, o nomadismo se estanca, a caça e a coleta cedem lugar à pecuária e à agricultura, e o sedentarismo humano pode se dar. 

Essa redução da técnica às tecnologias que a mesma modula também torna opaca a própria discussão acerca dos instrumentos tecnológicos, já que dentro de um mesmo "registro acessorial" podem estar articuladas realidades muito pouco afins umas às outras. A lalação do bebê, o discurso do político, a oração religiosa, o canto espiritual, o grito de guerra, são todos fala; a escrita rúnica, em sua estrutura e propósito, pouco tem de ver com a cuneiforme que pouco tem de ver com a hierática que pouco tem de ver com a alfabética grega (esta talvez tenha sido a primeira a "fazer o texto falar"); mesmo na esteira desta escrita representativa oriunda dos gregos e dos latinos, é mister separar a escrita do poeta da escrita do romancista da escrita do patrístico da escrita do escolástico da escrita do cientista, e dentro de cada uma dessas escritas, a da poesia, do romance, da espiritualidade, da didática, da ciência etc., temos a manifestação de estilos e mais estilos, e estilo é um modo específico de dobrar a escrita, torcer o seu projeto original, jogar com sua gramática intestina, produzir uma realidade não dada com os elementos textuais conhecidos e reconhecidos, estilizar a escrita é traí-la, mas traí-la como um espião, traí-la sem ser descoberto e, paradoxalmente, criar o novo dentro do conjunto velho e sob a aparência do velho, para dele não ser expulso e nulificado; mesmo criações não-escriturais - como as da pintura, do cinema, da música - também possuem estilos, possuem modos consolidados e modos por vir de forçar suas estruturas de expressão e recolocá-las, sempre e a todo momento.

Assim como as tecnologias digitais, tanto fala quanto escrita recolocam nossa relação com o espaço, o tempo e a memória. Habitamos "realidades virtuais", sim, mas isto desde que começamos a falar: o bebê em seu esforço gaguejante para habitar um mundo que ainda não é seu apenas reatualiza a cena e o esforço de Adão, o primeiro homem a receber o sopro da linguagem e sair do paraíso do puro real. O processo de virtualização - a aparente suspensão do espaço e do tempo ditos "reais" - que tanto creditamos à conexão digital já existe na fala.

O termo "tecnologias do virtual", termo comumente usado para se referir às "tecnologias do digital", está mal aplicado no plano de discussão que estamos colocando, já que o virtual não equivale a um estado específico de coisas, mas a uma "elevação à potência de uma unidade considerada", o seu "complexo problemático", o seu "nó de tendências", seja essa unidade um mobile da Apple ou um canto tribal, um PC ou uma ponta de lança feita de pedra polida, uma pintura modernista ou as pichações de Lascaux.

Indo mais a fundo nessa noção de virtual, vemos que a própria divisão entre oralidade, escrita e internet é uma divisão categorial, estanque, típica da cultura universalizante, generalista e burocrática da representação. Quem a constrói e esquematiza é um sujeito-que-escreve, e só no cenário sociotécnico construído pela escrita essas três instâncias se dão como realidades estanques e independentes; afinal, quem escreve também fala, e quem se conecta o faz lendo e escrevendo; no entanto, é característico da cultura escrita deslegitimar os oralistas e seus modos de sociabilização (chamamo-os de primitivos, selvagens, analfabetos), enquanto a internet recupera um modo de funcionar aberto à instabilidade e à deriva que o projeto universalizante da escrita deixou de lado. 

Fala, representação e conexão só são três coisas distintas, só são três coisas, três objetos ou três estruturas para o sujeito-que-escreve.

Desafiado o problema - isto é, desvincular a lógica da técnica de seu correlato tecnológico e abandonadas as análises sobre a técnica de caráter meramente instrumental ou espacial - está dado um primeiro passo para uma discussão realmente seminal acerca da técnica e da tecnologia. Porém, esse movimento conceitual torna o esquema tripartite de P. Lévy uma abstração universalista que não tem lugar dentro do próprio plano de discussão que o autor construiu.

Falar, representar e conectar apareceram, durante todo o texto, como três lógicas técnicas, três modos de virtualização.

O próprio autor assume que esses blocos estanques não nos permitem distinguir suas especificidades. A disjunção "com ou sem escrita", por exemplo, "mascara o uso de signos pictóricos, já bastante codificados em algumas sociedades paleolíticas (e que portanto são classificadas entre as culturas orais), omite a diferença entre escritas silábicas e alfabéticas, oculta a diversidade dos usos sociais dos textos etc." Não são categorias ontológicas, mas "disjunções úteis", artifícios para chamar a atenção do leitor aos elementos técnicos e às restrições materiais que condicionam o pensamento e as instituições sociais. São espacialidades.

Essa divisão, assim sendo, só faz sentido metodologicamente, é uma divisão com fins meramente didáticos.

Ilusões e necessidades da escrita.

Wittgenstein é quem ensina: deve-se jogar a escada após ter subido por ela.

Abandonemos a noção de espaço e, em seu lugar, coloquemos a noção de espacialidade como centro da discussão, entendida como o estado de coisas atual construído pelas nossas injunções metodológicas. Fala, escrita e internet são três lógicas, mas não três estruturas ontológicas; poderíamos, ao invés, separar o problema em sociedades de prosa e sociedades de poesia e, desta feita, encontrar os modos de racionalidade, de governo e de espiritualidade próprios que compõem e são compostos por cada uma dessas categorias sociotécnicas, sempre artificiais. Delas, recomporíamos um determinado campo virtual que condiciona, sociotecnicamente, esse estado de coisas (mais importante que falar de uma suposta "sociedade da prosa" seria falar de como a prosa, em seu funcionamento, modula políticas, racionalidades e sujeitos específicos; a "sociedade da prosa" pode ser jogada fora, depois disso). A espacialidade, de todo modo, é uma ficção explanatória, mas o modo de tecê-las não é arbitrário.

É aí entra a noção de estilo, em substituição à ideia de um estudo técnico instrumental.

Estilo pode ser entendido como um modo, consolidado ou por vir, de evidenciar, dobrar, levar ao limite e recolocar as formas instituídas da expressão (falada, escrita, pictórica, musical, cinematográfica etc.), ir além do estado de coisas atual e abrir-se para o virtual; o ato de virtualizar uma entidade, diria Lévy, "consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular".

O impressionismo desiste de pincelar o real e afirmar uma lógica representacionista e passa a pintar a própria percepção, a própria impressão do esteta; ao invés do objeto que o olho olha, o impressionista pinta e evidencia o próprio olho, criando não só uma nova espacialidade ("O Impressionismo" como um movimento estético francês do começo do século passado), mas remodelando, com esse ato criador, toda a arte que lhe precedeu. Caravaggio, da Vinci, Rembrandt, Michelangelo, de La Tour e outros passam a ser lidos não mais nos termos que anteriormente colocaram, os de uma pintura que representa as coisas, mas, ao serem remodeladas pelo movimento impressionista, passam a ser estudadas e mesmo diretamente percebidas, assim como um Monet, um Renoir ou um Degas, como pinturas que pintam olhos, olhares, impressões. Após o impressionismo, não olhamos mais para um Velázquez e nos perguntamos, apenas, sobre as técnicas que o pintor usou para bem fotografar a realidade; mas, também: que olho é esse quer representar a realidade? Que olho é esse que representa a realidade deste, e não daquele, jeito?

O estilo é o movimento da espacialidade.

Um não existe sem o outro.

A própria separação estilo-espacialidade é ficcional.

Temos, aí, mais uma ilusão necessária da escrita.

[continua].

domingo, 22 de junho de 2014

Conversemos, mas com argumentos II

Uma pesquisa, publicada final do ano passado pelo Banco Mundial, aponta o SUS como referência internacional na área da Saúde Pública, já que, ao lançar a base jurídica para universalizar o acesso aos serviços, ajuda a constituir e reconhecer a saúde como um direito. Obviamente, o SUS enfrenta diversas dificuldades e desafios - e o próprio trabalho os aborda - como a necessidade de um maior aporte de recursos ao sistema, uma melhoria na sua capacidade gerencial, o próprio aprimoramento técnico dos serviços de saúde e, dando continuidade a empreitadas como o Mais Médicos!, expandir ainda mais a cobertura da atenção primária. De qualquer maneira, o estudo é contundente ao colocar o SUS como responsável pela ampliação do acesso populacional aos serviços básicos de saúde, além da redução maciça da mortalidade infantil nesses pouco mais de 25 anos de SUS.

Desta feita, qual não foi a minha surpresa quando, ao acessar o Facebook, dei de cara com uma matéria do R7 Notícias desprestigiando, genérica e tecnicamente, o sistema de saúde nacional.

A 'desinformação viral', já inerente a essas terras digitais, parece estar se tornando norma com a proximidade das eleições. Resolvo fazer, como de praxe, uma pesquisa pra atestar a veridicidade do enunciado (e "pesquisar" - aí vai uma dica para os "compartilhadores de plantão" - nem me dá muito trabalho; basta jogar as palavras-chave no Google e ficar já nas primeiras páginas de busca do site e voilá...).

O tal do "ranking mundial" é uma pesquisa da Bloomberg, uma empresa sobre "informações do mercado financeiro". A metodologia de ranqueamento ignora a realpolitik de cada um dos sistemas em questão e, para produzir o Índice Bloomberg de Eficiência da Atenção à Saúde, ordena os países de acordo com três indicadores numéricos, 1) a expectativa de vida, 2) o gasto do cidadão em saúde, em proporção ao PIB e 3) o gasto 'per capita' em saúde. O primeiro indicador tem uma relação direta com o Índice, enquanto os dois últimos mantém uma relação inversa com o mesmo.

O brasileiro possui uma média de vida de 73,4 anos e um gasto médio por ano de 1.121 dólares em saúde. Esse gasto, se posto em proporção ao PIB, seria de 9,9%. Todos os dados, e a posição de cada país no ranking total, e a posição de cada país em cada uma dessas variáveis, podem ser encontrados no próprio site do instituto

Nota de rodapé da pesquisa: o levantamento considerou apenas países com mais de 5 milhões de habitantes, com PIB/per capita maior que 5 mil dólares e expectativa de vida maior do que 70 anos. 48 países são escalados nessa brincadeira.

