terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Sistemas Teóricos e Políticas Cognitivas (ou o porquê da minha não-filiação a nenhuma teoria psicológica...)

Como estudante de Psicologia, sou freqüentemente inquerido - por colegas ou não - sobre que abordagem metodológica eu pretendo utilizar ou que temáticas eu gostaria de abordar. "Você, que gosta de viajar, vai ser fenomenólogo, né!? Existencialista, talvez! Se bem que já te peguei lendo uns livros de Bergon e Deleuze pra sua pesquisa... Falando nisso, sua pesquisa é sobre idosos, acertei!? Pretende continuar abordando essa temática? Já sei, vai virar Junguiano!!! Eu lembro como você só falava de Jung no primeiro período. Além disso..." E a lalação continua ad infinitum, até que a pessoa se canse de cavar uma terra sem os tesouros que ela procura ou até que eu lhe devolva uma retórica qualquer, mesmo que desprovida de sentido para ela. É engraçado como as pessoas se encantam com os malabares da palavra, com os jogos da retórica, com a ciranda dos signos. E eu, confesso, encabeço esta lista de pessoas engraçadas. Comecemos, assim, falando da palavra...
Mudando de ares, viajemos à Grécia. Visitaremos os Helenos clássicos, para precisar nossa coordenada espaço-temporal. Na Grécia pré-socrática, conceitos como Verdade e argumentação lógica estavam reduzidos ao discurso e à beleza retórica. Falo "reduzidos" - deixo claro! - sem a intenção dum juízo de valor qualquer. Bebendo da genealogia nietzscheana [vide post anterior], vemos que a própria noção de Aletheia, verdade ideal, imortal, imutável, pode ter nascido com Platão e sua visão matemática do real. Foi a Dialética Platônica (que difere, em muito, da Ironia Socrática, mas esta é uma outra história...) que trouxe a idéia de Episteme, de essência, de transcendência. Antes do surgimento da Filosofia como heroína do conhecimento, dissipadora do erro e esclarecedora da verdade, tinhamos, tão somente, uma tal retórica filosofante, um convencimento pelo encanto, uma realidade poética. Eis o movimento sofístico, que tem Górgias como seu maior representante.
Os sofistas, em geral, e Górgias, mais especificamente, eram receosos em aceitar valores absolutos dado seus contatos com culturas outras, etiquetas outras, deuses outros. Todas estas representações não passavam, para ele, de construções lingüísticas, de jogos de palavras, de ficções, cuja razão-de-ser não estava, simplesmente, na representação das coisas, mas na própria criação delas! É neste sentido que, para Górgias a palavra é poética (do grego poyesis, criação). Nada há sob o véu das palavras. Não há o ser-em-si por detrás de nossos fenômenos. É na palavra, na poesia, na retórica, que o mundo se cria e recria para nós.
Adotando tal perspectiva do conhecimento, é inviável aceitar a existência duma realidade pura e bela para além de nossa percepção, mas não é por causa disso que caímos num relativismo exagerado, num oba-oba conceitual, no qual a verdade só depende dum discurso bonitinho e bem musicado. Tal visão de mundo em muito se assemelha à intencionalidade fenomenológica, à biologia cognitiva, à cartografia sentimental e a outras conceitualizações contemporâneas, mas não pretendo entrar nestes termos, ao menos neste post. Para Górgias, o bom discurso é aquele que almeja - para além de convencer multidões - o bem da pólis e, tão somente, o bem da pólis.
Tomemos, rapidamente, alguns sistemas da psicologia. O Gestaltismo e suas leis da boa forma. O Behaviorismo e suas regras de condicionamento e reforço. A Psicanálise e o seu inconsciente. A Epistemologia Genética e a sua equilibração. Todos, para Górgias, seriam simples jogos retóricos. Ao discutirmos os termos desta ou daquela teoria, não estaríamos falando de pessoas e suas experiências singulares. Estaríamos, isso sim, brincando com a própria palavra, com o próprio conceito, com uma categoria ideal longínqua e independente do humano. Toda teoria, todo sistema, todo método, pressupõe o transcendentalismo. No caso da Psicologia, busca-se sempre os invariantes da cognição. Cria-se um humano ideal, imutável, essencial e anseia-se presentificá-lo vezes várias e várias, visando não o humano singular, frágil e choroso, mas sua versão imortal, como arquitetura psíquica. Substitui-se a presença pela re-presentação, a liberdade pelo in-cômodo, a vida verde da imanência pela pós-vida branca da transcendência.
Utilizar uma abordagem teórica ou temática não se resume a adotar uma perspectiva de um humano numinoso, natural, dado à observação. Ser psicanalista não é apontar recalques, resistências ou outras instâncias psíquicas. É criar o próprio inconsciente no homem e jogar com suas próprias regras! Regras estas, claro, com fundamento in re. Um dado que não é dado, mas produzido! Assim, justifico a minha falta de opção teórica, mesmo amando-as todas, mesmo assumindo sua funcionalidade. Criar um determinado humano é abertura à possibilidade de previsão e controle deste mesmo humano. Mas é, igualmente, fechar-se à criação, à invenção, ao não pre-visto. Tratar a cognição, a mente, a alma, através duma teoria sistêmica só se justificaria se a cognição mesma fosse igualmente fechada num sistema. E o homem - Oh, bicho complexo! - tem sempre a mania de diferir de si mesmo...

2 comentários:

Mairla disse...

eu fiquei viajando quando vc fala que a filosofia surgiu como heroína do conhecimento.
sabe como é: causa dependência e pode causar danos cerebrais irreverssíveis! além de outros problemas de saúde... que aí eu deixo por sua conta, criatividade e risco!
risco nosso também! x)

"Um dado que não é dado, mas produzido!"
lembra que comentamos neh? sabia que vc ia usar em algum canto. eu gostei muito de ter lido isso e acho que faz todo sentido, pois me vejo na feira, na rua, na internet, com meus amigos, produzindo coisas e não simplesmente pegando algo que já existe e dizendo que existe!

gostei do blog, james! :**

Felipe J. R. Vieira disse...

Se tu fosses da época pré-socrática, seria um anunciador de verdades, não que seus textos se reduzam a uma bela retórica. São muito mais do que isso, possuem tamanha profundidade sem serem cansativos.

Os pacotes pré-definidos são altamente necessários, no entanto onde erramos é no desconsiderar as verdades dos outros, e fechar a mente para interpretações diversas.

Você faz muito em não se encaixar em um único molde, o que seria dos parafusos se só existisse martelos, não é?

Agora deixa eu ir comentar o próximo texto!