quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Eu e o outro... (revisitado)

Vejam que coisa! Acabo de fechar meu sexto período no curso de Psi, mas desde o período quinto que desejava compartilhar com vocês um trabalho realizado numa disciplina que cursei sobre Análise Institucional. Pois bem! Como o trabalho estava carregado de pessoalidades e implicações, resolvi recortar e apresentar apenas os aspectos teoréticos do mesmo. Resultado: um texto morto - retalhado e costurado! - tentativa profana de construir vida com pedaços avulsos de carne. Dêem uma lida no texto-Frankenstein, saboreiem sua insossidade e o comparem com o texto original que voz apresento agora. Faço um adendo, antes! Uma coisa e outra do que escrevi já não me pertence mais. Foi pensado e escrito noutro comprimento de onda. Mesmo assim, deixo o corpo do texto imaculado, sem cortes, implantes e suturas, desta vez. Um corpo que, mesmo não sendo inteiramente meu, ainda tem um coração seu! Inteiramente seu...

Foi-me incumbida a seguinte tarefa: associar os comentários dos senhores professores, sobre a experiência de estágio no curso de Psicologia da UFS, com o conteúdo de Análise Institucional, lecionado durante a disciplina Psicologia Social II. Enquanto a comissão de estágio proferia conteúdos, pululou na turma um discurso sobre o estágio extra-curricular e as disciplinas eletivas, visto que uma experiência fora da academia não entraria nesta contagem de créditos. Confesso que me senti impelido a suscitar diálogos em sala, mas temendo desgostar os alunos e interromper a retórica dos professores, calei-me.

No entanto, julgo como necessário o desenvolvimento duma tal problemática, sendo justamente este o plano sobre o qual discorrerei. O proferido por alguns – e silenciosamente acatado por muitos – é apenas a ponta atual dum movimento temporal, a forma dada e natural duma força processual e intempestiva. Destarte, caminharemos juntos pela constituição do sujeito moderno, atravessaremos suas implicações mercantis e desembocaremos na apoliticagem e falta de implicação do estudante Psi, nosso ponto de pouso inicial.

Alguns aspectos desse brevíssimo ensaio devem ser trazidos à luz. Como coisa primeira e fundamental a ser dita, acredito que tal registro não foge do que foi pedido como trabalho de conclusão da disciplina, visto que continuo a parear falas da sala de aula com o conteúdo ministrado. Um segundo ponto é que evitarei, ao máximo, academicismos desnecessários, como as citações e referências ou até mesmo capas para o escrito, visando dar um caráter panfletário ao mesmo. Terceira e última instância: falarei sempre como pessoa primeira, como “eu”, como sujeito implicado, só utilizando a insossa linguagem impessoal dos eruditos como possível recurso retórico.

E, já que o “eu” se pronunciou, invoco o discurso cartesiano para fundar nossa discussão. Mas deixo claro que não pretendo atribuir a Descartes a criação do sujeito privado, da individualidade moderna ou do liberalismo. O francês apenas se nos afigura como um representante histórico, um resultante duma rede de tendências, como a alta da razão no Renascimento, o surgimento da imprensa e da leitura privada e os movimentos reformistas e contra-reformistas a valorizarem a interioridade individual.

No Discurso do Método, lemos o registro dum homem renascentista que, submetido a uma profusão de idéias e ideais a brotarem, prefere desacreditar a todas. Cético ao extremo, põe entre parênteses até mesmo a dúvida enquanto método – dúvida sobre a dúvida – dadas a falibilidade dos órgãos dos sentidos, a mutabilidade dos sentimentos ou, até mesmo, a suposta existência duma deidade maligna a nos enganar em todos os nossos juízos. Quando o pirronismo parece colocar Descartes numa seara insuperável, este encontra um fundamento para o conhecimento. Enquanto duvidava, existia ao menos o ato de duvidar e, para esta ação, supôs como necessária a existência dum sujeito pensante. Cogito, ergo sum!

Mudarei um pouco a trajetória, visando uma melhor colocação de nosso problema. Se pensarmos o comércio em termos de troca comunitária, podemos facilmente encontrar em todo agregado social alguma atividade comercial. É por demais comum o excedente de uma família ou clã ser trocado, eventualmente, pelo produzido por outros grupos, seja no medievo, numa aldeia indígena ou em cidades no interior de nosso Brasil.

