quinta-feira, 18 de março de 2010

Da Fabricação à Realidade

Palavras e coisas. Entre os dois, um abismo colossal que tentamos suprimir com nossas engenharias de correspondência e representação. Com o Bruno Latour, a conversação é outra. Não mais a verticalidade do abismo entre discurso e mundo, mas a transversalidade das artérias pelas quais circulam as cadeias de transformações. O único discurso razoável e verossímel de uma mente sobre o mundo seria aquele que considerasse o maior número de relações que possibilita à ciência - e a própria mente, não mais isolada - existir! Se numa epistemologia tradicional quer-se libertar a ciência da sociedade, trata-se agora de ligar nossos saberes ao coletivo.
É comum escutarmos, pelos salmos dos estudiosos da ciência, jargões como "construção", "fabricação" e símiles no tocante à ação da ciência no mundo. Bonito, isso! Coisas, objetos, mundo; tudo é construído! Não obstante, essa metáfora bonita nos passa a idéia de que, se algo é fabricado, construído ou qualquer coisa que o valha, então este algo é falso e merece ser descontruído! "Coisa de pós-moderno frouxo!", resmungam os soldados da ciência. "Construir" e "fabricar" devem - segundo o Latour - ganhar novas significâncias, para além da analogia do mundo enquanto playground vazio à espera dos humanos brincantes.
Para a tarefa de Hércules, Latour se apropria do Mémoire sur la fermentation appelée lactique, considerado um dos textos mais importantes de Louis Pasteur. Através deste, Latour põe em ação duas narrativas: uma primeira, ontológica, sobre a conversão de atributos/desempenhos em uma substância/competência coesa (o que se aplica tanto ao ácido lático quanto ao próprio Pasteur); e uma segunda, epistemológica, acerca da construção dos fatos (e as implicações humanas e não-humanas deste desenrolar).
Logo no comecinho de seu artigo, Pasteur dita que a fermentação do ácido lático não possui uma causa óbvia. Se há algum fermento no meio desse processo, seria apenas um produto acidental e desprezível envolvido numa fermentação puramente química. Mas deixem-me situar, ligeiramente, o cenário de nossa historieta! Século XIX, círculos científicos, química de Liebig. Afirmar que um organismo vivo é o responsável por um processo de fermentação seria dar um passo atrás nas contribuições do senhor Justus e retornar às antigas explicações vitalistas que colocavam mais entraves e problemas que soluções e encaminhamentos.
Pasteur, ao que parece, pega bem essa onda. Não obstante, numa escrita abrupta, Luís grita: É ele - sim! - é ele, o fermento, que desempenha o papel principal! E, com este grito mágico, o fermento - que não passava de uma massa cinzenta aderida nos lados superiores do recipiente - torna-se, deveras, um fermento; deixa de ser nada e passa a ser alguma coisa! E o Pasteur, assim como a massa cinzenta do recipiente, também é transformado num outro, diferente daquele de antes do experimento! Este último ponto, prometo, ficará claro logo mais adiante. Tenham paciência, caros, e continuem a acompanhar nossa aventura. De começo, o leitor do artigo encara um mundo no qual o fermento/matéria orgânica é um substrato irrelevante ou mesmo decadente ao processo químico. Ao final do artigo, o leitor é transportado a um mundo no qual o fermento é uma forma de vida bem identificada e essencial ao processo químico em questão. Latour põe o problema: como Pasteur fez surgir, daquelas manchas cinzentas, uma entidade coesa (a saber, o levêdo da fermentação do ácido lático...)? Sua resposta: a nova entidade é um objeto que circula campos e mais campos de provas e transformações!
Não falei coisa com coisa, eu sei! Tentei explicar e trouxe mais confusão à saga. Mil desculpas! Uma vez mais peço mansidão aos corações dos senhores. Toquemos o barco que, assim espero, esta questão também será clareada. Sério! E, para abrir a mata rumo à essa clareira, Latour nos apresenta o seu conceito de nome de ação: uma série de desempenhos precede a criação duma competência que, no futuro, será considerada a causa destes desempenhos mesmos! Pegadinha: posso ser polvilhado, provoco reações de fermentação, turvo líquidos, consumo giz, formo depósitos, produzo gases, gero cristais e sou viscoso. Quem sou eu? Em primeiro, isto é apenas uma lista de itens que o Pasteur, provavelmente, registrou em seu caderninho enquanto traquinava no laboratório. O máximo que conseguimos tirar desta lista de itens é um ente frágil e indeterminado que, por enquanto, não passa de fruto da imaginação do Pasteur!
