sexta-feira, 23 de maio de 2014

Thomas Piketty e seu cavalo de Troia

O "Capital no século XXI" discute as agruras do capitalismo não via produção - como fez Marx, por exemplo - mas focando a distribuição desta e a correlata produção de desigualdade imanente ao próprio desenvolvimento capitalista. É uma senhora pesquisa, a do livro, e colocou no seio de muitos espaços acadêmicos estadunidenses, inclusive os mais conservadores, a necessidade de se discutir questões que eram sempre deixadas à parte na prática da economia. Seu texto não repete aquela já velha trincheira ideológica entre liberalismo econômico e regulação via estado; pode-se sempre argumentar que as crises do Mercado se deram, justamente, por excesso de intervenção estatal, e é aí que reside a novidade de Piketty: ele não se resume a argumentar e defender a taxação progressiva e a tributação da riqueza (e isto a nível global, num imposto que alcançaria até os paraísos fiscais; a conclusão do seu livro), mas o faz com base em dados, dados, muitos dados, com base no "vamos aos fatos". O primeiro mérito do seu livro está em compilar mais de 100 anos de estatísticas sobre como o capitalismo, em seu modo de distribuição, é inegavelmente produtor de desigualdade. É exatamente por isso que Piketty sai da seara ideológica do Fla-Flu econômico, já que mesmo o defensor do livre mercado, em todas as suas vertentes, se vê sem argumentos lógicos contra a dureza dos gráficos e tabelas. O segundo mérito do livro de Piketty é que essa retórica tecnicista é, em geral, usada pra defender o Mercado (o neoliberalismo, em geral, é apresentado não como uma ideologia, mas como uma ciência); ou seja, o francês demoliu a argumentação contrária dentro da própria argumentação, e usando os termos e procedimentos do próprio argumentador. Neste sentido, ele (e sua equipe de trabalho, já que não se pesquisa sozinho) foi estrategicamente genial. Piketty, como já dito, desloca o foco da crítica ao capitalismo da produção para a distribuição, mas com isso não está dito, obviamente, que Marx não discute distribuição em seu próprio "Capital"; o foco da análise de Marx parece estar mais em como o modo de produção capitalista, produtor constante de mais-valia, seria a crise e o termo final do próprio capitalismo (um leitura 'grosso modo' do marxismo); o ponto focal, o campo de pesquisa da análise de Piketty não é no modo de produzir, hoje, mas no modo como a riqueza e a renda são distribuídas. Neste sentido, é uma análise bem mais singela e pouco radical no que toca a uma crítica ao capitalismo, mas essa mudança de foco é, ao meu ver, também estratégica, já que coloca um "cavalo de Troia" nos ambientes acadêmicos e políticos que tem apreço excessivo pela quantificação e uma "aversão natural" a todo criticismo revolucionário. Onde os críticos e marxistas veem pouca proposição e apenas remendos no modo de produção capitalista por parte de Piketty, eu vejo tática. É aí que reside o seu ouro. Duplo xeque: ao usar de números e mais números produzidos por pesquisa extensiva, o livro sai do duplo ideológico Estado-Mercado e de sua correlata predileção econômica entre liberalismo (sendo o anarco-capitalismo o seu extremo) e intervencionismo (sendo um Estado Comunista o seu extremo), inserindo uma discussão política num espaço liberal que a entende (ou finge entendê-la) apenas como uma discussão técnica, o único tipo de discussão que os acadêmicos economistas aceitam (ou fingem aceitar).

O xeque-mate vem na sua escrita: Piketty proseia como um não-especialista.


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