terça-feira, 2 de novembro de 2010

Centro de indeterminação

Eu, mesmo, separaria a trajetória do Gilles Deleuze em três fases, do mesmo modo que os doutos fazem com o Platão: uma primeira, dedicada à história da filosofia (Empirismo e Subjetividade, Diferença e Repetição, Lógica do Sentido); uma segunda, em colaboração com o Félix Guattari (O Anti-Édipo, Mil Platôs); e uma terceira, dedicada ao estudo do conceito - e dos afectos e perceptos que aquele comporta - através das imagens, em especial das imagens pictórica e cinematográfica (Lógica da Sensação, A Imagem-movimento, A Imagem-tempo). Falaria, também, da influência de certos filósofos sobre o sistema deleuziano, em especial Spinoza, Nietzsche e Bergson, dos quais o Deleuze se apropria de diversos conceitos (imanência, potência, duração) para a constituição de seu próprio pensamento. Recomendaria, para o neófito desejoso em adentrar no conjunto da obra deleuziana, a leitura de algumas entrevistas disponíveis no seu Conversações, como Carta a um crítico severo, Dúvidas sobre o imaginário e, principalmente, seu afamadíssimo Os intercessores. Lapido aqui, lapido ali, lapido acolá e construo, com todo esse meu labor de ourives-pensador a unidade do pensamento de Gilles Deleuze.
Que contraditório afirmar-se um especialista na obra deleuziana! Platão permitiria isto com a sua trajetória, já que é um pensador das identidades e semelhanças. Homem de idéias! Mas o Deleuze, que prima pela diferença e pelo movimento, pelo afeto e pelo fluxo, não se sentiria muito feliz ao me ouvir falar em "fases da trajetória", "unidade do pensamento", "leituras iniciais", "sistema deleuziano", "conjunto da obra" e outros pecados que cometi no parágrafo anterior. Ganha um doce quem descobrir a todos! E ganha uma caixa de chocolates inteira aquele que já sacou aonde esta postagem pretende chegar. Mesmo que o erre no final, pois é esta potência do falso mesma que o Deleuze pontua ao caracterizar o pensamento. Não o substantivo, mas o verbo. Pensar! E verbo sem pronome, este.
Para o Deleuze, as coisas se dão por dom ou captura. Imagem bonita. Diz o menino que a leitura dum livro de filosofia em muito se assemelha à escuta duma música qualquer. Ou a música nos convém ou não nos convém. Simples complexidade. Posso, muito bem, submeter meu corpo a uma ascese severa que me possibilite - eu, brasileiro, nordestino, classe média - a gostar de, sei lá, música clássica italiana, cançonetas do renascimento, rapsódias polonesas, estudos russos. Mas julgo muito difícil entrarmos em contato com a diferença e não lhe sermos indiferentes. A menos que, num e noutro ponto de sua trajetória, a música, o pensamento, o movimento nos capturem e nos levem com ele. Enquanto para a tradição mais carola da filosofia, o pensamento seja uma faculdade capaz de representar e represar à sua própria maneira o fluxo do real, como uma aldeia a se aproveitar das margens férteis do rio, em Deleuze intuimos um pensamento que é, ele mesmo, o rio a arrastar, em sua corrente incontrolável, os corpos que habitam as suas margens.
Pensar, pois, é realizar encontros. Seja na arte, na ciência, na filosofia. Lembro de meus tempos de católico romano - a uns 5 anos passados, mas um passado que não mais parece me pertencer - e da força que me constrangia a buscar um embasamento melhor encadeado para as proposições que já eram verdades em mim. Descobri o Platão. Seu mundo de idéias oferecia-me um correlato perfeito da noção de paraíso, típica da cristandade ressentida. Li o Fedro, o Fédon e a República antes da minha adultescência, lá encontrando um bom espaço para repousar meu corpo. Mas o pensamento não para nunca! Movimento incessante. E mesmo tendo encontrado no Platão um bom amigo - daqueles cujo vocabulário tomamos de empréstimo e tudo o mais - o fluxo da vida levou-me a outros lugares.