Seu Luís, não obstante, esmera-se para dar um estatuto ontológico à massa cinza que bordeia o recipiente. Mas do mesmo jeitinho que não basta ao bom candidato mostrar seu talento para ser considerado um ator, não basta fazer coisas para ser uma coisa! É necessário um contato, um peixe, uma ação por fora do palco, um ato por detrás das cortinas! Pasteur não hesita em mexer seus pauzinhos para pôr seu candidato sob os holofotes e compara o seu funcionamento, seu estilo de atuação, ao do já consagrado lêvedo de cerveja. A massa cinzenta recorre a um ator já estabelecido nos palcos da academia e, de mancha viscosa, passa à condição de entidade biológica, podendo inclusive ser organizada taxonomicamente. Não é, tão somente, um caso de transporte de informações que se transformam, mas é o próprio fermento que possui sua história de alterações ontológicas, passando de uma lista de atributos vagos à uma substância plena e viva!
Um ator se define através de suas atuações. Inferência simples, esta. E, para que o fermento bem-atue, o cientista elabora testes para o atuante mostrar quem é e como interage com outros atuantes. As cortinas do laboratório-cenário são levantadas por Pasteur para que seu novo candidato possa ser testado nesse mundo artificial. Desempenhos agregam-se numa competência! A mancha torna-se "O Lêvedo do Ácido Lático"! Num movimento posterior, a peça é encenada aos colegas acadêmicos de Pasteur, que dão o veredito quanto ao espetáculo. Noutros termos: há um primeiro teste, que se resume num conto de fadas, uma historieta linguística; um segundo teste, que é a configuração duma situação (aparentemente) não-linguística (tubos de ensaio, o fermento, o próprio Pasteur e seus ajudantes); e um terceiro, que é a tentativa de Pasteur - nos dois testes anteriores - em atribuir a competência do fermento ao próprio fermento, e não a sua habilidade retórica em inventar um teste para revelar um novo ator!
Um experimento, destarte, é um texto escrito para ser avaliado por outros para saber se é, tão somente, um texto. Caso a prova final seja bem-sucedida, entende-se que o texto não é, simplesmente, literatura ficcional, e que há verdade por detrás dele. O ator prova sua competência e o autor da novela, claro, também é modificado no processo; se Pasteur, através de seus testes, ajudou o fermento a se revelar para o mundo, o fermento ajudou Pasteur a ganhar uma medalha, a publicar um artigo e a se afamar na academia!
O fermento muda, Pasteur muda, a academia muda. Mas o que é exigido, no meio de tanta mudança, é a estabilidade do fermento. Não importa o quão engenhoso foi Pasteur ao criar seus dispositivos artificiais, os testes de seus colegas devem atribuir a invenção do fermento ao próprio fermento. Fato e artefato. Deste lado, as coisas são construidas; daquele, não há artificialidade nas coisas. E aqui esbarramos no principal entrave dos conceitos "construir" e "fabricar": tudo o que acontece, no vocábulo da ciência, é a descoberta do que já estava lá, seja "lá" a natureza ou a sociedade ou o que quer que seja. Um experimento - fabricado e não-fabricado ao mesmo tempo, saliento - enquanto "descoberta do que já estava lá" sempre vai apresentar um buraco, uma incógnita para a compreensão da originalidade na ciência. Para tampar este buraco, temos numerosas arquiteturas: a natureza exterior, sujeitos transcendentais, paradigmas sociais. A novidade científica, entretanto, se dá porque o experimento não é um "jogo zerado" ou um playground vazio à nossa espera; desvelamentos, a priorismos e potencialidades são apenas rebocos para sustentar um prédio destinado a ruir.
A ciência evolui por meio do experimento. Verdade. Mas o experimento não é uma descoberta, mas um evento circunstancial e histórico; história, esta, de humanos e não-humanos. Um evento no qual todos os envolvidos saem diferentes de como entraram: vide o fermento e Pasteur e mesmo a química acadêmica! Experimento enquanto evento e evento enquanto transformação. Espero, com este post, ter trazido alguma luz - ou, ao menos, não obscurecido de vez - à discussão desempenhos/competência para, assim, poder entrar de vez na temática de construção de fatos e o conflito - enfrentado pelo Pasteur - entre construtivismo e realismo...
LATOUR, Bruno; “Da Fabricação à Realidade"; In: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson C. C. de Souza; Bauru, SP: EDUSC, 2001; pp. 133-148.

Um comentário:

massenza disse...

Obrigada pelo esclarecimento sobre o texto. Li, reli e não tinha conseguido compreeender essa visão da descoberta pelo encontro.