quarta-feira, 22 de maio de 2013

Spinoza, o economista

Proposição: Uma renda universal e incondicional como "direito" - e não como "esforço de inclusão" - a todo e qualquer indivíduo.

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Corolário 1: Segue-se, daí, que a renda básica se desvincule do emprego.

Corolário 2: Segue-se, em segundo, que o emprego (formal) se desvincule do trabalho (atividade diária que, mesmo a mais simples, participa indiretamente da economia).

Corolário 3: Segue-se também que não se trabalhará para receber dinheiro, mas, ao contrário, se trabalhará pois já se o tem.
Escólio 1: ...o que não desinstalará a opção ao emprego assalariado.
Escólio 2: ...o que não desinstalará ou substituirá subsídios específicos (como bolsas de estudo e de combate a pobreza) ou o sistema de seguros (aposentadoria, previdência etc.).

Corolário 4: Segue-se que o indivíduo, não mais determinado a trabalhar por forças alheias, torna-se livre.
Escólio: ...o que define o indivíduo não como uma substância racional ou outra generalidade abstrata, mas como uma singularidade, uma composição sem limites.

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Objeção 1: "Mas seria impossível financiar"!
Demonstração: Pegue-se, a título de exercício, a renda disponível oriunda dos impostos diretos dum Estado Nacional qualquer (após o pagamento dos benefícios sociais e afins) e divida pelo número de pessoas (aí inclusas as crianças). Para um exercício de pensamento menos radical, pode-se trabalhar no registro da "linha da pobreza", garantindo ao menos uma renda incondicional "suficiente" [noção que merece ser mais discutida] para a população. Além disso, outras fontes de recursos podem ser consideradas, como a criação de novos impostos direcionados (um aumento da taxa sobre o consumo, impostos sobre patrimônios, taxas para grandes riquezas, taxas para especulação etc.), assim como um corte específico n´alguns gastos públicos (redução no salário dos representantes, anulação de algumas das suas muitas concessões etc.).

Objeção 2: "Mas daí o assalariado bancará a vagabundagem de quem não quer trabalhar"!
Demonstração 1: Ver Corolários 1, 2 e 3.
Demonstração 2: A renda universal incentivaria e traria reconhecimento às atividades desenvolvidas fora do mercado, além de permitir que as pessoas pensem e desenvolvam projetos por si mesmas - independentes de referenciais acadêmicos e retornos mercadológicos, ambos quase indistintos - já que está suspensa a obrigação de "trabalhar para viver" (e o seu gêmeo, o "viver para trabalhar").

Objeção 3: "A renda incondicional, juntamente com os impostos e taxas que lhe sustentam, não pode ocasionar um aumento dos preços e dos produtos, tornando insuficiente essa mesma renda incondicional? E, mesmo que não ocorra um aumento dos preços, as empresas não podem compensar o aumento das taxas sobre elas com a redução do salário de seus empregados?"
Demonstração 1: Sim, isso é não só possível como esperado e mesmo desejado. No entanto e assim sendo, ocorrerá aos poucos uma passagem das relações de troca que envolvem a mediação dos indivíduos pelo Mercado (relação mediada pelo capital) por modos de se estar juntos mais informais, ou melhor, modos cujas formas se produzem na singularidade da própria relação que os constitui.
Escólio: ...o que operará a passagem duma sociedade que justifica a violência através do contrato para uma comunidade que se sustenta através dum jogo de amizade coletiva cujas regras não são dadas de antemão.
Demonstração 2: Ver Corolário 4.
Escólio: ...o que marca a diferença entre liberdade (um projeto ético sem etapas, cadeias de razões ou desenvolvimentos progressivos, que visa harmonizar os indivíduos às necessidades que lhe são próprias) e livre-iniciativa (a versão moderna e repaginada do livre-arbítrio, duma ruptura decisiva e definitiva, do repente da vontade que decide, por si mesma, passar da servidão à liberação).

Objeção 4: "A passagem de uma sociedade mediada pelo Mercado para uma comunidade que privilegia as relações singulares não desinstalaria, conjuntamente, outras instituições que compõem essa mesma sociedade, como a escola, o exército, o sistema hospitalar, as políticas de bem-estar social, e mesmo outras instituições mais sutis, como a família, a sexualidade ou a espiritualidade?"
Demonstração: Não, já que a passagem da sociedade à comunidade não equivale à passagem de um indivíduo a outro, mas de um modo de ser deste indivíduo para outro modo, a comunidade entendida como um modo de relação singular intestino à própria sociedade, e não como um alheio à sociedade. A passagem não desinstalará as instituições, mas apenas dará às mesmas, e aos indivíduos que lhe constituem, a potentia de agir, a libertas para perseverarem em seu próprio ser, e não mais se verem dominados por paixões que não lhes são próprias. Ver, mutatis mutandis, os Corolários 1, 2, 3 (com seus correspondentes Escólios) e 4 (e seu respectivo Escólio).

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Apêndice 1: Spinoza recomenda que seus possíveis interlocutores se inteirem do assunto - ou, ao menos, entrem no espírito dessa brincadeira conceitual - antes de elencar outras Objeções, que, de fato, devem existir aos montes e ser enunciadas.

Apêndice 2: Objeções de estrutura semelhante a "isso é coisa de gente feia, boba e chata" serão desconsiderados pelo Spinoza economista.

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