Olho todos os dados dispostos pela própria pesquisa, e vejo que o Brasil fica em último no escore geral (48ª posição). Qual a conclusão direta a que chego? Que o Brasil, a despeito da proposta de universalidade e gratuidade do seu sistema de saúde, tem um gasto privado na saúde (os tais 9,9%) superior aos gastos públicos (que foram de 8,9% do PIB, em 2013; cf. a Nota Técnica n° 012, de 2013, da CONOF/CD); ou seja, o Mercado investe mais em saúde, no Brasil, que o Estado; ou seja, no Brasil a saúde ainda é uma questão de serviços e produtos, e não de direito. O "ou seja" final: o problema do SUS é que ele ainda não se realizou por completo!

Eu, um leigo em Saúde Pública, chego a essas conclusões só através da primeira página de pesquisas do Google e da minha disposição, bem pouquinha, em matutar um instante antes de dizer e partilhar verdades. O que o R7 Notícias, um site "especializado", apresenta: que o "Sistema de saúde brasileiro fica em último lugar em ranking mundial". E ignora a pouca abrangência de um tal Índice ao comentar apenas superficialmente quem são os seis primeiros colocados do campeonato: Hong Kong (?), Singapura (?), Japão (esse, tudo bem), Israel (!?), Espanha e Itália (ambos carcomidos em seus sistemas de bem-estar social devido aos arrouchos da UE). E, destes, TODOS possuem gastos privados em saúde superiores aos do Brasil.

Tirem suas próprias conclusões, contudo, e, mais uma vez, conversemos.

sábado, 21 de junho de 2014

Conversemos, mas com argumentos

Está havendo uma histeria generalizada contra um texto escrito por Alberto Cantalice, vice-presidente do PT.

O artigo faz sentido, o artigo é, efetivamente, um texto, já que mobiliza argumentos que podem e devem ser discutidos enquanto argumentos. Sendo verdadeiro ou falso, objetivo ou ideológico, é, aquém dessas discussões, um texto sincero e aberto para a conversa. Todos deveriam seguir a sugestão de lê-lo com calma ("compartilhá-lo" cheio de ódio no coraçãozinho não basta). Veremos, com uma leitura atenta, que ninguém quer a cabeça de ninguém.

Deixo claro, aqui, que não votarei no PT. Meu comentário, neste sentido, não é partidário, mas é o de alguém que quer apenas um jogo político sincero e verdadeiro.

O mini-manifesto de Danilo Gentili contra o texto - o mesmo está circulando pelas bandas digitais, do leste e do oeste - é carregado de ódios, joga com mentiras (o filho de Lula não é rico), faz falsa propaganda política (diz que os eleitores do PT "conseguiram fuder [sic] um Pais inteiro") e diz estar sob a "lista negra do PT" quando, na verdade, sabemos que é ele, junto de outros formadores de opinião (os citados Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor, Demétrio Magnoli, Guilherme Fiúza, Augusto Nunes, Diogo Mainardi, Lobão, Marcelo Madureira), que investem muito de seu tempo e espaço midiáticos para desvalorizar o governo federal e suas políticas de distribuição de renda. O "humorista" se faz de rogado, jubilado e crucificado, dizendo que "acha demais" - como um herói valoroso e honrado, quase um Cristo - estar sendo perseguido por conseguir resistir aos ataques constantes "no meio da podridão" (e, ao fazer isso, fala do "fígado do Lula", jogando com outra lenda da direita, a de que o ex-presidente é alcoólatra). É um compilado de mentiras, é um ato de má-fé, esse comentário do Gentili.

Após isto, Reinaldo Azevedo compara Cantalice a Goebbels! Sejamos sinceros: quem mais se parece com o propagandista do Terceiro Reich de Hitler? Cantalice ou Azevedo!? O Vejista ainda afirma, em sua coluna, que irá processar o PTista por difamação... e termina o seu texto com um palavrão ao vice-presidente do partido, personificado na figura do nazista.

O sociólogo Demétrio Magnoli entra na onda de ódio e se vitimiza como sendo mais um a ter a cabeça a prêmio pelos caluniadores inimputáveis do Governo. Chama Cantalice, ao final do seu texto-ódio, de "inimigo da pátria".

Não sou PTista mas, sim, tenho certa predileção pelas posturas da esquerda. Isso não quer dizer que eu não consuma certa literatura de direita para me manter informado e reconheça, idem, que há uma literatura direitista de qualidade, que manifesta argumentos e que é sincera e verdadeira em seu ofício político. O comentário do Gentili, os pronunciamentos de Azevedo, e os "artigos sociológicos" de Magnoli, infelizmente, não entram nesse registro.

Conversemos, mas com argumentos.

sábado, 24 de maio de 2014

Duas lógicas, a religiosa e a política

Corre solta e descontroladamente, pelo Facebook, a imagem de um feto ensanguentado com letras garrafais em seu entorno. A Vida não tem preço, abre de maneira poética o meme-arte; mas para Dilma e o PT ela vale R$443,40 por bebê abortado. 

Na parte de baixo do cartaz digital, as seguintes desinformações: 01/08/2013 - Dilma sanciona o aborto - Lei 12.845; 21/05/2013 - Dilma sanciona Portaria nº 415 que libera o aborto no Brasil; Dilma, mãe do aborto no Brasil. 

Ao lado, uma outra montagem da presidenta, toda sorridente, com um pronunciamento seu ao jornal O Estadão, dizendo que não pensava em propor alterações sobre a legislação do aborto no país durante o seu mandato. Abaixo, em letras garrafais, uma tarja com o dizer "FALSO".

Uma rápida busca em qualquer mecanismo de pesquisa me revela a quantidade de inverdades contidas na imagem acima descrita. O Google, mesmo, nos mostra algumas matérias que desmentem a quase totalidade da montagem já em sua primeira página de buscas.

O que o Governo Federal sancionou, isto sim, é a obrigação, para os hospitais, de atenderem de maneira humana as vítimas de estupro (ou cujo feto seja anencéfalo), oferecendo às mulheres em estado de sofrimento todo o necessário para o tratamento de sua saúde integral (física, psíquica, social). Dentro desse tratamento, está a possibilidade de a mulher ingerir, se for de seu interesse, a chamada "pílula do dia seguinte", que a impede de engravidar de seu violentador.

É isto que está sendo chamado de "aprovação do aborto"?

Compartilhar uma informação dessa natureza, sem averiguar se a mesma é ou não verdadeira, é no mínimo um ato de má-fé; não a do Sartre, que consiste na justificativa do sujeito que se desimplica existencialmente das suas escolhas, mas a do senso-comum, a do sujeito que justifica a sua falta de escolhas se implicando com pautas que não são, efetivamente, escolhas. A baixaria se torna a forma e a norma do debate, sendo este sujeito-do-senso-comum o alvo e o motor privilegiados da desinformação viral, versão digital da stultitia estoica e de um jornalismo já contaminado de propaganda.

Além disso, o tal valor de 443,40 reais não é uma "bolsa estupro" a ser recebida pela mulher, como está sendo diabolicamente propagado, mas é o dinheiro investido pelo Governo para o SUS realizar todos os procedimentos de cuidado e acolhimento de maneira digna para a mulher que deseja, dentro dos critérios estabelecidos, interromper a sua gravidez.

Aborto, mesmo considerado como um pecado para muitas designações religiosas, não pode ser considerado um crime nestes termos, já que o feto, em todas as formas jurídicas que constituem o aparato legal brasileiro, não é considerado um sujeito de direitos. Logo, o aborto não é um crime por ser considerado "assassinato" (lógica religiosa), mas por ser um problema estrutural para o próprio Estado; o aborto é considerado um crime, isso sim, por não ser regularizado e normatizado pelo próprio Estado. E só!

É muito necessário separar aqui duas lógicas, a religiosa e a política. Quando dizemos que o nosso Estado é laico, queremos dizer com isso que essas duas lógicas nunca podem se misturar.

O aborto é um assassínio para a lógica religiosa, já que se trata de um sujeito - uma alma que carrega em si uma centelha do deus - que impede o desenvolvimento de outro sujeito, de outra alma, um sujeito que impede mais uma manifestação por excelência do espírito divino ao interromper um aglomerado de células de alcançar o seu amadurecimento previsto. Tudo bem. Mas dentro da lógica política, ou seja, dentro de uma lógica que tenta criar tecnologias e aparelhos de governo para o nosso bem viver, isso não interessa. O que a política deve pensar é se a aprovação do aborto, em termos políticos, é um avanço ou não para nossa vida em comum enquanto Estado. Em países nos quais o aborto foi regularizado, por exemplo, ouve uma queda gradativa e longitudinal da criminalidade juvenil, e uma diminuição progressiva dos gastos do Estado para com problemas de saúde relativos à maternidade e à primeira infância. Ou seja, para esses países, em termos políticos, repito, a aprovação legal do aborto foi uma coisa boa, uma coisa politicamente efetiva, o que nada, nada, nada!, tem de ver com a aprovação moral do ato pelos dirigentes. O argumento acima é um argumento político para se defender uma nova legislação para o aborto, e é apenas em termos políticos que a política deve ser debatida.

E isso, ponto importante, não exclui a lógica religiosa, uma lógica que visa intervir na vida de todos, idem, mas não enquanto Estado; interfere e modula a vida, sim, mas fazendo com que cada um crie uma comunidade melhor cuidando de si mesmo e de seu próprio espírito (designação cristã da religião). A aprovação de uma lei que regularize, normatize e aprove o aborto não forçará as pessoas a abortarem contra a vontade delas, mas apenas permitirá a diversas outras interromperem a sua gravidez sem que esta prática, já muito dolorida para a mãe em questão, ainda seja criminalizada. Neste sentido, não é só "o esquerdista", "Dilma" ou "o PT" que querem discutir a não-criminalização do aborto, mas qualquer um, seja de direita ou de esquerda, que não confunde essas duas lógicas.

