domingo, 5 de abril de 2009

Ponto de Mutação

Sonia é uma física que, desiludida com a utilização de suas pesquisas em projetos militares, isola-se numa ilha-vilarejo francesa para repensar suas práticas. Thomas é um poeta nova-iorquino que, não suportando o lifestile mercantil e capitalizado, refugia-se em Paris para refletir sobre sua profissão. Jack é um político que, tendo perdido as eleições para a presidência estadunidense, resolve passar uma temporada na França para problematizar as suas atuações públicas. Uma cientista. Um artista. Um político. Uma resolutora de problemas. Um criador de agregados sensíveis. Um agenciador de conceitos e teorias. Sonia, Thomas e Jack figuram, na película Ponto de Mutação, não somente como participantes deste ou daquele paradigma de percepção do real, mas como representantes mesmos de suas categorias puras.
A trama – curiosamente – se desenrola na França, terra de Descartes, pai da matemática e da filosofia modernas, ambas bases do pensamento científico na modernidade. O cartesianismo embasa não só nossos fazeres científicos, mas toda a nossa percepção do real. Vale salientar, entretanto, um fato pueril, ao menos em aparência: todos os protagonistas estão em crise! Problemas com os filhos, casamentos fracassados e conflitos de meia-idade apenas velam uma crise maior que os envolve, resultante do questionamento de suas funções mesmas e, conseqüentemente, de si mesmos.

Nosso saber tradicional é empacotado, dividido, espartilhado. A ciência cuida dos pensamentos ideais; a arte, dos sentimentos viscerais; e a política trata de bem agenciar todas estas coisas, como realidades postas e dadas. O encontro da ciência, da arte e da política na terra de Cartesius não nos soa como fato coincidente, mas como uma discussão profunda na pedra angular do conhecimento.

O que o filme propõe é uma complexificação desta pretensa simplicidade das matemáticas, uma sinceridade epistêmica, onde cientistas, artistas e políticos reconhecem as limitações de seus saberes. Propõe-se uma ciência que é arte a ser contemplada e política a ser agenciada; uma arte que é ciência de si e política do mundo; e uma política que é práxis e theoria de nossas belas artes e boas ciências.

Podemos, facilmente, casar a obra de Capra com o discurso do Boaventura, principalmente no tocante à emergência duma nova percepção dos nossos saberes e fazeres científicos. A superação da dicotomia sujeito-objeto, a crítica à especialização e a proposição dum saber holístico são três pontos que se atravessam em ambas as discussões.

Por ser erigido sob a matemática cartesiana e a filosofia mecanicista, o saber moderno é quantitativo, categórico e pretensiosamente universal, tornando o conhecimento das coisas uma medição rigorosa das mesmas. Tal percepção, por nos legar um método capaz de bem conhecer o real, acaba criando um homem solipsista e esquizóide, independente da natureza à qual ele pretende prever e controlar. Homem, sujeito puro e transcendental, o que justifica toda uma manipulação desenfreada do mundo e, destarte, de outros homens!

Tal aferição rigorosa da natureza também tende a formalizar e sectorizar nosso conhecimento, por emular o formalismo matemático. Ciência pra lá, arte pra cá, política pra acolá, religião pra além... Ainda assim, tende-se a espartilhar o saber da natureza – e a própria natureza, no processo – dentro de tais setores! Ramificações e subdivisões que se assemelham muito menos a uma orquestra sincronizada do que a nativos de diferentes países presos numa praia deserta.

O conhecimento proposto em uníssono por Capra e Boaventura é total e, por ser total, é curiosamente individualizado. O novo cientista é plural, inventivo e pouco categorizável, assim como a sua produção de saber, que é o transbordamento de si no mundo. A produção de conhecimento como auto-biografia, posicionamento de si em relação às coisas.

Anteriormente posto, o Peixe Preso dentro do Vento – fisgado pelo Pablo Neruda e declamado por Thomas ao final do filme – nos revela uma verdade de difícil ruminação. Invisível, de tão óbvia que se nos aparece! Da mais excelsa filosofia ao mais gracioso dos poemas, da mais formal lei científica à mais radical transformação social – enfim! – toda a nossa produção de saberes só faz sentido, só cria um sentido, quando nos torna – individual e coletivamente – mais felizes!

Neruda nos mostra, através de cornucópias e madrepérolas, que nossos saberes sobre o real pouco tem de ver com o real per se. As representações que fazemos do mundo são – justamente! – isto! Re-presentações! Modelos ideais que são presentificados vezes e mais vezes, sempre que por eles chamamos, necessitamos, clamamos! Re-petição!

Falar sobre vastos oceanos e profundidades abissais é, tão somente, falar sobre eles. Por mais rigorosas que sejam nossas medidas, por mais adjetivadas que sejam nossas descrições e por mais funcionais que sejam nossas teorias. A sapientia não corresponde à catalogação e manipulação de culinárias e mais culinárias, mas sim dum saborear sutil – vivo! – do mundo e de nós. Calemos sobre o mar! Deixemos que as lagostas e as medusas teçam suas próprias práticas e contemplações sobre si mesmas. Deixemos que vivam...

Um comentário:

Felipe J. R. Vieira disse...

Como poderia comentar este texto sem antes ter assistido o filme. A interconexão do universo, o mistério do subatômico, a angústia da existência. Todos em uma única problemática. Conhecer o todo é impossível e só ver as partes é imcompleto.
Agir, pensar ou sentir? Todos estão certos, mas o importante é viver.