domingo, 13 de dezembro de 2009

Vieira

Vieira é um homem bom. Desses nos quais todo mundo pode confiar e - mais notável ainda! - desses que confiam em todo o mundo. Vieira ama o mundo! Vai à missa todos os domingos, paga o IPVA em dia, resolve sempre seus deveres de casa e, quando o tempo faz uma gracinha e resolve se dar um pouco mais para ele, faz artes muitas com seus poucos amigos. É uma criatura modelo, o Vieira. Platão não inteligeria nada mais ideal. E, por ser ideal, Vieira não era apegado às coisas materiais. Nem um corpo o Vieira tinha! Amava o mundo, é verdade, mas não pertencia a ele. Via-o de cima. E dos lados. Falava "sobre" o mundo. Falava "acerca" do mundo. Mas nunca falava "no" mundo. Ah! Minhas condolências, caros. Esqueci a parte mais importante: Vieira é um cientista! Desses que usam jaleco branco e tudo o mais. Não tinha corpo, o Vieira, mas jaleco ele usava. Era sinal de sabedoria. Ao falar de jaleco - o que lhe dava o engraçado aspecto duma rouba branca flutuante ocupada por um fantasma de ninguém - todas as suas palavras tornavam-se coisas aos homens de boa vontade. Estes, no entanto, eram pobres de espírito. Acreditavam em tudo que Vieira lhes mostrava. Como ninguém lhe falseava o verbo, Vieira estava sempre contente e satisfeito consigo mesmo. Corolário: nunca se questionava. Afinal, tinha um método. Tinha amigos que, ao usar o mesmo método, comprovavam a logicidade de suas proposições. Tinha contatos que, ao incentivar suas produções, propagavam a veracidade de seus discursos. Tinha a massa a seus metafóricos pés que, usando e abusando de seus produtos finais, entrava no jogo produção-consumo das verdades. Palavras feitas coisas! Um dia, apesar de ser noite - lembro porque estava escuro - Vieira tomou posse de mais uma verdade do plano das idéias e a mostrou aos seus confrades cientistas. No entanto, seus amigos não lhe deram bola. Seus contatos não lhe deram crédito. E a massa acabou em pizza. Desolado, Vieira percebeu que estava sem jaleco! Sendo confundido com um corpo - mesmo não possuindo um - não houve vivalma que lhe desse atenção. Percebeu-se um juiz tirânico a ditar retóricas e retóricas aos sem-jaleco. Percebeu que, por ser juiz, tudo era juizo. Por ser um árbitro desse jogo, tudo era arbitrário! Bonito jogo de palavras, este. E, por ser bonito, tentou comunicá-lo aos cientistas - e vestiu o seu melhor jaleco para isso - mas não adiantou muito. Assim como ele, os cientistas não tinham corpos para lhe darem ouvidos. Retirou suas vestes, mas tornou-se invisível. Resolveu, destarte, falar com os outros. Mas os outros estavam interessados em seus próprios assuntos, muito mais materiais que uma especulação transcendente que nem aos cientistas interessava. Vieira caiu de tristeza. E, caindo, machucou-se. E, de tanto se machucar, ganhou um corpo. Abandonou o caminho das nuvens e lançou-se às profundezas da vida. Sua nova ética não lhe permitia pronunciar mais nenhuma palavra. Estavam todas carregadas de moralinas, para ele. Agora, só queria viver! Ver, ouvir, cheirar, tocar, saborear. Teoria era só um balbucio de alguém - alguém de jaleco, ele salientava - sobre alguma experiência que teve. Estudar era apenas lidar com a experiência de outrem. Falar era apenas comunicar o que, de tão sagrado, não deveria ser pronunciado: a vida mesma. Pobre Vieira! Se antes abandonara o mundo e a vida em nome duma pureza linguística, agora abandonava a palavra e os outros em nome duma ética torta e incomunicável. Tornou-se um imoralista cheio de "não-me-toques", o Vieira. Mudou-se das nuvens, terra de todo mundo, para o chão, terra de ninguém! Sozinho, Vieira tropeça e cai, mais uma vez. Põe-se a sangrar e, ao ver seu sangue, chora. No entanto, estava convicto de que a vida deveria ser vivida. Abandonar isto não poderia, assim como o broto não pode retornar a ser semente quando constata a aridez do terreno. Já estava condenado à vida mas, como não tinha talento para a solidão, resolveu falar. Falou, mas não como antes. E os cientistas o escutaram. E os outros corpos também. E todos sentaram ao redor de Vieira para o escutar. Entre tantos, ninguém o compreendia, visto que todos o seguiam! Mas não ficou desolado, desta vez. Sorriu, pois ao menos um e outro dentre a multidão entenderia o seu sermão, pararia de reproduzir as produções de outrem e viveria sua própria história. O mais ético dos mandamentos, para os verdadeiros discípulos de Vieira, é procurá-lo em todos os cantos da estrada. E, caso o encontrem, a ordem é imperiosa: Matem-no! Ou, como o próprio preferiria, não o levem muito a sério...

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