Um Estado Laico de Direito não pode basear as suas formas jurídicas na forma de pensar da religião ou, melhor dizendo, a forma da lei num Estado de Direitos não pode ser equivalente às práticas ascéticas espirituais de uma religião específica (o cristianismo romano). Já tivemos um período de nossa história no qual isso aconteceu - chama-se Idade Média - e sabemos bem que coisa boa não saiu daí...

Note, amigo leitor: quando falo de "duas lógicas", uma religiosa e uma política, não digo que uma está certa e outra errada, ou que uma é melhor do que a outra (esse é o modo de pensar de uma terceira lógica, inclusive, que hoje podemos chamar de ciência). Quero dizer, com isso, que são dois modos de pensar distintos, com objetos e objetivos também distintos. Como eu já disse anteriormente, a política visa criar formas jurídicas para regular e normatizar a vida de todos (leis, constituições, impostos, direitos, deveres etc.), enquanto a religião (a cristã, neste caso) tem outro projeto, que é o de salvar a alma do sujeito através de práticas e rituais específicos exercidos deliberadamente por este mesmo sujeito. Percebe que são duas lógicas distintas, amigo? Uma coisa é você, eu, dona Mariazinha, Seu Zé e outro punhado de gentes serem contra o aborto e não aprovarmos esse tipo de atitude para com nós mesmos e com nossos espíritos; mas uma outra coisa, total e radicalmente diferente, é querermos que o Estado criminalize essa prática que um determinado grupo, o nosso, considera nociva. Mesmo na hipotética legalização plena da prática do aborto, não somos obrigados, eu, você, ninguém!, a abortar ou fazer abortar contra a nossa vontade. Assim como a religião não pode invadir a política, a política também deve continuar "na dela" e deixar cada um praticar a sua espiritualidade na paz que lhe convém.

Uma coisa é a lógica da religião (prática do espírito pelo próprio espírito), outra, a lógica da política (criação de normas e regulações para a vida comum). A laicidade do Estado, como já dito, aponta exatamente para a dissociação brutal entre esses dois modos de exercer o pensamento. Se argumentarmos, por exemplo, que o aborto deve ser proibido por lei pois "é um pecado", pois "macula a alma" e "nos afasta da salvação", isso não é um argumento político, mas um argumento religioso. 

Ao mesmo tempo, não quer dizer que todo argumento político vai ser a favor do aborto, mas nenhum argumento político pode mobilizar noções como pecado, alma, salvação etc. Não é disso que se trata na política. Um argumento político contra a legalização do aborto, por exemplo, é dizer que ela só produziu melhoras concretas noutros países pois junto dessa legalização foram criados programas assistencialistas para as mães em situação de pobreza que tiveram de abortar, o que não funcionaria por aqui caso toda uma reestruturação no modo como a sociedade civil encara tal prática seja realizada. Pronto, este é um argumento político contra a aprovação (legalista, não moral) do aborto! 

Quando o religiosista fica triste e chora e ora e lamenta quando vê outras almas defendendo a aprovação do aborto, o mesmo ignora que ninguém, em sã consciência, defenderia um mandato político dizendo que "a vida não tem valor" ou que "matar criancinhas é o que há". Mas, repito até a exaustão, essas almas souberam não misturar as duas lógicas, religião e política, numa só.

P.S.: existem, ainda, outros modos de exercer o pensar, como a arte (que nos mostra outros modos de perceber, nos dota de "novos órgãos", e produz diversas obras na esteira desse exercício) e a ciência (que nos ensina a melhor observar, experimentar, prever e controlar o mundo, transformando-o numa série de coisas e nos dotando de diversas tecnologias nesta empreitada). Um outro texto, mobilizando esses quatro modos de pensar, já está na minha to do list faz tempo...

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Thomas Piketty e seu cavalo de Troia

O "Capital no século XXI" discute as agruras do capitalismo não via produção - como fez Marx, por exemplo - mas focando a distribuição desta e a correlata produção de desigualdade imanente ao próprio desenvolvimento capitalista. É uma senhora pesquisa, a do livro, e colocou no seio de muitos espaços acadêmicos estadunidenses, inclusive os mais conservadores, a necessidade de se discutir questões que eram sempre deixadas à parte na prática da economia. Seu texto não repete aquela já velha trincheira ideológica entre liberalismo econômico e regulação via estado; pode-se sempre argumentar que as crises do Mercado se deram, justamente, por excesso de intervenção estatal, e é aí que reside a novidade de Piketty: ele não se resume a argumentar e defender a taxação progressiva e a tributação da riqueza (e isto a nível global, num imposto que alcançaria até os paraísos fiscais; a conclusão do seu livro), mas o faz com base em dados, dados, muitos dados, com base no "vamos aos fatos". O primeiro mérito do seu livro está em compilar mais de 100 anos de estatísticas sobre como o capitalismo, em seu modo de distribuição, é inegavelmente produtor de desigualdade. É exatamente por isso que Piketty sai da seara ideológica do Fla-Flu econômico, já que mesmo o defensor do livre mercado, em todas as suas vertentes, se vê sem argumentos lógicos contra a dureza dos gráficos e tabelas. O segundo mérito do livro de Piketty é que essa retórica tecnicista é, em geral, usada pra defender o Mercado (o neoliberalismo, em geral, é apresentado não como uma ideologia, mas como uma ciência); ou seja, o francês demoliu a argumentação contrária dentro da própria argumentação, e usando os termos e procedimentos do próprio argumentador. Neste sentido, ele (e sua equipe de trabalho, já que não se pesquisa sozinho) foi estrategicamente genial. Piketty, como já dito, desloca o foco da crítica ao capitalismo da produção para a distribuição, mas com isso não está dito, obviamente, que Marx não discute distribuição em seu próprio "Capital"; o foco da análise de Marx parece estar mais em como o modo de produção capitalista, produtor constante de mais-valia, seria a crise e o termo final do próprio capitalismo (um leitura 'grosso modo' do marxismo); o ponto focal, o campo de pesquisa da análise de Piketty não é no modo de produzir, hoje, mas no modo como a riqueza e a renda são distribuídas. Neste sentido, é uma análise bem mais singela e pouco radical no que toca a uma crítica ao capitalismo, mas essa mudança de foco é, ao meu ver, também estratégica, já que coloca um "cavalo de Troia" nos ambientes acadêmicos e políticos que tem apreço excessivo pela quantificação e uma "aversão natural" a todo criticismo revolucionário. Onde os críticos e marxistas veem pouca proposição e apenas remendos no modo de produção capitalista por parte de Piketty, eu vejo tática. É aí que reside o seu ouro. Duplo xeque: ao usar de números e mais números produzidos por pesquisa extensiva, o livro sai do duplo ideológico Estado-Mercado e de sua correlata predileção econômica entre liberalismo (sendo o anarco-capitalismo o seu extremo) e intervencionismo (sendo um Estado Comunista o seu extremo), inserindo uma discussão política num espaço liberal que a entende (ou finge entendê-la) apenas como uma discussão técnica, o único tipo de discussão que os acadêmicos economistas aceitam (ou fingem aceitar).

O xeque-mate vem na sua escrita: Piketty proseia como um não-especialista.


sábado, 5 de abril de 2014

Conectar, representar, falar

Curva normal alguma (e a margem de erro correlata a esta curva) permitiria à IPEA ter confundido 65% com 26%. Os dados produzidos por duas perguntas consequentes foram trocados, diz-se. Mas ainda é algo surpreendente que, grosso modo, 26 pessoas dentre 100 com que eu venha a cruzar o caminho achem realmente que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas".

Não é isso que mais me interessa, contudo.

Não se fala, a despeito do erro, que o 65% de aceitação, agora, pertence ao enunciado "mulher que é agredida e continua com o parceiro gosta de apanhar".

Também não é isso que me interessa.

A despeito da troca de dados, muita discussão interessante foi levantada, muita conversa dita como ultrapassada foi recolocada e muito da militância feminista - tida como rançosa, imperativa e cheia de "mi-mi-mi" para muitos intelectuais internautas - ganhou sentido e mostrou a razão-de-ser de suas lutas com esse episódio.

Mas ainda não é aí que reside a minha surpresa e interesse.

Minha atenção é atraída pelo discurso, singelo, da ameba-internauta e dos seus amiguinhos sensórios-motores em olhar para o resultado (o inicial) da pesquisa e dizer: "mas tem de ser assim, mesmo!"; "mulher tem de se dar o respeito"; "mulher que se veste assim 'tá pedindo' pra ser estuprada" e variações sobre o mesmo tema dignas de um Paganini.

É já conhecimento geral que a internet reúne e congrega as pessoas - "connect with your 'friends'" é o mote de uma de suas redes sociais. O que essa condição cibernética parece possibilitar ao internauta-sensório-motor e a seus amiguinhos é que muitas de suas opiniões tacanhas - como chamar o Golpe de 64 de "Revolução"; ou apontar como solução para a criminalidade o reforço do aparato policial repressor sobre os criminosos ("e quem achar ruim, que leve pra casa!"); ou sugerir como uma solução séria para a criminalidade infantil a redução da maioridade penal; ou, ainda, fazer equivaler a corrupção estrutural da política com a simples soma aritmética de um e outro político corrupto etc. etc.; poderia ficar o dia todo, aqui, ilustrando as opiniões da ameba-internauta -, opiniões antes guardadas para si mesmo, agora encontram respaldo e rebotam no seu amiguinho de ideias.

O resultado? O que antes era senso comum agora se transveste de análise séria. Na rede, somos todos antropólogos, sociólogos, cientistas políticos, economistas, filósofos.

Para a construção de uma ideia, não mais se precisa de leitura, estudo, discussão entre pares, embates maduros e sinceros com os díspares, escrita orientada, ocupação de espaços legitimados e a construção de zonas para o fazer e o saber que não tem lugar nesses espaços; para a concepção de uma ideia, agora, basta ser alfabetizado, ter acesso à internet, uma conta no Facebook, e alguns amiguinhos que se identifiquem com a opinião antes recalcada e agora infinitamente rebotada pelos meandros da rede. Não se precisa mais ter vergonha de achar que "bom era no tempo da ditadura" (ainda que você, sujeito enunciador desta frase, seja mais novo que a Constituição de 88); seu amiguinho, antes também envergonhado do seu fascismo cotidiano, agora irá ter a "coragem" em validar esta frase junto com você.