Conheci, por acidente, o Jung. Sua teoria dos arquétipos em muito se assemelhava aos personagens conceituais da fantasia medieval, que eu conhecia dos jogos de interpretação e da literatura inglesa. Enganado pelo caráter "RPGístico" de sua obra, acabei encantado pela sua psicologia profunda, numinosa, quase mística. Na mesma época, mantive relações com o espiritualista Huberto Rohden, a quem muito devo até no estilo de escrita. Esbarrei-me, em posterior, nalguns escritos sobre o príncipe Sidarta. Buda informe. E, com ele, fiz nova parceria, tentando - inclusive! - apresentá-lo a meus velhos convivas. Não se deram muito bem e, com o tempo, comecei a andar mais com o Sidarta, que me apresentou novos amigos. Krishna e Lao-Tsé, seus nomes, embora o Platão ainda vivesse em mim, de alguma maneira. Nesta mesma época, entro em contato com os honrados samurais e sua ética. Depois de conviver com essa galerinha de olho puxado por algum tempo, minha permanência nos espaços da igreja romana se tornou insustentável. O pensamento em mim demandou a construção de novas espacialidades, ainda que inomináveis em mim.
Dentro da universidade, não consegui estabelecer cumplicidades a respeito do Jung. Foi deixado de lado, então, e deu lugar a outras amizades. Veio o Heidegger, o Foucault, os pré-socráticos. E, claro, o Bergson, que desde o 2º período letivo do curso de Psicologia me acompanha, mas só em recência começou a encarnar em mim. Com o Bergson, o Nietzsche, os sofistas, a Análise Institucional pós-Maio de 68, o Bruno Latour, começo a pensar o pensamento não como uma faculdade do eu, à maneira de um Descartes e sua mente-coisa-pensante, mas como um devir ininterrupto de homens e coisas, sendo a consciência, o eu, um simples relé dessa rede. Só depois dessa história toda é que o Deleuze, antes um ininteligível filósofo francês, ganhou sentido e vida em mim. É a trama tecida que sustenta o personagem e seus diálogos. É a memória que possibilita e dá suporte a uma matéria. A história-de-mim produziu um corpo capaz de suportar algo do Deleuze, assim sendo.
Dizer do pensamento como um fluxo do real é um meio-termo entre a faculdade do juízo cartesiana e o pensamento acentrado esquizofrênico. O eu é como que um cristal do tempo, um fractal a recontar, a todo momento, a história do todo a lhe originar. Deleuze me diz de mim, de minha história toda. O mesmo do Bergson. E o mesmo do Platão, aquele mesmo lá no início da trajetória. Cada ponto que nossa inteligência demarca é um tijolo a carregar toda a estrutura da casa e a reinventar a história do universo em nós, cada vez que a contamos e recontamos. O eu é fruto da trama do mundo, é seu centro de indeterminação, visto não ter um passado definido, passado-baú-de-lembranças, nem um futuro determinado, visto ser acumulação da história e consequente criação de si mesmo e do universo. Sou parte do mundo, mas sou o mundo em sua plenitude, ao mesmo tempo. Sou imagem do mundo e filho da sua imaginação. Penso, logo sou, diz o outro. Infere, do pensamento, uma unidade sólida e definida a lhe servir de causa. O eu como verdade indubitável, como realidade clara e distinta em si mesma! Delírio de grandeza por excelência é o eu achar-se alguma coisa, não sendo - em verdade - coisa alguma. O mundo é que pensa! Não é de uma Psicologia que precisamos, mas duma Psicopatia; não duma ciência fria para bem delimitar as partes do todo, mas duma ética afetiva que nos obrigue a tomar posição diante da diferença. Deleuze sabia disso. E o Bergson. Nietzsche também, com toda a certeza. Talvez o Platão - mentiroso político! - também o soubesse, mas rendeu-se aos confortos da identidade. Ficou na mesmice...

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