quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O mal que não é amor

Curioso é pensar o psicopata como um afetado. Um afetado da cabeça, das idéias ou da mente, que seja. A nosologia - fisiológica, psicanalítica, cognitivista - enumera os seus caracteres: emoções superficiais, teatralidade, sedução, remorso ausente, intolerância a frustrações. O psicopata é um transtornado, um antissocial que - devido a desvios cerebrais, traumas na infância ou esquemas mentais inadequados - pode por em risco a boa vida de seus bons convivas. Certo. Mas não esqueçamos de pontuar o seu principal aspecto, aquele que o define em sua essência mesma. Quer o chamemos de Egoísmo, Narcisismo, Egocentrismo ou tantas outras nomenclaturas, todas elas falam do mesmo: o psicopata se ama por demais!
No final é o amor que vence, percebam. O final sempre é feliz, justo e ordenado, mesmo quando a mocinha morre no final ou mesmo que o casal predestinado não consiga ficar junto. Griffith entenderia. A vitória eterna do amor - quer queiramos, quer não; quer enxerguemos, quer não - diz, em implícito, de um circuito liberalista, burguês e capital, no qual os melhores são selecionados, os mais aptos sobrevivem e o mais sublime dos caminhos é o escolhido para dar continuidade a nossa História. O psicopata delira mundos e fundos de mentiras, ignora lágrimas e risadelas de outrem e pode agredir, machucar, matar o seu próximo por motivações que pouco nos convenceriam a fazer o mesmo. "Mas por que?", pergunta o espírito moderno e científico do século XIX, um século que - mais do que nunca - insiste em durar.
Tá! Não é de psicopatia, capitalismo ou ciência que quero tratar, necessariamente. Façamos um plot, com isto. O mal do mundo não vem de sujeitos de ego grande que acabam prejudicando o outro, no processo de se amarem por demais. Respostazinha confortável. Não é o pathos, o grande problema. Mas a apatia, sua irmã preguiçosa, sedutora e adolescente. Dizem os desenvolvimentistas que a adolescência é etapa de crises. Mentira. A vida, ela mesma, é pura crise, marulho incessante do qual nenhum de nós pode fugir. Somos cindidos a todo momento, das nossas primeiras mitoses embrionárias ao funesto e derradeiro momento no qual perdemos os numinosos 21 gramas. O adolescente é um intermédio, um entre-dois, um médio-único, como diria um amigo. É um ponto imóvel entre dois movimentos. Ele passa por crises, verdade, mas a criança malina, o adulto chato e o velho senil também têm os seus dias de inventividade e rupturas. Todos diferem de si mesmos a todo momento. O Adolescer só faz sentido para o patrão burguês que olha para o seu guri, não mais um infanto dividoso mas ainda inapto a tomar o seu lugar nos negócios da família. Okay.
Já que começamos a adentrar no pântano da psicologia - um atalho, somente um atalho - convido os senhores a chafurdar um pouco mais nessa lama pouco fértil. Dizem que o lótus nasce do lodo, não é verdade!? Pois bem: Freud. O aparelho da alma freudiano tem algo de interessante para a nossa discussão. Ao construir um sistema psicológico baseado num fluxo e refluxo libidinal, à maneira dum encanamento, o Sigmund nos faz pensar que o desejo é que move o mundo e nos move sobre ele. É o amor a força motriz a nos servir de elã. Seu oposto, entretanto, não é o ódio. Não irei discutir, aqui, pulsões de morte e as diferenças entre as tópicas psicanalíticas. Não sou apto a discorrer sobre tais, nem quero fazê-lo no momento. Além disto, o atalho já está se tornando mais longo que o caminho das retas. Anti-euclidiano deve ser o atalho. Bonito, isso. Certo, certo, pousando. O inverso do amor - o cimento de nossa cultura e de nossas relações - não é a fúria destrutiva, a entropia dos sistemas, o demolir das arquiteturas. A vida se opõe a morte. O movimento, ao repouso. O amor não se opõe ao ódio, mas sim à indiferença. E é essa indiferença que parasita os devires do mundo e lhe retira sua potência criadora.
Do átomo à via de leite, tudo é vida, movimento e diferença. Tudo é amor. E ódio, também. Tudo se faz, se refaz, se acaba e se reinicia. Por Tudo, entendo a soma de todas as coisas. O conjunto a conter todos os conjuntos a conter todos os elementos do cosmo. Do caosmo, diria o outro. Tudo, contudo, não equivale ao Todo. Já discuti isto em algum lugar - se neste blog, eu não sei - utilizando de filósofos vitalistas, pensadores da diferença e do cinema para a empreitada. Repito-me, mas serei contido. O Todo, em resumo, é o movimento entre as partes de um conjunto. É o que evita que cada parte do conjunto, ou cada conjunto em relação a outros conjuntos, não se fechem em si mesmos. O 2, em relação com o conjunto dos números naturais; e este em relação com os conjuntos dos números inteiros, reais, racionais, até mesmo imaginários. Um conjunto não é a soma de vários elementos com algo em comum. Con-juntar é criar um procedimento, um modo de relação, uma dança. O conjunto dos números naturais é um procedimento. O conjunto das frutas cítricas é um outro procedimento. O conjunto das proparoxítonas francesas é um terceiro procedimento. É um modo de unir e reunir as imagens do universo num plano comum, e fazê-los dançar numa espiral cósmica que as junta e as separa, as divide e as comunga numa única temporalidade.