É de Platão que se tratou até aqui. Mas "Platão em Siracusa não se transformou em Maomé", diz Foucault. Seu livro não respeitou a fala, não soube "marcar a singularidade dos acontecimentos". A conexão da ameba-internauta também não.

A mesma internet, a mesma lógica da conexão que serve de condição material para que se ocupe os espaços já consolidados pela cultura da representação e para a produção de um novo modo de se produzir saberes, relações e subjetividades ainda mais intensos e interessantes que os já vivenciados em nossa história também dá infraestrutura para o surgimento da ameba-internauta e suas verdades sensório-motoras (o elfo e o troll são composições de um mesmo cenário, e tanto a música dos Ainur quanto a dissonância de Melkor são, ambos, prolongamentos do mesmo bom Eru).

O mesmo livro que faz com que o seu leitor ocupe uma zona de pensamento em que ele jamais esteve - e que talvez sem o livro jamais ocuparia - cria também um intelectualóide sabichão que confunde pensar com representar e a posse do pensamento com as titulações curriculares que acumula.

Se antes fingíamos estar de posse do pensamento pelo fato simples de possuirmos uma titulação (o modelo do livro e da representação), agora escamoteamos a "ascese" necessária no processo de pensamento através do "rebote de opiniões", que ilusoriamente dá estatuto de verdade ao enunciado sensório-motor (o modelo das tecnologias do virtual e da conexão).

Cada um com a sua tática para escamotear a fala e se escamotear enquanto sujeito que pensa e que se conecta (e que acha que fala...).

sábado, 8 de março de 2014

O fantasma da percepção, a percepção do fantasma

Car je est un autre. Si le cuivre s’éveille clairon, il n’y a rien de sa faute. Cela m’est évident : j’assiste à l’éclosion de ma pensée : je la regarde, je l’écoute : je lance un coup d’archet : la symphonie fait son remuement dans les profondeurs, ou vient d’un bond sur la scène."
Arthur Rimbaud 


Perceber, para nós, é um ato de distinção e clareza. Percebemos bem quando percebemos coisas, e percebemos a coisa quando a percebemos como uma coisa, e uma coisa que, necessariamente, não é uma outra coisa. Disto, desse ato de reificar, de "coisificar", nossa percepção não consegue se livrar. É isso mesmo que a define e, por tabela, o que nos define. Percebemos coisas e, lidando com coisas, somos, nós mesmos, uma coisa privilegiada que as percebe.

Essa coisa que somos, coisa que percebe coisas, a chamamos de muitos nomes. Somos sujeitos de direitos, somos pessoas jurídicas, somos mentes, somos almas, únicos em nossa indivisibilidade. Somos indivíduos e percebemos indivíduos.

Perceber é um ato de distinção e clareza; para nós, repito e friso.

Sempre que imaginamos outras dimensões do mundo físico imaginamos, com isso, outros planos de existência, outros lugares, outros mundos com outras coisas neles inseridos. E as coisas privilegiadas - sujeitos desses mundos - que percebem outras coisas as imaginamos como simples variantes de nós, simples coisas que percebem coisas. Alienígenas, demônios, anjos, versões de nós mesmos num mundo paralelo, fantasmas, que seja. O que ignoramos é que as tais "dimensões" que as teorias sobre o mundo físico nos apresentam só podem ser pensadas como "mundos paralelos" quando insistimos em percebê-las, repito, como coisas - ou seja, como uma coisa que é idêntica a ela mesma e diferente, por princípio, de uma outra coisa. A lógica, aí, se faz, mas aí, também, constrói engôdos. Tanto a ciência quanto o senso comum partilham dessa "atitude natural", desse "ato coisificador" do real.

As três dimensões da física clássica, embora facilmente identificadas como coordenadas distintas num plano cartesiano - largura, altura, comprimento -, não são três coisas, ao menos se por "coisa" entendermos, insisto, algo que é e permanece idêntico a si mesmo enquanto dele falamos, e é e permanece distinto de outro algo que não ele mesmo; não são três "coisas" pois nenhum deles existe, in re, como substâncias isoladas e independentes umas às outras. Um corpo que se desloca no espaço ocupa, necessariamente, essas três coordenadas e, se podemos medir o quanto tal corpo igualmente altera o valor de um dos eixos em questão (x, y, z), sabemos, intuitiva e diretamente, que essa independência entre um eixo e outro é puramente intelectual, abstrata, é uma ilusão com fins metodológicos. As "três dimensões" são recortes de um mesmo real, de um mesmo todo, uma omnitudi realitatis

Se trouxermos a quarta dimensão de Einstein e de Poincaré para o balaio, tornamos ainda mais difícil equivaler o espaço e o tempo do vivido com o espaço-tempo dos matemáticos e físicos, já que até podemos manipular coisas (e manipular esse objeto privilegiado a que chamamos de "meu corpo") através das tais "três dimensões", mas lidamos com o tempo da mesma maneira que lidamos com um rio que flui, vendo-o necessariamente correr num sentido único e inviolável (a represa é a matematização do tempo). O tempo, pois, pode inclusive ser pensado como a nossa própria experiência - a nossa percepção - do espaço que o nosso corpo ocupa, e pensá-lo em termos de "quarta dimensão" é "espacializá-lo", é colocá-lo no mesmo plano de algo de natureza distinta da sua. Num mesmo instante em que "percebemos", em que temos a experiência do tempo (o correr fluido do real), nós o escamoteamos, o transformamos numa coordenada espacial e matematizável, numa coisa. Eis a percepção: é a experiência do tempo, é o próprio tempo e, num mesmo instante, ao mesmo "tempo", é a negação do tempo.

Perceber é um ato de distinção e clareza, verdade, mas também e igualmente uma experiência direta. Esse é o fantasma da percepção.

Façamos um exercício de imaginação.

* * *

Imaginar, faço notar, é perceber na ausência de um objeto material que suscite no meu corpo a experiência da sua percepção. Imaginar é perceber uma imagem sem objeto.

Bergson já dizia que a lembrança é a experiência que o meu corpo tem de um objeto que não mais está presente no meu campo perceptivo. Lembrar, tal qual imaginar, é perceber uma imagem sem objeto.

A diferença entre uma e outra dessas funções, para o autor de Matéria e Memória, é que a rememoração tem função ativa; quando lembramos, quando trazemos à consciência uma imagem-lembrança, a trazemos como uma resposta reflexa a um objeto que, na percepção presente, a convida para vir à tona. Neste sentido, a imagem-percepção e a lembrança se equivalem, já que ambas são a produção de imagens-ação: quando olho um objeto, o que dele vejo, o seu rosto, a sua "face visível" - dentre todas as possibilidades de visão que poderiam se me revelar - é o uso que deste objeto o meu corpo pode fazer: uma cadeira é um objeto-para-sentar; um copo, um objeto-para-beber; uma faca, um objeto-para-cortar. Mesmo objetos que não são de antemão ferramentas - uma cachoeira, uma montanha, uma floresta - são percebidos pelo nosso corpo através da sua utilidade (a cachoeira logo se torna represa; a montanha e a floresta se tornam fontes de matéria-prima; aqui, logo somos remetidos a M. Heidegger).

Perceber é produzir uma imagem-ação; lembrar, idem, é produzir uma imagem-ação, mas a diferenciamos da percepção porque a imagem produzida na lembrança não tem um correlato material presente no "mundo externo". Se perceber e lembrar são equivalentes no sentido de serem "imagens produzidas" é porque a memória não é uma faculdade do corpo, não é um atributo individual, e a lembrança não é a retomada de dados que o nosso cérebro computou e armazenou num tempo já passado, mas a reatualização, pelo corpo, de uma temporalidade que lhe atravessa e que por ele é suportada.

O corpo carrega o tempo, carrega uma duração que é do próprio mundo em sua totalidade e em seu desenrolar criador, e o corpo sente essa temporalidade "diretamente", o percebe como sendo ele mesmo.  Duração implica consciência. Aqui, a coisa complica.

Se perceber se assemelha a lembrar, sendo a presença ou não de um correlato material o critério para diferenciar ambos, lembrar se assemelha a imaginar, sendo a existência ou não de uma experiência passada o critério de diferenciação. A imagem-percepção toca a imagem-lembrança e a imagem-lembrança toca a imaginação.

A percepção é a experiência direta do que é. A lembrança é a reatualização de uma experiência direta do que já foi (logo, é também uma experiência direta). A imaginação é criação.

Imaginar, porém, não é simplesmente a produção de uma imagem nova, uma imagem que não tem nem nunca teve um correlato material. Esse esquema intelectual da imaginação, que encontra vestígios mesmo nos empirismos mais radicais, pensa que, se imaginamos um pégaso é porque já passamos pela impressão sensorial de um cavalo e de animais alados, pegando características de um e outro e assomando-as numa imagem comum. Uma sereia, neste esquema, é uma mulher com cauda de peixe; um minotauro, um homem com cabeça de touro. A imaginação aí se resume à articulação de impressões já vivenciadas e, na mesma esteira, a criação não passa da articulação de realidades dadas.

Mas, lembremos, a imaginação num esquema que considera tanto a percepção quanto a lembrança como atos de produção não pode ser, ela mesma, uma simples bricolagem. Se imaginar é perceber uma imagem sem objeto, é necessário fazer movimentos para diferenciá-la da lembrança, que também é percepção sem objeto. O critério, já exposto, é que a lembrança é voltada para a ação presente, é a resposta a um chamado da percepção presente (se lembro do nome de meus tios ou do número de meu CPF é porque alguma coisa afetou meu corpo de uma maneira que ele fosse chamado, quase convocado, a prestar contas dessa imagem, que não é simplesmente reencontrada num banco de dados cerebral, mas novamente produzida, reatualização de um tempo e de uma memória que não são individuais, que não são meus). A lembrança, nesse sentido, é tão voltada para a matéria quanto a percepção, já que ambas são imagens-ação. A imaginação, logo, não é a reorganização de imagens já prontas, já que ela não visa atuar em nada.

