domingo, 1 de janeiro de 2012

Protocolo cíclico (ou Da inumanidade)

Dois-mil-e-doze é um ano que já começou a muito. É o protocolo de fim de mundo, o protocolo da eleição presidencial estadunidense, o protocolo astronômico do eclipse solar (dois; um anelar, em maio, e um total, em novembro), é o término do primeiro período de compromisso do protocolo de Kyoto, é o protocolo de implementação do acordo de Schengen. O protocolo do protocolo, afinal. Dentre todos, o protocolo mais praticado, que suscita mais mobilizações, mais implicação, mais-valia, mais gentes, é o protocolo das listas de responsabilidades para o ano vindouro. Claro, podemos sempre ignorar que, de um ano pra outro, nada, efetivamente, muda, visto que se trata da simples passagem de um dia a um outro dia. Ou não; como o humano e sua inteligência operam com repetições, ciclos e rotinas, o "Feliz Ano Novo" poderia, sim, marcar o ponto de virada para um outro estado de coisas (alegria, paz, saúde, dinheiro etc. ad nauseam). Que seja. É este o período das famosas promessas e penitências para o novo ano, já que, como reza o espírito do capitalismo (cristão, neoliberal e, mais do que nunca, de economia integrada e crowdfunding, economia Millennial), alegria, paz, saúde e dinheiro só vêm com tristezas, guerras, sacrifícios e suores (uma verdade que, contada pela metade, torna-se mentira alienante). Resolvi, então, fazer a minha própria lista, mas uma lista meio diferente (e, por ser uma meio-lista, é mentirosa, mas diferentemente mentirosa). O objetivo para 2012:  buscar a inumanidade. E o que o humano inumano se torna? Divino, diabólico, animal, maquinal, atômico, cósmico, tanto faz. Inumanizar é superar a condição atual, virtualizando-a; é sair das imediaticidades, grupalidades e identidades, e abraçar os devires sem sujeito, os devires que não se sujeitam à resposta imediata, aos grupos isolados ou à mesmice do idêntico. Sem mais delongas, lanço em tópicos algumas características avulsas (existem muitíssimas, infinitas características) desta tal condição humana, mas sem muitas explicações, apenas mostrando do meu compromisso em abandoná-las ou, tanto mais humilde (e menos humano), em reconhecê-las no que ainda resta de humano em mim e em nós. Todos nós...

1. Não mais confundir o não gosto com o não presta, o não entendo com o não está correto, o não me serve com o não serve a nada, seja em filosofia, em música, em política, em cinema... Gosto e entendimento são acoplamento estrutural, não evolucionismo cultural;

2. Não mais lutar contra um inimigo (Charles Chaplin versus Buster Keaton, Barcelona versus Real Madrid, Machado de Assis versus Dostoiévsky, Clarice Lispector versus Virginia Wolff, Sergipe versus Confiança, idealismo representacionista versus realismo materialista, ateus versus teístas versus agnósticos), mas pela vida (abandonando o um-contra-outro, luta-se pela comédia, pelo romance psicológico, pelo esporte, pela prosa poética, pela pluralidade do pensamento, pelo espírito, pela existência);

3. Não mais psicologizar os eventos, substancializar os verbos, essencializar os acidentes ou individualizar as proposições coletivas (modelos em que um crime = um criminoso; um movimento artístico = um punhado de artistas; uma corrente de pensamento = um bando de pensadores; um gol = um craque; o amor = dois enamorados; uma governabilidade corrupta = políticos corruptos);

4. Não mais trocar pense nisto por pense isto, realizando a parte mais difícil dos regimes (os dietéticos, os estatais, os eclesiásticos): a de não impô-los aos de-fora;

5. Não mais desqualificar o já desqualificado ou qualificar o já qualificado (falar mal, como toda a gente, da música emo; comentar, como toda a gente, que "o livro é melhor do que o filme"; dizer, como toda a gente, que a reforma psiquiátrica é o que há em substituição ao modelo manicomial), visto que tanto a crítica quanto o elogio perdem sua potência quando articulados a uma rede produtora de imagens e palavras prontas, buscando, isso sim, não mais a resposta para a situação mas algo que problematize e opere no contexto inicial (dizer da história do emotional hardcore e sua proposta político-afetiva de rompimento com o punk; falar que a adaptação d´O Senhor dos Anéis pelo Peter Jackson - ainda que tenha hiper-dimensionado alguns personagens e excluído outros - manteve o sabor épico-geográfico e a valorização da amizade trazidos pela narrativa de Tolkien; perguntar, inocentemente, se o militante já visitou um CAPS ou uma residência terapêutica alguma vez em sua curta vida);

6. Não mais aceitar, em excesso, os rebotes do afeto; rio de algo que me lembra uma situação engraçada, gosto de uma música que uma pessoa querida me apresentou, não vou com a cara daquele professor que o meu veterano detesta. O fato do afeto operar por rebotes fala muito de seu caráter relacional e articulador mas, ao mesmo tempo, este rebote pode servir como ferramenta de submissão - implícita ou explícita, consciente ou não - dum corpo ao outro (ele gosta, então é bom; ele não gosta, então não o é); o perigo deste rebote é a inércia, a aprendizagem vicária a substituir os comportamentos operantes, é rirmos eternamente da mesma piada ("Alguém disse memes, por aí? Não!?..."), não possuirmos gostos (musicais, cinematográficos, culinários, indumentários...) que mobilizem nossos sentidos ou prezar mais pela galera pop que pelo amigo sincero;

7. Não mais valorizar os processos quando o que importa é o seu produto final (prezar pela saúde e pela boa aparência elas mesmas, sendo que o seu valor vem da ação coletiva tornada possível por um corpo saudável e belo) nem valorizar os produtos finais quando o importante for o seu processo (afinal, uma boa pontuação ao fim duma avaliação nem sempre se correlaciona com o entendimento do alunado);

8. Não mais sofrer pelo inevitável mas, ao mesmo tempo, não se resignar a ele, compreendendo-o. Se a doce esposa do sujeito sempre acorda de mau-humor, ele não deve esperar os comentários graciosos que ela, de praxe, lhe faria; se tenho um copo de leite, em mãos, e o torno, voluntariamente, de ponta cabeça, não faz sentido eu chorar de raiva pelo leite que a gravidade derramou; se a casa do estudante sempre ferve de visitas, é insensato ele reclamar - consigo e com os seus - da impossibilidade que é fazer uma leitura atenta e minuciosa das suas apostilas, e isto enquanto continua no mesmo espaço, na mesma estrutura contextual.

9. Não mais identificar o movente com o movimento; interessar-se pela arte não te obriga a idolatrar o artista, concordar com uma política pública não te obriga a filiar-se ao partido e gostar daquele post não te obriga a gostar daquele blog, nem daquele blogger.

10. Não mais levar os protocolos a sério. Ou não (dupla negação: lógica, dialética ou duração?...).