segunda-feira, 29 de novembro de 2010

A praça e a invenção da razão

No século V, antes do Cristo, a Grécia estava dividida em muitas micro-cidades, sendo Esparta a maior delas, em extensão. Pela fala de François Châtelet (1994), sabemos que todas as cidades compartilham os mesmos deuses, idiomas e traços culturais, embora guerreiem entre si; contudo, a ameaça de invasões bárbaras, pesando constantemente sobre tais cidades, cria condições para o surgimento dum espírito novo a elaborar um novo urbanismo, novas constituições e, mesmo, uma nova modalidade de pensamento, visto as antigas tradições, míticas e religiosas, não bastarem mais para a manutenção das colônias de tais cidades e da relação entre as mesmas. Esse espírito renovador toma conta, principalmente, duma pequenina cidade de menor importância, Atenas, onde surgirá o que, futuramente, chamar-se-á “democracia”, definida pela igualdade de direitos de qualquer cidadão perante a lei, tendo todos os mesmos poderes para intervir e tomar a palavra nas assembléias, decidindo o destino da cidade.

Na antiga aristocracia, as decisões eram tomadas e aplicadas pela nobreza, descendente dos deuses e duma tradição moral e militar. Já na democracia, a palavra é que ganha estatuto nobre e “quem dominar a palavra dominará a cidade” (ibidem, p.16). A democracia ateniense se restringia a seu próprio território, porém. Os bárbaros oriundos da Pérsia, não obstante, invadiram as colônias gregas por duas vezes (490 e 480 a.C.) sendo a mirrada Atenas a cidadela que travou os combates mais decisivos contra tais invasões, em especial na Batalha de Salamina. Atenas, a partir daí, torna-se modelo de governo, e o gosto pela palavra toma conta da Grécia inteira.

Châtelet (1994) usa do termo grego tekhnê, demarcando o sentido duplo a que o mesmo aponta – podendo ser tanto um conhecimento aplicado quanto uma produção original, tanto uma técnica quanto uma arte – para explicar a importância do desenvolvimento da palavra na cidade, acarretando o nascimento dum saber específico: a retórica. Ocupar um lugar numa tal cidade implica, necessariamente, saber falar. Em específico, saber convencer. E, como em geral ocorre, o surgimento duma tekhnê promove o nascimento duma profissão. Platão muito nos fala desses professores da democracia, chamando-os com uma expressão que, em sua escrita, ganhou sentido pejorativo. A retórica, enquanto conhecimento de técnicas específicas, possibilita a existência dum intelectual que sabe falar, dum profissional que domina a linguagem: eis o sofista, pois.

A realidade social grega cria o personagem do sofista, extremamente colado a suas exigências democráticas de saber como convencer o outro. Por outro lado, havia o aristocrata, representante duma tradição gloriosa, deveras, mas envelhecida e não mais articulada às exigências do real. Entre esses dois vetores, podemos situar a aparição duma figura no mínimo curiosa, oriunda – ao contrário dos estrangeiros sofistas – da própria cidade de Atenas. Entra em cena Sócrates que, para o Châtelet (ibidem), é um sofista a seu próprio modo, com a diferença de que não abre escolas nem pede dinheiro aos cidadãos com que trava suas conversas. Fala em nome de seu gênio pessoal, diz.

Sócrates é cidadão ateniense e, como tal, sério cumpridor de seus ofícios na pólis. Sua profissão, no entanto, é falar com seus conterrâneos. Fala por prazer, por lamentar ver seus convivas se entregarem “à imoralidade e ao gosto pelo luxo” (ibidem). Num típico diálogo platônico, podemos ver Sócrates em seus diálogos a desdizer os juízos dos seus interlocutores e desmontar suas argumentações. Fala que, para responder ao que quer que seja, é preciso saber o que está contido na pergunta, conhecer a idéia que nela se encontra e, assim sendo, dar-lhe uma representação adequada. Sócrates inventava o que, em nossos tempos modernos, chamamos de conceito (ibidem). Começa a ser inaugurada a filosofia como a conhecemos, hoje.