Assim como a lembrança, enquanto imagem do que não está presente, não nos vem indevidamente - não nos vem "do nada", assim como a luz e o mundo vieram do espírito de Deus - a imaginação não é imagem pura, despretensiosa, espontânea e ocasional. Imaginar é, isso sim, um esforço para a construção da imagem nova. As imagens prontas e finais do pégaso, da sereia e do minotauro não são bricolagens, mas é a resultante de um esforço total de criação de um mundo inteiramente novo; vale lembrar que cada um deles não faz sentido fora de suas respectivas narrativas mitológicas e, mesmo quando vislumbramos suas imagens, é inevitável que arrastemos, conjuntamente, toda a temporalidade da qual eles provém. Se escrevo "Bilbo Bolseiro" ou "Batman" ou "M. Bison", suscito no leitor a imagem dessas três figuras mas, junto delas, todo o sabor das narrativas às quais pertencem. Imaginar é um esforço de encontrar - logo, de produzir - esse sabor.

Aí reside uma das distinções mais geniais e incompreendidas do bergsonismo: há um modo de pensar intelectualista, que busca esquadrinhar as imagens, alocá-las em espaços bem definidos e visa, acima de tudo, agir sobre elas (uma metodologia); e um modo de pensar que sai do registro da percepção e mesmo da lembrança, e visa produzir uma nova imagem do pensamento ou, mais precisamente, um pensamento sem imagem, pra usar o termo de G. Deleuze (uma ontologia).

* * *

Imaginemos, enfim, um ser senciente que ocupa um espectro perceptivo totalmente, radicalmente diferente do nosso. Percebe o que não percebemos e não percebe o que percebemos, e somos "invisíveis", "imperceptíveis", um ao outro. Vamos chamá-lo de fantasma.

Se somos dotados de uma visão que, através dum órgão foto-receptor, é capaz de distinguir a variação de luz num contínuo de claro-escuro e de cores, o fantasma possui um órgão vibrátil (a nós invisível) que "vê" através da oscilação de temperatura apresentada pelo ambiente; se possuímos uma audição, e audição é como chamamos a maneira como o nosso corpo se dobra num pavilhão auricular capaz de captar as vibrações sonoras produzidas pelo ambiente (e vibração sonora é a definição, retrospectiva, das percepções que se dão através desse pavilhão; sim, lidem com isso), o fantasma é dotado de micro-tentáculos capaz de absorver partículas proteicas carregadas pelo ar (ar que ele não sente); se somos seres táteis, capazes de identificar as texturas do mundo e de nosso próprio corpo (propriocepção), o fantasma tem uma membrana plasmática que mede os níveis de radiação gama emitidos pelo ambiente, moldando-se e se locomovendo em decorrência da emissão dessas partículas ("mover-se"ganha outra natureza para o fantasma).

Poderíamos continuar o exercício até o infinito, esmiuçando cada vez mais as modalidades do nosso corpo em abrir as portas para o mundo e inventando mais e mais modalidades do corpo do fantasma ser estimulado pelo mundo, imaginando, inclusive, modos de sociabilidade para este fantasma, regras de comunicação, a procedência do pensamento fantasma, o seu registro etc.; o campo já está posto: ocupamos dimensões distintas das dimensões ocupadas pelo fantasma, embora ambos, nós e o fantasma, estejam aqui neste momento atravessando um ao outro e ignorando a existência um do outro, cada um em seus próprios vastos mundinhos.

O exercício de imaginar não se resumiu à criação da imagem pronta do fantasma, sendo esta apenas o seu fenômeno; a imaginação, neste exercício, reside no esforço em tentar ocupar uma dimensão existencial que não é a nossa, e a imagem do fantasma, imagem percebida e posteriormente lembrada, é apenas o resíduo imagético desse esforço. Perceber, no sentido de apreender uma realidade dada (ou representá-la em nossas categorias de pensamento) é um fantasma, uma imagem nula que nada agencia; perceber não é captar dados de um mundo exterior, mas produzir uma imagem; lembrar é outra modalidade de produzir imagens; delirar, alucinar, embriagar-se, se apaixonar, muitas e muitas modalidades de produção de imagens. Ao mesmo tempo em que não há realidade fora do ato perceptivo (análise metodológica), há todo um plano de existência virtual que não conseguimos sequer conceber se nos mantivermos em nosso estado atual de coisas; quando intencionado, esse movimento de ruptura com os hábitos intelectuais condicionados é chamado, por Bergson, de intuição (análise ontológica).

* * *

A velha questão mentalista de "o vermelho que eu vejo é o mesmo que você vê?" é sustentada pelo fantasma da percepção. Essa pergunta só faz sentido no seguinte cenário: eu, que sou um armazenador e computador de dados, guardei em meus registros um determinado conjunto de operações que recebe o nome de "vermelho"; você, outro armazenador-computador, guardou em seus registros o mesmo conjunto de operações, igualmente nomeado como "vermelho"; após a constatação de que ambos, eu e você, temos o "vermelho" instalado em nossa memória de armazenamento e computação, e que somos, para todos os efeitos, tão só armazenadores-computadores, fazemos a pergunta "o modo como eu, um a-c, vejo o vermelho é o mesmo modo como você, outro a-c, o vermelho"?

O fantasma, aí, mobiliza paradoxos. A percepção é a criação, pelo meu corpo, de uma imagem voltada para a ação, ação do meu corpo sobre o mundo; mas também essa percepção é apreendida "diretamente", como se nos instalássemos na coisa percebida. Perceber é intuir o tempo (ontologia, a imaginação intuitiva) ao mesmo tempo em que escamoteio esse próprio tempo, vendo-o perfilar em minha frente como uma série de coisas (metodologia; a percepção e a lembrança intelectuais). A palavra VERMELHO e o seu significado para a minha inteligência são de natureza distinta do vermelho que vejo, que intuo, ainda que a existência de um seja correlata à do outro. O vermelho-da-inteligência e o vermelho-da-intuição são distintos, mas são, também, indissociáveis, são ideados. A reversal nos ajuda ainda mais: ambos os vermelhos são indissociáveis mas brutalmente distintos; não distintos como o vermelho é do violeta, mas distintos como o vermelho é de um copo de cerveja, ou o violeta é de um elefante africano.

A pergunta do mentalista joga com os dois sentidos de vermelho e nos confunde, e se confunde, ao passar desavisadamente de um sentido para o outro, produzindo um problema que não é um problema. Ao perguntar, esquece que 1) o problema é impossível de ser investigado, já que procedimento metodológico algum pode me colocar no interior da sua intuição (o que me transformaria em você), nem te colocar no interior da minha (o que te transformaria em mim), e, além disso, 2) mesmo que eu tente focar a minha análise numa realidade mensurável e constate que os efeitos sofridos pela minha retina e os impulsos elétricos dirigidos ao meu cérebro são exatamente idênticos aos efeitos da sua retina e do seu córtex cerebral, eu não poderia inferir, daí, que nossa experiência imediata resultante desses dados materiais seja a mesma; ainda mais importante, 3) podemos comparar apenas coisas que seguem o mesmo critério de definição; o vermelho que eu vejo, assim como o vermelho que você vê, nem coisas são, mas experiências diretas, imediatas.

O mesmo problema pode ser recolocado se abandonarmos o fantasma da percepção e tentarmos encontrar a percepção do fantasma.

Merleau-Ponty, em seu A Prosa do Mundo, marcou a diferença entre o sujeito do "eu penso", aquele mesmo que representa o mundo através de uma linguagem pura que serve de anteparo e mediação entre seu pensamento e as coisas, e o sujeito do "eu falo", aquele mesmo que não é só uma mente, mas um corpo, uma carnalidade, e que, ao falar e escutar, torna-se o outro e faz com que o outro se torne ele mesmo, se faz no outro e faz o outro se fazer nele. Quando este sujeito encarnado - que não é apenas um processador, um a-c - lê um texto, ele é enganado pelo escritor desse mesmo texto que, ao usar de palavras cujo sentido isolado o leitor já conhece, pretende levar o leitor a um lugar de pensamento em que o leitor jamais esteve, e que talvez, sem o escritor, ele nunca chegaria; o livro e o texto, de início simples palavras avulsas, simples garatujas numa superfície, "pegam" no leitor, assim como o fogo "pega" (o exemplo é de Sartre), o livro e o texto tornando-se a expressão viva de um sentido que vai além desta ou daquela palavra usada (embora delas não se dissocie). Posteriormente, ao lembrar-se do texto, o leitor não rememora as palavras isoladas, mas o seu sentido, o seu todo; ao retomar uma leitura que foi deixada de lado, o leitor vai tentando encontrar não só "onde parou" mas, ao reencontrar esse ponto, recebe de uma só vez toda a narrativa engendrada pelo texto e já experienciada por ele.

Através da experiência literária, Merleau-Ponty quer nos fazer entender que o que define irredutivelmente o sujeito não é somente o pensamento, mas a despersonalização; ao ler, ao conversar, ao viver enfim, o sujeito entra em contato constante com uma alteridade que o arrebata de si mesmo, através das palavras que encontra, dos objetos que manipula, das experiências que vive e, assim, tocando e sendo tocado por uma realidade que o sujeito julga conhecida, o sujeito torna-se outro, torna-se um outro eu mesmo.

Tornar-se um outro eu mesmo é encontrar a percepção do fantasma. Tornar-se um outro eu mesmo deliberadamente é o que Bergson chamava de método intuitivo.

O sujeito do "eu penso" é o sujeito da metodologia, das coisas reais; o sujeito do "eu falo" é o sujeito da ontologia, do virtual. Ambos são criados quando o sujeito integral, ao perceber seu objeto, o percebe como imagem e como vivência, como vivência e como imagem, indissociadamente.