Alguns desses elementos são especiais, não obstante. São dobras deste coletivo de matérias-fluxo. São como coagulações deste sistema circulatório e movente que é o mundo. O que não é mundo é imundo, diz o latino. Roma já sabia que havia uma certa pureza no mundo, mas que não era a pureza das imobilidades de Platão. O puro é o harmonioso e o decantado. E, em ambos, nunca se faz puro em solitude. Pureza é estar com os seus, logo, mas visando não a paz. Esta é para os moribundos: "Que descanse em paz"! Pureza é afetar e ser afetado. E, na dança eterna dos elementos, alguns destes resolvem dar uma paradinha para esticar as pernas. A este repouso da matéria, a esta reação retardada de um elemento frente a outro, temos como consequência a chamada consciência. Também não explanarei sobre isto, agora. Só digo que um ser consciente é um ser lerdo, que não reage frente à ação recebida, mas a ela percebe, a sente por dentro, e só depois age, indeterminadamente. Encaminhamento simples e provisório, este, que será modificado em posts futuros. Por enquanto, nos contentemos com esta definição precária.
Como qualquer outro elemento da existência, o humano coexiste. Existe com outros e só existe com outros. Afeta e é afetado. O que o difere da matéria dita não-viva é a sua lerdeza, como já dito. Alguma força lhe afeta e ele não reage imediatamente, tal qual bola de bilhar. Ele processa - ou melhor - um processo se dá e o arrebata. Não são as coisas que mudam, mas nós é que somos interiores à mudança mesma. Esse processo, - cognitivo/afetivo/perceptivo/ativo/que seja - por vezes, se perde em si mesmo, como um loading eterno. É um movimento que não referencia o mundo para o qual reage, assim como a palavra do erudito. O bebê balbucia uma e outra palavra, mas todas carregadas de reais elementos do mundo. É o recém-nascido o verdadeiro universitário. Chora imediatamente, sem mediações. As coisas o afetam e ele, indefeso frente à miríade de estímulos fora do útero oceânico de sua mamãe, não sabe como reagir. Não pode reagir. É tudo forte demais. Então, ele chora. E chora até que aprenda alguma palavra sem sentido pelos lábios de seu pai burguês, aquele mesmo que inventou a adolescência.
Esse pai inventa para o seu menino brinquedos para a boca lhe calar. Que é o brinquedo senão um anestesiador dos afetos, um anulador da percepção e uma dormência das ações? Criança que é criança brinca com os seus, brinca de inventar, de cair e chorar, de gritar, de quebrar o brinquedo do pai e de se quebrar. Todo e qualquer elemento desse mundão carrega uma história. Troquemos a nomenclatura, agora. Chamarei de blocos de duração toda e qualquer unidade identificável e diferenciável das demais. Cada um de nós é um bloco de duração. O monitor, a minha frente, é um bloco, também. Um livro é um bloco de duração. Um filme. Um videogame. Uma pintura. Esse pacote de biscoito aberto, do meu lado, é um bloco de duração. As coisas são a história do universo coaguladas num ponto do espaço. Coagulação sempre parcial, visto a duração do universo sempre fluir e fluir e fluir. Os blocos, todos, se chocam incessantemente. O bloco-homem, no entanto, pode adentrar em circuitos de nada, de vazio, de vácuo, circuitos improdutivos e circulares, isolando-se da evolução criativa imanente ao universo.
É o homem do capital, o corpo-psicopata, o filho de pai burguês. A vida se quantifica e passa a ser ranqueada. Melhor e pior. O melhor: é ficar cada um na sua, em paz, vivendo em conforto, silêncio e imobilidade. Procura-se e se produz blocos e mais blocos de apatia: o cinema de encadeamento óbvio, a música de sucesso, o livro que virou filme, a conversa besta demais, a conversa produtiva demais, o humor com fórmulas, o amor sem dor. O mal não é a dor, mas a dormência que, cedo ou tarde, nos obrigará a amputar nossos membros, arrancar nossos olhos e estirpar nossos corações. Quando não mais pudermos perceber, sentir ou agir sobre a beleza das coisas, seremos bons indivíduos, mas não mais humanos. Não mais "dividuais", moventes, éticos, artísticos, filósofos, crianças. Fabricar um corpo-psicopata: estamos fazendo isso corretamente!...

* * *

Post Scriptum: o texto saiu maior do que o esperado. Tempo demais sem visitar estas terras, suponho. Acabei nem desenvolvendo a noção de blocos de duração, que deveria ser o carro-chefe do escrito. Uma dívida que saldarei depois, promessa...

Um comentário:

Felipe J. R. Vieira disse...

Parabéns pelo texto. Fazia tempo que não me debruçava em um texto seu até o fim. E como sempre me admiro com seus pensamentos e seu roteiro. Construindo belos blocos de duração que reverberam grandes ideias.

Até mais e vida longa ao sujeito transcendental!