terça-feira, 23 de junho de 2009

Em Ritmo de São João


"Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος". É este o primeiro verso da boa nova joanina. Baseada nas compilações dos copistas, a transladação da sentença para o bom português apresentava o versículo como "No princípio era o Verbo". Já a edição pastoral, tradução mais recente que já tive em mãos, diz "No começo a Palavra já existia", seguida - logo após - de cinco parágrafos exegéticos sobre o contexto de enunciação do discurso!

O grego - principalmente o vernáculo Koiné, utilizado na escrita neotestamentária - é idioma por demais ligado ao cotidiano, ao concreto e à vida, mesmo em se tratando de abstrações, ontologias e metafísicas. Já o português - barroco em excesso - é cheio de cadências e floreios. A expressão "Ἐν ἀρχῇ" (transl. En arché) pode muito bem ser traduzida como "No princípio", mas o que um poeta heleno clássico entederia com "ἀρχῇ" não equivale ao que um prosaico brasileiro da modernidade significaria ao ler "princípio". Se transformássemos ambas as frases em conjuntos semânticos, pequena seria a área de intercessão entre ambos.

Por "princípio", entendemos o começo - seja espacial ou temporal - de alguma coisa. É aquele ponto a partir do qual uma realidade se inicia. Já "ἀρχῇ" quer figurar não o ponto de partida, mas aquilo que vem antes dele. Há uma regra de conduta clássica que valoriza aqueles que chegaram na frente (a logística da fila ou o nosso respeito pelos anciãos, por exemplo). "Aρχῇ" não é, como "princípio", o ponto de começo, mas é a zero-extensão e a zero-duração, anterior a tudo! É o mar arquetípico, anterior a todas as ondas tipológicas. Incluíndo a própria significância das coisas e - logo - as palavras e verbos que a manifestam.

É aqui que as traduções da tradição (e as interpretações corolárias a estas...) esbarram num dilema. Traduzir "Λόγος" (transl. Lógos) por "Verbo" ou - ainda pior! - por "Palavra" implica diferentes sentidos: uma semântica diferente, que aponta para uma sensação corpórea/constituição subjetiva diferentes, resultando numa política diferente que as gere e as gera! "Λόγος" pode, sim, ser traduzido como "palavra" ou "verbo", mas não neste dado contexto, no qual aquilo que é ("ἦν", terceira pessoa do pretérito imperfeito do verbo "Ser") vem antes de todas as coisas, incluindo as palavras e verbos que as designam!

As edições pastorais, num golpe de misericórdia no cadáver contorcido de João, traduzem o verbo "ἦν" por "existia" ao invés de "era", alterando essencialmente a semântica original. O cidadão grego possui todo um cuidado na lida do verbo "Ser", visto que aquilo que é, é! O Ser não equivale à simples existência factual, para o heleno. Tanto que o Ser nunca é negado na linguagem clássica (não se diria "Ele não é grego" mas "Ele é não grego"...). Logo, transliterar "Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ Λόγος" por "No princípio era o Verbo" ou, ainda, por "No começo a Palavra já existia" é alterar a própria estrutura fundamental e fundamentante da mensagem. Se o heleno, com a frase, entenderia que existe um princípio infundado anterior a toda existência factual e ôntica, além da temporalidade mundana, da limitação espacial e do falatório cotidiano, o homem do português significaria a mensagem com a idéia de que, antes do mundo existir, Deus - enquanto Verbo - já existia antes dele, sendo o ponto de partida e desvelamento do mesmo. E esta confusão toda só no primeiro verso dum livro de 21 capítulos!

Minha intenção, com este post, não deve ter ficado explícita. Além, claro, de compartilhar minhas experiência com os senhores, viso sempre apontá-los a um certo sentido. Post enquanto "ação na Pólis". Política! Nosso diálogo, então, não foi encerrado, visto que considero ter feito, aqui, apenas uma introdução a outras discussões que estão por vir...

sábado, 6 de junho de 2009

O Bêbado

O homem se levanta. Um banho gelado e um café quente fazem companhia a ele e a seu pão diário, ambos meio dormidos. Toma, religiosamente, seu desjejum. Veste, metodicamente, sua farda. Ruma, asceticamente, ao seu trabalho. E trabalha! E produz! E registra! E consome! E deseja! E - depois de tanto rodar - cai! Cansa de ficar parado e resolve diferir de si mesmo. O homem - então! - resolve aloprar. Sai do trabalho e escolhe se perder no caminho de volta pra casa. Conhece gente importante: poetas e pensadores, santos e sujeitos, corifeus a figurarem como ruas, avenidas, praças e travessas desconhecidas. O homem se perde na imensidão de seus novos amigos e se esbarra no Zé. Resolve - por ele, com ele e nele! - tomar uma ou outra dose de poesia. E - fraco e desacostumado que era à vida - embebeda-se! O homem se percebe bêbado quando não consegue mais contar quantas já virou. Foi-se embora o número, coitado! Bom moço, mas por demais exato para agüentar o homem e seu copo a transbordar. O homem se levanta e vai ao mictório. Cambaleia, tal qual o capoeira, talvez porque tentou caminhar reto quando não devia. Bêbado, percebe que não deve mais nada! Alivia-se do peso inútil do seu dia e, pronto para mais arte, encontra-se com o espelho. O homem percebe a si mesmo. Igualzinho, mas totalmente diferente! Fita os seus olhos semi-cerrados, sua tez rosada, um filete de saliva a lhe escorrer pelos cantos da boca, o cabelo desalinhado, o zíper da calça ainda aberto e uma porta que esqueceu de se fechar! Mira sua imagem destruída e rí como uma criança rí da piada velha. O bêbado percebe que - embora tenha de ser homem - ainda é um menino. Caule ancião, mas que ainda insiste em fazer brotar flores e cores. O homem, senhor de si, perde o controle da criança traquina. Bebe, bebe e bebe, até tombar. E se levanta! O banho não mais acorda e o café já não mais desperta. Sua cabeça dói e suas pernas fraquejam. Do topo à base, o corpo avisa: não quero trabalhar! Nem produzir! Nem registrar! Nem consumir! Quero abandonar o homem velho e beber o vinho novo. De novo! De novo! E de novo. Desejar, transbordar, apaixonar. Ser criança outra vez. Mas é só até o homem, à sua casa, voltar...