Comparar o vermelho que vivencio com o vermelho que você vivencia é pergunta sem sentido. Poderia perguntar, isto sim, se você poderia me emprestar uma caneta vermelha; poderia perguntar, explico, pois o "vermelho" da pergunta em questão remete a uma realidade, a uma coisa, e, assim sendo, é muito mais uma categoria de ação que uma categoria ontológica. Não importa se a experiência direta que o vermelho imprime no seu corpo é a mesma que eu vivencio. Ao falar "vermelho", quero mobilizá-lo e afetar o seu corpo para que o mesmo me traga esta, e não aquela outra, caneta. A categoria, repito, é ativa, é uma categoria perceptiva ou rememorativa.

Imaginar é tentar ver o vermelho do fantasma, o vermelho que o fantasma vê e, assim, tornar-se o fantasma. O que o escritor faz é instigar o seu leitor a imaginar (a menos que o texto em questão remeta a uma realidade estritamente evidente, clara e distinta; um bilhete afixado na geladeira dizendo "acabou o leite" é um texto desta natureza e, ainda assim, remete a algum tipo de alteridade). Se colocada nesta perspectiva imaginativa, aí sim a pergunta faria algum sentido. Ao invés de buscar a igualdade entre dois "vermelhos", busca-se tensionar um dos "vermelhos", uma das experiências, um dos mundos, em direção ao outro.

* * *

No lugar do "vermelho", podemos pensar a mesma questão em relação a um texto, uma música, um acontecimento ou um lugar etc. O texto que agora escrevo é o mesmo texto que você agora lê? Quando Descartes escreve as suas Meditações e nós, eu e você, as lemos se trata do mesmo texto? Ao por em execução a Terceira de Beethoven escutamos a mesma música? Ao visitarmos uma cidade, um restaurante 4 estrelas, uma lanchonete, uma praia, é o mesmo lugar que ocupamos, eu e você?

Se mantemos o fantasma da percepção mentalista, então as questões não fazem sentido.

Se perguntamos no registro da percepção do fantasma, a conversa anda.

Não faria sentido alguém abdicar de ir à praia com seus convivas pois não consegue responder à questão mentalista de se a praia experienciada por um é exatamente a mesma praia que o outro produz em suas experiências imediatas. O que nos interessaria, nesse questionamento, é saber que tipo de fantasmas habitam a praia; que modos de perceber e rememorar a praia estão para além (ou aquém) do meu modo habitual e condicionado de percebê-la e rememorá-la? Como imaginá-los?

Amigos que vão a um concerto musical juntos certamente terão experiências próprias no local, obviamente, já que cada um é um corpo e ocuparão, cada um, algum tipo de zona fantasma para algum dos demais; e isto ainda que, após o show, todos enunciem que tenham gostado das mesmas músicas.

O "vermelho que cada um pensa" é um problema mal colocado; todos pegarem a caneta vermelha, e não a azul, é um modo adequado de se pensar e agir sobre as coisas em sua clareza e distinção; fazer um esforço, cada um, para ocupar a zona fantasma que para o outro é o estado habitual de coisas, imaginar o que, para o outro, é simples percepção e lembrança, é tornar-se um outro eu mesmo.

Ser sujeito é perceber (somos sujeitos que pensam), mas também lembrar (somos sujeitos históricos) e, principalmente, imaginar (somos todos artistas). Individuar-se, tornar-se a si mesmo, tornar-se aquilo que indubitavelmente somos, é sempre tornar-se um outro.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Impostura intelectual

Por esses dias, soube do caso: mais de 120 artigos já publicados - e isso só depois de 2008 - foram "escritos" por um programa de computador, um "gerador de lero-lero". Chocante, de fato. Curioso, no mínimo. Lembra-me o Caso Sokal, mas não muito. À época de Sokal, toda uma crítica lalante e furiosa foi jogada para cima dos vilões da vez, do mal do mundo, sim, os malditos pós-modernos e seus textos impenetráveis, textos que nada de sério carregavam entre uma e outra palavra anunciada. Agora isso, de novo. E os vilões de outrora - os tais viajantes do tempo, os tais pós-modernos - são reatualizados e aparecem, mais uma vez, como bodes expiatórios de um problema que é maior do que qualquer guerrilha acadêmica de trincheira. Meu incômodo tem mais de ver com a repercussão da notícia que com a notícia ela mesma. Assim que a manchete foi veiculada, pudemos ver frases e mais frases do tipo "só podia ser coisa de pós-moderno" e variações. Detalhe: a maioria dos artigos publicados é da área de exatas, e muitos deles oriundos de eventos ocorridos na China. Meu incômodo, insisto, tem a ver com a atribuição de culpa a um bode expiatório qualquer - neste caso, o cachorro morto e já chutado do pós-moderno - ao invés da colocação do problema em termos não individuais. Se 120 artigos de mentirinha, artigos que não dizem nada, passam pelo crivo de uma banca de correção, e às cegas, devemos, isso sim, rever nosso modo de entender e pôr em operação o saber acadêmico, que demanda de nossos professores uma produtividade curricular, fabril e empresarial, acabando por saturar nossas editoras com pilhas e mais pilhas de textos e pesquisas que, mesmo quando nos dizem algo, nos dizem sempre mais do mesmo. Não há revisão por pares que dê conta de uma estrutura produtiva insana como essa. No mínimo - no mínimo! - nossa maneira de avaliar o que produzimos e de entender o que é avaliação deve ser revista. Frente a isso me pergunto: por que Lyotard, Guattari, Lacan, Derrida e Foucault, enquanto obra e, principalmente, enquanto pessoas, são "os culpados" pelo que houve? E de novo!?



quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Neocrítica ou intencionalismo?

Três acontecimentos tomam de assalto a minha timeline e o meu interesse: o assassinato de Eduardo Coutinho, as acusações de assédio sexual e pedofilia que mais uma vez recaem sobre Woody Allen e, por fim, a publicação dos Schwarze Hefte de Martin Heidegger (que trazem à tona a sua já velha mas não tão conhecida relação com o nazismo).

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Muito pouco se tem dito sobre o primeiro caso, cujas manchetes claramente pendulam entre um e outro lado do dualismo "vida e obra"; ou se fala que "Coutinho foi assassinado: conheçam o seu filho esquizofrênico" ou "Coutinho foi assassinado: vejam imagens de seus geniais documentários". Um acontecimento e, em torno dele, um polo infértil que pouco parece acrescentar ao ocorrido. 

Coutinho é um sujeito? Um objeto? Um “cabra”?

Neocrítica ou intencionalismo?

A Coutinho, cabem apenas nossas honrarias, e não nossas análises; mas fica visível, já aí, essa tal divisão entre vida e obra que igualmente repercute noutros espaços e acaba por impedir uma discussão efetiva sobre o acontecimento.

Os dois últimos casos (Allen e Heidegger) merecem ser pensados juntos através dessa leitura.

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Em carta aberta hospedada num dos blogs do New York Times, a filha adotiva de W. Allen, Dylan Farrow, falou do abuso que sofreu pelo cineasta aos sete anos de idade; os cadernos negros de Heidegger – anotações pessoais que o filósofo fez entre 1931 e 1946 – mostram ideias que possuem um caráter claramente antissemita (ainda que distintas de uma certa ideologia nazi). O que ambos os casos têm em comum é a clara divisão entre a vida de cada um e o conjunto de suas obras, que podem operar como planos de discussão distintos, certamente, mas uma divisão que, num aparente paradoxo, obscurece qualquer encaminhamento sério acerca da dualidade que apresenta; em resumo, o que impede a discussão sobre a vida e a obra de um pensador (denker) é, justamente, a divisão que o espartilha em vida e obra, estas entendidas como realidades distintas e independentes.

A obra de Heidegger, carregada de críticas à impessoalidade (ao escritório e falatório cotidianos), desautoriza qualquer um a assumir a postura de um Hitler, um Goebbels ou um Mengele, principalmente a de um Eichmann. Claro, sempre um e outro irá perguntar se “Heidegger era (ou não) nazista?” ou se “ele poderia (ou não) ter feito algo diferente?”, pêndulo ainda mais reforçado com a publicação dos cadernos; uma boa pergunta feita pelos filósofos de diploma, porém, é a séria “e nós com isso?” (nós, e não eu).

Heidegger é uma obra (uma série de publicações ditas "oficiais", um cânone que nos ajuda a encaminhar questões e, principalmente, a colocar problemas em nossas próprias vidas e obras) e uma vida (ex-seminarista >>> filósofo >>> assistente de E. Husserl >>> professor em Friburgo >>> membro do Partido Nazista >>> reitor da Universidade de Friburgo etc. etc.). A pergunta séria, reformulada, é “o que a nossa atividade de pensamento – qualquer que seja; da abstração mais metafísica ao ascetismo mais radical – ganha, na análise dessa obra e dessa vida?”.

Pergunta paralela e quase coincidente: o que é analisar essa obra e essa vida?

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A despeito de todo o juízo de gosto que se pode ter sobre Woody Allen e seus filmes ("eu gosto, eu não gosto, é gênio, é fraude, soa divertido, soa chato"), é inegável a importância dos mesmos na história do cinema, na criação de uma estética narrativa nonsense muito particular, na proliferação de toda uma cultura ao mesmo tempo pop e cult, e tantos outros qualitativos que renderiam um texto por si só; no entanto, quando esses complementos de sua obra o absolvem de antemão da alcunha de estuprador e pedófilo - o que, imediatamente, desqualifica o discurso de Dylan e a coloca num papel de caluniadora histérica - quando a obra de um sujeito o alça à categoria nobre e panteônica de um autor-de-obras-primas e, enquanto autor, figura acima da realidade mundana das desconfianças e litígios comezinhos, temos aí um sinal de que, ainda que sejamos alfabetizados e tenhamos devorado obras e mais obras, nós, todos nós, ainda não sabemos, de fato, o que é ler uma obra; uma vida, tampouco.

Esta feita, o dualismo vida-obra (e o analfabetismo funcional que lhe é correlato) impede que se discuta o caso com sensatez e, mesmo, que se discuta abuso e pedofilia como um todo. A conversa, resumida a um paredão televisionado, mantém-se no registo do "você acha que estuprou ou não?".