Esta situação se altera, entretanto, quando a produção não mais intenciona o abastecimento dos feudos, voltando-se não à subsistência mas ao comércio mesmo. Já teríamos, aqui, um fundamento sólido o suficiente para sustentar o cogito cartesiano, visto que cada um procura identificar sua “especialidade” e nela aprofundar-se. Identifica-se com ela! Mas não paremos por aqui. O próprio mercado, enquanto lugar de compra e venda, cria a barganha, na qual o lucro dum torna-se o prejuízo doutro, e cada mercador deve defender seu próprio interesse. Quando todas as relações entre os homens se processam por meio da compra e da venda dum bem ou signo elaborado por particulares, quando – melhor dizendo! – o modelo do mercado é ampliado às demais esferas do relacionamento humano e o modelo do mercador torna-se experiência universal, naturaliza-se uma lógica egotista e individual na qual os interesses de cada um são mais importantes que os interesses do todo!

Antes de fecharmos nosso ciclo, farei breve comentário sobre o sistema de créditos para a aquisição de disciplinas, utilizado em nossas universidades públicas. Seria interessante pensar esse método, que se nos apresenta como supostamente indiferente – ou perigosamente natural! – como um dispositivo estatal para a prevenção contra movimentos instituintes, visto que dispersa o corpo dicente, seja durante um período dado, seja durante o desenrolar do curso em questão.

Voltemos à nossa sala de aula. À minha sala de aula! O ponto que captou minha atenção foi a importância em demasia dada pela turma à contagem de créditos. Antes de pousar por completo neste terreno, exponho o saber seguinte: um curso é feito de disciplinas obrigatórias (aquelas necessárias à formação do profissional, sua aessentia), disciplinas optativas (cursos alternativos à estrutura rígida, mas previamente estabelecidos por um departamento) e disciplinas eletivas (as matérias restantes a serem lecionadas no Campus e que, dentro desta lógica, pouco ou nada interessam à formação do indivíduo). Quando um aluno conclui todas as disciplinas obrigatórias e optativas de seu curso (aí inclusos trabalhos de conclusão de curso e experiências de estágio), o mesmo pode considerar-se graduado. Formado! Não obstante, cada estudante possui um limite de créditos referentes a disciplinas eletivas. Limite este que, caso seja ultrapassado, não entra mais na contagem de créditos. Esclarecendo: a disciplina ainda consta como conteúdo cursado, apenas não “gasta” créditos, no falatório do universitário!

Re-pousando em nossa arena, deixo em explícito os comentários em sala de aula. Os estágios clínicos e institucionais figuram como atividades obrigatórias no currículo de cada estudante Psi, mas um estágio extra-curricular é considerado atividade eletiva. O falso problema apresentado pelos meus colegas: após ultrapassar o limite de créditos eletivos, um estágio além-universidade não entra na contagem dos créditos! Soou-me estranha tal melodia, tanto que custei a acreditar quando vi tantas cabeças meneando positivamente frente a tal ladainha. Ora! Um estágio não institucional daria experiência profissional e pessoal ao estudante, isto quando não lhe garante alguma remuneração! E, dadas tais fortunas, é de se perguntar o porquê do apreço excessivo do universitário para com os números. Ouso apontar a direção.

O homem – no agora! – se fez indivíduo. Livre para defender seu interesse. A sanha do mercador contaminou a relação entre os saberes do mundo, a relação entre este mundo e o homem e o modo como este homem cria laços com outros homens. O Ser humano torna-se sujeito puro, e o estudante, ao crer-se como unidade, pouco liga ou se liga aos movimentos do socius. Para o aluno Psi, o que não compete a sua formação – a formação de si! – não possui valor!

Não lhe importam as precárias condições do Serviço de Psicologia Aplicada, pois ainda não é o seu tempo de estagiar; não lhe interessa uma discussão sobre reforma curricular, contanto que esta não interfira em suas notas; não lhe envolvem experiências fora da universidade, desde que estas acelerem a sua graduação. Os poucos implicados são tomados por arrogantes – metidos e intrometidos – isto quando não recebem a epítome de desajustados e subversivos, de acordo com um vocabulário psicológico tecnicista, experimental e positivista, reedição da verdade neutra e objetiva das revelações. Homens que se constroem fora da pólis, do público e do mundo, entorpecidos por uma interioridade subjetiva e privada que, mesmo sendo a maior riqueza do homem moderno, pouco dá de si para o bem do outro...

Jameson Thiago Farias Silva, aluno do 5º Período de Psicologia

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