Com seus argumentos destrutivos, Sócrates abalava as certezas sobre as quais a cidade ateniense estava construída. Procedia com refutações sistemáticas aos aristocratas, defensores da antiga ordem; aos sofistas, mestres da democracia; e ao cidadão comum. Coloca que o número de votos não faz a verdade. Saber construir um barco ou costurar sapatos não nos torna capazes de dirigir a cidade, dizia. Destruía a argumentação moral do aristocrata, a retórica sedutora do sofista e a logística da própria democracia ateniense. Tornou-se insuportável a todos! Refutava o discurso da autoridade, a retórica do competente e a opinião da maioria. Não é a toa que foi condenado à morte por cicuta.

Platão, através de Sócrates, se propõe a produzir um princípio condutor de toda ação. Se a razão não governar, a força prevalecerá”. De onde se originou este debate pouco importa, mas no Górgias, de Platão (apud Latour, 2001), ele é apresentado com muita clareza. O que se afigura não é a simples oposição entre razão e força, o direito e o poder, filosofia e retórica, Sócrates e Cálicles, mas o poder de um, o patrício, contra a força de muitos, a massa. Sócrates é irônico quanto ao poder de Cálicles, mas ele mesmo defende e tenta manejar um poder maior, capaz de controlar os “dez mil papalvos”: o poder da igualdade geométrica, o poder da razão, ignorado por Cálicles e pelos atenienses. A palavra filosófica se sobressai aos demais modos de dizer e se constitui como verdade. É ainda mais profundo, notem, visto constituir o próprio conceito de verdade (CHÂTELET, 1994)! Julga não somente os discursos mas, também, as condutas. Discurso totalitário!

É neste cenário disposto que a vida social se inventa. A construção das relações éticas, diz-nos Vernant (2006), na Grécia da antiguidade, passa pela constituição dos espaços públicos a se oporem às inúmeras sociedades e confrarias secretas. Os jogos políticos, outrora restritos à nobreza, ganham a praça e tornam-se controvérsia pública. A palavra perde seu estatuto ritual e se torna instrumento de debate. As leis, ainda que figurem como superioridades a guiarem o social, preservam um fundamento demótico atento às transformações e nuances da vida na pólis para a elas se adequarem (MACHADO, 1999).

Essa democracia, libertária e cidadã, passa a não suportar algumas desigualdades e incoerências que ganharam atenção pública, como a escravidão numa cidade que pretende representar o exercício ético da virtude política (VERNANT, 2006). Essa crise na pólis grega, iniciada no século VII e prolongada até os anos seiscentos a.C., é caracterizada por uma notável discussão sobre os sistemas a regerem nossos valores e o mundo. Nos séculos V e IV pré-cristãos, identificamos um deslocamento na atenção da filosofia, tornando as questões cosmogônicas e geométricas de outrora submissas às discussões éticas, às teorias políticas e às epistemologias. A cidade grega inventa a dialética filosófica que, como vimos, anseia produzir discursos universais e totalizantes. Verdade. Mas, ainda assim, o discurso sai das academias esotéricas e das confrarias aristocráticas para ganhar a praça pública, seja a praça do sofista, o bom falador, seja a fala do filósofo, missionário do verdadeiro...

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CHÂTELET, François; A Invenção da Razão; In Uma história da razão: entrevistas com Émile Noël; trad. Lucy Magalhães; Rio de Janeiro; Jorge Zahar Editora; 1994; pp. 15-33.

HERODOTUS; Diary of Xerxes' campaign; disponível em http://www.livius.org/he-hg/herodotus/diary.html.

LATOUR, Bruno; A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos; trad. Gilson César Cardoso de Souza; Bauru: EDUSC; 2001.

MACHADO, Leila; Ética; In Barros, Maria Elizabeth; Psicologia: questões contemporâneas; Vitória: Ediufes; 1999.

VERNANT, Jean-Pierre; As origens do pensamento grego; trad. Ísis Borges da Fonseca; 16ª ed.; Rio de Janeiro: Difel; 2006.

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