* * *

O século passado foi seminal para o surgimento de embates pendulares os mais diversos, e que até hoje parecem durar: "é o sujeito que 'imagina' o seu objeto de acordo com categorias mentais (idealismo representacionista) ou é o objeto que, sendo uma realidade em si mesma, se revela para o sujeito do conhecimento (realismo ingênuo)?"; "a personalidade é intrínseca ao indivíduo (inatismo) ou é adquirida na sua trajetória de vida (empirismo)?"; "a História é determinada por um elã evolucionista (ex. os vitalistas) ou pelas condições materiais disponíveis ao homem em seu fazer histórico (ex. os marxistas)?"; "o pensamento é uma realidade cerebral (fisicalistas) ou espiritual (mentalistas)?"; "as transações financeiras devem estar isentas de qualquer tipo de intervenção a elas exterior (economia de livre mercado) ou deve haver algum tipo de organização política que regule a economia e garanta serviços básicos à população (Estado de bem-estar social)?"; "a sociedade é composta por indivíduos (análise psicológica) ou os indivíduos são compostos por condições sociais (análise sociológica)?".

O começo do século passado também foi seminal não apenas na colocação destes problemas binários, mas, inclusive, na "suspensão" desses mesmos problemas (à título de exemplo, as obras de Husserl, Bergson, Nietzsche, Gabriel Tarde e outros, cada um a sua maneira, são tentativas de pensar uma filosofia não trincheirista, longe do "ou isto ou aquilo", ou Fla ou Flu; uma filosofia que não confunde pensar com adequar-se ao mundo, mas com recolocá-lo, recriá-lo; a releitura moderna de antigos pensadores, como Spinoza, Hume, até os estoicos, pode ser lida dentro desse projeto).

[É interessante notar, à título de hipótese, que cada época configura e modula os seus próprios dualismos, extremos de um campo problemático que organiza práticas institucionais, regimes de verdade e subjetividades distintos na tentativa de solver esse próprio campo; temos, p. ex., as questões antigas e medievais que procuravam saber da salvação do Homem em sua relação com Deus, e de como se dava essa salvação: se era o Homem que, através de um esforço livre e pessoal, é glorificado no amor de Deus (a ascética de Pelágio) ou se era uma entrega incondicional à Graça que salvava a alma humana (a mística de Agostinho); outros dualismos medievais "famosos" são razão-fé, gnose-fé, alma-carne, santidade-pecado, misericórdia-justiça, que se organizam não só num plano de ideias, mas num contínuo de instituições e modos de ser; essa discussão, embora preciosa, não é o foco desse texto].

Um desses binarismos, no entanto - a neocrítica e o intencionalismo autoral - nos ajuda a pensar a questão da vida, da obra e da leitura de ambas. Ao invés de falar do surgimento da neocrítica em meados dos anos 1920, ou mesmo de obras que marquem o seu consolidar - como o ensaio The Intentional Fallacy, de Bearsley e Wimsatt - vale a pena marcar duas obras nas quais esse dualismo (em suas formas caricatas, ao menos) se torna claro: os geniais A Volta do Parafuso, de Henry James e Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Na primeira, temos o personagem Douglas lendo o manuscrito de uma governanta já morta; na segunda, o personagem Bento Santiago unindo relatos de sua juventude até os seus 54 anos.

O primeiro ponto em comum de ambas as narrativas reside no fato de que o leitor - nós, no caso - lê não apenas uma história envolvendo este e aquele personagens, mas o documento literário que tem em mãos faz parte, ele mesmo, do próprio cenário narrativo a que pretende criar; temos em mãos não apenas um texto "sobre" um mundo, mas um texto proveniente do próprio mundo! Outras histórias também jogam com esse recurso literário, como o Werther, de Goethe (temos em mãos não um relato "sobre" o jovem, mas as cartas escritas pelo punho do mesmo, até o seu suicídio), ou 1984, de George Orwell (quando Winston Smith recebe de O´Brien uma cópia do manifesto de resistência ao Grande Irmão, é o leitor que o recebe e é o próprio leitor que, posteriormente, folheará algumas de suas páginas).

A imanência do texto em relação ao leitor, esse efeito recursivo de imersão do leitor na realidade do texto e emersão do texto na realidade do leitor, esse efeito de nivelar leitor e texto num mesmo plano de realidade, tem um uso extremamente sutil e particular nas duas obras citadas. Antes de dizê-lo, vale notar que o efeito de imanência abole a figura do autor (não existe um tal Machado de Assis na antiga Rua de Matacavalos, nem nunca foi registrado alguém com o nome de Henry James nas redondezas de Essex); assim sendo, abole qualquer sujeito privilegiado que poderia estar de posse do verdadeiro sentido do texto; assim sendo, mais uma vez, o texto deixa de exigir interpretação - relação de transcendência, relação de ascensão do leitor, enquanto lê e interpreta, à condição divina do autor. E o que o texto sem autor e sentido prévio passa a exigir? Está aí o uso genial da imanência na escrita de Machado de Assis e Henry James: a polissemia.

A protagonista de A Volta do Parafuso, escritora do manuscrito e governanta dos irmãos Miles e Flora, começa a ver nos derredores do casarão as figuras de um homem e uma mulher desconhecidos; cada vez mais, sente-se convencida de que se trata dos fantasmas de Miss Jessel e Peter Quint, antigos empregados do lugar. O digno de nota é que ninguém, além da própria governanta, vê as aparições. A pergunta que se faz é "a casa é rodeada pelos fantasmas de Jessel e Quint (o texto que temos em mãos é o relato de uma governanta numa história de assombrações) ou a governanta está delirando aquela história toda (o texto que temos em mãos é o relato de uma mulher em processo de ensandecimento)?".

Bentinho, relator do texto que temos em mãos, texto a que chamamos Dom Casmurro, nos faz perguntar se "Capitu o traiu com Escobar ou Bentinho é apenas um ciumento crônico e inveterado!?".

Lembrete: não há Machado de Assis ou Henry James que possam ser inquiridos para que deem o real sentido da história, já que o texto-imanência os aboliu enquanto donos do sentido do texto, instaurando um mundo no qual os mesmos não existem. Detalhe: os escrevinhadores do texto, Bentinho e a governanta de Essex, também não existem efetivamente. O que sobra para questionar? O texto ele mesmo. E que indícios encontramos sobre a fidelidade (ou não) de Capitu, ou sobre o assombramento do casarão (ou não) pelos fantasmas de Jessel e Quint? Nenhum, nem pra lá nem pra cá.

Se Bentinho fosse um sujeito real relatando a sua história real, no sentido comum do termo "real", poderíamos inquirir à tal realidade sobre Capitu pesquisando noutros relatos, entrevistando pessoas, lendo diários alheios etc.; ainda que nos fosse impossível chegar a uma conclusão definitiva, a pergunta "traiu ou não" faria sentido, já que o texto remeteria a um fora, um extracampo que não ele mesmo; mas, vale lembrar, o texto em questão não possui autor e, radicalizando, também não possui um fora, situando-se num limbo que não é nem o "mundo real" nem o cenário ficcional a que remete. Não há extracampo ao qual um texto dessa natureza possa remeter. O referente do discurso do texto é o texto ele mesmo.

O que os tais textos (A Volta... e Casmurro) revelam para o leitor é, pois, a ambiguidade de seu próprio discurso. O neocrítico, então, dirá que a experiência literária sai do regime mentalista, do regime divino do autor-criador, e nos entrega uma evidência textual que, ainda que possa estar carregada de "intenções autorais", tem um valor em si mesma. O que o neocrítico tira da leitura de Henry James e de Machado de Assis é um novo modo de ler. Não mais se busca o sentido do texto nas intenções (declaradas ou não) de um autor, mas sim na única coisa efetivamente real no ato de leitura: o leitor e o texto.

O intencionalista, a despeito de toda a argumentação neocrítica, coloca que mesmo nos textos evidentemente ambíguos há um sujeito que empunha a caneta e registra as palavras. Mesmo no texto-imanência que suspende o autor há alguém com a intenção de fazê-lo.

O neocrítico responderá que não pode basear uma análise séria num suposto "estado mental" (logo, inacessível) como causa do fenômeno textual, levantando que, num extremo dessa postura, um texto pode dizer claramente uma coisa, pode levar seu leitor clara e distintamente a ter uma certa interpretação do texto, mas poderá significar exatamente outra devido a um pronunciamento de seu autor sobre o que ele, de fato, "quis dizer". A única coisa analisável é o "dito", o realmente escrito.

O intencionalista retruca que um texto produzido por alguém é diferente, por natureza, de um texto criado "por acaso" (o macaco shakespeareano), ainda que se trate do mesmo escrito. Para além, o texto só foi escrito "assim", de uma determinada maneira, devido às vicissitudes e particularidades de seu autor, e lê-lo é ler o seu autor; mesmo um apelo às regras gramaticais e da linguagem em geral são um apelo implícito ao uso que o autor fez das palavras em questão.

O neocrítico defenderá a sua interpretação do texto, já que a mesma está aberta à polissemia e, assim sendo, não exclui a interpretação de outros críticos que possam vir a fazer uma leitura do mesmo texto.

O intencionalista atacará, dizendo que suas interpretações não pretendem esgotar "a verdade" do texto, mas apenas evitam cair numa interpretação ao infinito do que está ali, contido no papel.

O neocrítico marca a importância das muitas técnicas de análise textual já desenvolvidas pela crítica profissional, e como elas operam uma tentativa para entender o texto sem a necessidade de "contaminá-lo", remetendo-o a outras instâncias. Ler o texto corretamente é ler o texto nele mesmo.

O intencionalista põe o texto como fruto de um extracampo não-textual (seja ele psicológico, social, histórico etc.), e identifica texto e extratexto. Ler o texto corretamente é ler o seu extratexto.

O neocrítico dirá que a sua "crítica" é "literária", não "existencial".

O intencionalista rebaterá que a literatura é um produto humano, não um conglomerado de palavras.

(...)

Abandonemos esse dualismo.

* * *

Woody Allen é (ou não) um estuprador?

Heidegger foi (ou não) nazista?

E nós com isso?

* * *

É impossível escolher um dos lados da seara literária, já que os dois são verdadeiros dentro do regime de verdade que cada um deles coloca. Arrisco dizer que boa parte das searas com que nos esbarramos pode ser representada por essa sentença.

