quarta-feira, 15 de abril de 2009

Verdade e Poesia

Filósofos e Sofistas. Este combate – que a nós soa maçante e enferrujado! – revela que já entre os helenos clássicos havia uma certa preocupação com a veracidade do conhecimento. Os amigos da sabedoria, detentores da Epistéme e da Alethéia, da boa ciência e da verdade imortal, acusavam o movimento sofístico de perversores das belas idéias. O sofista, para o bom filósofo, era um exímio retórico, um melífluo apaixonado e apaixonante que, através de poesia, convencia os homens das mais diversas e contraditórias inverdades. Por faltar ao sofista – brada o sábio! – o compromisso com uma boa lógica de pensamento e com a verdade certa que ela – invariavelmente! – levará, o filósofo assume-se um guardião dos valores eternos!
A crítica sofística à filosofia é, no entanto, muito mais contundente. Se os filósofos possuem um berço helenístico, os sofistas são nômades desgarrados; viajantes desapegados cientes da relatividade das etiquetas. Se o sofista é acusado de frouxidão epistêmica, ele acusa o filósofo de expositor-impositor de verdades. O filósofo – e agora é o sofista que brada! – é um mantenedor de sistemas, um justificador das opressões, um teórico aliado ao poder. É o filósofo – portador da centelha divina reveladora de verdades – que conceitua, formula, cria. Diz como as coisas são! E, por assim serem, definem como as coisas sempre foram e como provavelmente serão! O filósofo, por mais metafísico, abstrato e teórico que seja, está sempre afetando o real, lidando com corpos e pondo práticas em movimento.
A poesia sofística, neste perspecto, é que se apresenta como crítica do real, como condição de possibilidade para saborear o mesmo em suas facetas diversas. Valoriza-se, aqui, não a erudição im-pressa no livro, mas a “viagem” que dela fazemos, ex-pressa em nossos saltos e danças. Utiliza-se – sem temor! – saberes ditos inferiores, periféricos, marginais, excêntricos, ativando um conhecimento que não se pretende universal, mas assumidamente local e taticamente constituído. Trata-se muito menos da formulação dum saber dito relativo do que uma chacoalhada nos alicerces do estabelecido. Essa poética genealógica não objetiva fundar um saber mas, isto sim, descentralizar os efeitos de poder que subjazem um discurso válido, verdadeiro, científico.
Poderíamos nos perguntar, então, sobre o poder. Qu'est-ce que le pouvoir? Esta, no entanto, é uma pergunta de filósofo! Soa-nos muito melhor a canção dos mecanismos, a sincronia das disciplinas, a melodia técnica. Perguntamos, destarte, não sobre o poder, mas sobre seus efeitos e relações nos muitos níveis, domínios, planos e extensões que nos atravessam.
O poder, visto que fundado e fundamentado num saber dito absoluto, é necessariamente repressor de outras lógicas e conceitos que não o reconhecidamente absoluto. Poder enquanto desdobramento das relações de dominação, justificado por um saber que não finda a guerra mas, ao contrário, a funda!
A relação do poder com o saber – da soberania com a verdade – nos apresenta um terceiro ponto em nosso nada eqüilátero triângulo: o direito! O edifício jurídico, essencialmente, é encomendado pelo rei, para servir tanto de instrumento quanto de justificação de seu poder divino. O discurso legal tanto legitima a soberania quanto nos condena à obediência. Não a obediência do revoltado, do escravo e da criança, mas a acomodação sutil e sorrateira que nos forma, molda, cria. Não falamos do rei em trono dourado e do conselheiro com cetro de marfim, mas de seus muitos súditos, camponeses, menestréis, torturadores. Não se trata do centro, mas da margem; não da causa primeira, mas dos efeitos últimos; não o poder centralizado, mas seu desvelamento nas margens. Tal qual menino faceiro a tomar sua sopa pelas beiradas, mas sem nunca chegar ao centro.
A fala do filósofo, do sacerdote, do conselheiro real, é sempre carregada de lógicas discursivas produtoras de verdades. Lógica, hoje, figurada por médicos, psicólogos, pedagogos e demais detentores duma visão esclarecida da realidade. A medicalização de nossos comportamentos, a definição de nosso funcionamento normal, a educação ideal para nossas crianças. A própria normalidade só faz sentido quando se fixa o ponto central. A verdade! Uma verdade, um saber, um poder que não é coisa a ser possuída por alguns virtuosos a nos oprimir, mas que atravessa todos os corpos, do imperador ao coringa, num jogo de valoração do qual, aparentemente, não se pode fugir. Claro! O que se propõe não é uma guerra contra o direito, a soberania, a medicina. Quer-se, apenas, apontar em direção a um novo direito – antidisciplinar – livre de toda e qualquer dominação e soberania...

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