Entendemos - e concordamos com! - os enunciados e argumentos elencados por cada um dos entrincheirados. Um deles, porém e a grosso modo, quer entender o sentido da obra perguntando à obra ela mesma o seu sentido ("o que o texto diz?"); o outro articula imediatamente a obra à vida do seu fora autoral e dele pretende sugar o sentido do que está impresso ("o que o autor quis dizer?"). Como subversão desse dualismo, sugiro a pergunta "o que acontece?". "O que produz e o que é produzido por este texto?".

Ler o texto "nele mesmo" e ler o texto "como extratexto" só são excludentes se o entendermos como protocolos bem situados e já institucionalizados.

Flamengo e Fluminense são excludentes em suas definições ponto-a-ponto (o brasão, o hino, a escalação, o técnico, os dirigentes), mas ambos são componentes de um mesmo "jogo", de uma mesma atividade simbólica, o futebol. O flamenguista e o fluminense terão, cada um, suas razões para investir afeto em um time (e não em outro, e não no outro), mas o estudo e delineamento de suas proposições e princípios não nos dará instrumento algum para melhor apreciar e entender a partida e, muito menos, para melhor apreciar e entender os meandros do futebol que suportam e condicionam aquela partida e a dualidade excludente que postula; ademais, o gosto pelo futebol não demanda a vinculação a brasão algum. Mas também não a exclui, decerto. Estar vinculado afetivamente a um time (ou a outro, ou a nenhum) não faz diferença quando se trata de ler o futebol, em seus muitos níveis (arte, performance esportiva, gestão do clube, patrocínio, e muitas, muitas, muitas outras), assim como afirmar-se Estadista ou Neoliberal por si só não influenciará bulhufas quando se ocupa um cargo burocrático de gestão política (tampouco quando se discute política financeira com seus amiguinhos no Facebook).

Há o texto (foco neocrítico) e há o extracampo desse texto (foco intencionalista). Esse dualismo também merece ser suspendido, mas antes disso, vale lembrar, ele nos ajuda a pensar a escrita longe do circuito representacionista, longe do texto que "quer dizer" alguma coisa. O que o texto diz está no texto ou fora dele? É isto ou aquilo? É ambos e nenhum. "O que o texto diz"? "O que o autor quis dizer"?. Como subversão desse dualismo, sugiro a pergunta "o que acontece na escrita e na leitura desse texto?". "O que produz e o que é produzido por este texto?".

* * *

Em resposta ao cara-ou-coroa que nos impõe a escolha do dentro ou do fora do texto, é mister uma leitura menos histérica do texto e das coisas que procure não dizer do que eles dizem (afinal, já falam por eles mesmos), mas dizer do modo como dizem, seja pra dentro seja pra fora.

Esse "falar por ele mesmo" não é um dado óbvio revelado pelo texto e pelo seu entorno. Muito trabalho há de ser feito para que os mesmos, texto e foratexto, se revelem. Mas texto e foratexto possuem uma verdade, um "Todo" que não é do plano da escrita, embora a envolva.

O suspense A Volta do Parafuso é uma máquina literária, constrói uma lógica interna e demanda um determinado leitor parecido com o leitor do drama Dom Casmurro, mas que difere em muito do leitor de Dom Quixote, romance narrativo por excelência, uma outra máquina literária com um outro funcionamento interno. Neuromancer, de Gibson, maquina uma literatura saturada de dados, tal qual o seu cenário cyberpunk, e produz um leitor ágil, malandro, gabola, que ou aprende a lidar com o fluxo de informações que lhe acomete ou morre nas ruas de uma Tóquio ao mesmo tempo hipertecnológica e precarizada, tal qual os seus personagens. O texto e o leitor de Ulisses, de James Joyce, é um "fluxo de consciência", é a negação de um texto e um leitor entendidos como coisas, um texto-objeto e um leitor-mente. O poeta também agencia suas máquinas literárias (alguns, como F. Pessoa, são engenhoqueiros múltiplos).

O cinema também nos permite essa leitura: em substituição ao dualismo interpretativo que tira do filme ou sua técnica (enquadramento, decupagem, banda sonora, raccords) ou sua "humanidade" (a "moral do filme", sua interpretação por este ou aquele sistema teórico, contextos históricos da filmagem, referências usadas pelo diretor), propomos uma busca pela máquina cinematográfica que opera em cada película, pelo tipo de montagem que agencia um sentido específico e um espectador específico (montagem orgânica, dialética, expressionista, quantitativista, neo-realista, "nouvelle vaguista", cinemanovista etc.). Não uma leitura pelo sujeito ou pelo objeto do livro e do filme, mas uma leitura que atravesse ambos e nos mostre a máquina que produz e é produzida por ambos. É essa máquina que podemos usar para produzir nossas próprias máquinas, e não apenas enunciados vazios e pedantes "sobre" a obra (e a vida).

Existem máquinas literárias, mas também cinematográficas, políticas, econômicas, científicas, filosóficas, religiosas. Elas se confundem, por mais das vezes.

* * *

Podemos ler Platão - o primeiro filósofo a deixar uma obra escrita coesa, consistente e de considerável envergadura - como o pensador "das ideias, da oposição aparência-essência, da oposição opinião-conhecimento", e muitos outros preconceitos que despejamos sobre o filósofo antes mesmo de nos debruçarmos sobre seus textos. Uma leitura minimamente implicada nos colocará em contato com os textos do ateniense (algumas cartas, muitos diálogos) e/ou com o contexto histórico no qual sua obra se desenrola (crise da democracia em Atenas), mas isto por si não nos impede de lê-lo e chamá-lo de "o cara das ideias", como o cara que escreve (ou transcreve) diálogos diversos, mas diálogos que versam, todos, no fundo, sobre a tal da "ideia"; seu Fedro trata do amor (e vela uma crítica à escrita, ao final), o Laques fala de Coragem, o Fédon nos ensina sobre a imortalidade da alma - em todos estes, podemos encontrar, lá, uma referência maior ou menor ao eidos.

No entanto, ler um diálogo de Platão de maneira enviesada, como se o texto fosse apenas um texto "para a ideia", como se o objetivo do texto fosse apenas escrever de uma maneira diferente a mesma coisa, é não ler o texto, é desrespeitá-lo, autor e obra, é tentar "interpretá-lo" e, em decorrência, destruir a sua máquina. É ficar "sobre" o texto e não engendrar coisa alguma com ele.

Acoplar-se à máquina literária de um texto não implica - aqui deixo registrado textualmente - desprezar as análises da obra e da vida. Não é um simples "uso pessoal" do impresso, do que está ali, dado (um modo muito peculiar de leitura, tão válido quanto qualquer outro, máquina literária que constitui um texto e um leitor como qualquer outra máquina literária) e, muitas vezes, implica toneladas e toneladas de estudo sobre a vida e a obra. Às vezes não, porém.

* * *

Woody Allen, cineasta, tem a sua obra. No entorno dessa obra, a vida, o extracampo que lhe dá consistência e que, juntos, fazem operar uma máquina cinematográfica.

Martin Heidegger, denker, tem a sua obra. No entorno dessa obra, a vida, o extracampo que lhe dá consistência e que, juntos, fazem operar uma máquina filosófica.

Allen é pedófilo? Heidegger é nazista? E nós com isso?

Allen tem a sua obra, mas a vida que lhe embasa não é a vida da pessoa de Woody Allen, não é desse sujeito que se trata. Heidegger escreve a sua obra, mas a vida que lhe embasa não é a vida da pessoa de Martin Heidegger, não é desse sujeito que estamos tratando.

O extracampo da filmografia de Woody Allen não é a sua vida pessoal. O extracampo da filosofia hermenêutica de Martin Heidegger não é a sua vida pessoal.

Ter assistido e gostado de Bananas, Annie Hall, The Purple Rose of Cairo, Deconstructing Harry, Match Point, Vicky Cristina Barcelona, To Rome with Love, Blue Jasmine e tantos, tantos outros, não nos autoriza a absolver juridicamente a pessoa de Allen (nem a atacá-lo com a justificativa de que é uma figura pública e, assim sendo, "está aí para ser falado, mesmo"), a menos que possamos absolver Sandro Rosell, presidente do Barcelona, das denúncias de fraude na contratação de Neymar devido ao bom desempenho de Messi nos últimos jogos. O extracampo da obra, a vida a que somos autorizados a falar quando entramos em contato com a obra, a vida que é o outro lado da obra de Woody Allen e que, junto desta, compõe uma máquina cinematográfica, não é a vida pessoal de Woody Allen.

Idem para Heidegger.

A questão de Heidegger pode até ser mais complicada, assim como outras figuras que pareceram não viver suas próprias filosofias "de vida", como Schopenhauer ou Sêneca, mas todas podem ser lidas através da noção de "máquina". A "vida" da filosofia - mas também a da literatura em geral, do cinema, da política etc. - não é a vida do sujeito individual, não são os desejos internos, conhecidos e desconhecidos, que motivam a escritura do livro, do filme ou do fazer público (embora possam ser...), mas o cenário englobante que lhe serve de solo e, ele sim, lhe dá um sentido (cenário este, repito, que até pode ser a vida pessoal; o socratismo e o platonismo, mesmo, se configuram como um pensamento que visa articular o conhecimento da verdade pelo sujeito com a transformação desse sujeito pela verdade; o cinismo, na mesma esteira, aparece como uma radicalização desse esquema e é a igualdade brutal e indissolúvel entre a vida e a obra filosóficas). É por isso que devemos perguntar a que interessa uma pergunta ou uma resposta para nós, enquanto leitores constituidores de uma máquina, e não a mim, a um eu, um indivíduo que gosta ou não gosta do filme, gosta ou não gosta de um livro, de um texto, de um time, de um partido político, e se mantém "sobre" este livro e este filme - pior, "sobre" a vida de seu suposto autor; ainda pior, "sobre" a vida pessoal do indivíduo que confundimos com a figura do autor - ditando sentenças terminais e arrogantes acerca do mesmo.

Maquinar é sair do "mesmo".

Maquinar é abster-se de interpretar o mundo inteiro.