quinta-feira, 17 de março de 2011

Mulheres de Atenas

Pois é, caros. Numa terça-feira que já passou, datada em 8 deste mês, se deu o Dia Internacional da Mulher, com iniciais maiúsculas e tudo o mais. Se é motivo para festejar, eu não sei. Não creio nisto. Mas assim que acordei, uma das mulheres de minha vida disparou: "Hoje é D.I.M.!" Não soube o que dizer ou fazer, ficando encabulado com minha falta de tato. Eu deveria ter lembrado, certo? Disto, também não sei. Nunca senti a necessidade de demarcar uma coordenada temporal para minhas mulheres. Sempre achei, caindo no clichê pop-rock, que todo dia podia ser dia de algo, de alguém, de alguma coisa ou de coisa alguma. Dia da Mulher, pois! Penso, então. Os outros dias não o são? Caso não, de quem o são? Do homem!? Sim, ao que parece, visto ser a única peça que falta no mosaico. Os dias todos são do homem, são coisa do homem, do homem-varão, do Hermes. E não há nada mais masculino que a criação dum dia para a mulher, intuo num raciocínio ligeiro. Deixo a idéia de molho.
Saindo do pensatório cotidiano, resolvo fazer uma rápida pesquisa sobre o que, afinal, se deu no 8 de março para que tal dia passasse a representar o feminino. A história. Em 08/03/1857, tecelãs nova-iorquinas ocuparam a Cotton, fábrica de tecidos na qual trabalhavam, para resistir às condições trabalhistas que regiam a produção de então. Devir-mulher a agenciar um mundo que ainda não tem o seu lugar. Utopia. A manifestação, violentamente reprimida, causou a morte de 129 mulheres que, trancafiadas na fábrica, acabaram carbonizadas pelo ataque incendiário da polícia local. Assusto-me. Continuando a pesquisa, ademais, descubro que só em 1975 - 35 anos atrás; 118 anos depois do acontecido! - a ONU resolve oficializar a data, visando sempre reavivar o espírito daquelas mulheres que, ardentes de fogo e de revolução, queriam problematizar a sua posição no mundo.
As mulheres de Nova York não se parecem muito com as suas congêneres gregas. Chico, o bento, dizia: Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas... Vivem pros seus maridos... Sofrem pros seus maridos... Despem-se pros maridos... Geram pros seus maridos... Temem por seus maridos... Secam por seus maridos. Muitos interpretam - e interpretar é coisa dos homens, dos sacerdotes de Hermes - que a canção destila ironia. Outros, numa hermenêutica ainda mais profunda (o homem profundo é a falsa mulher, é o falso sensível), falam que o estoicismo da ateniense é uma metáfora para a resignação do brasileiro frente à ditadura (blá-blá-blá-e-coisa-e-tal). O estudioso, o intérprete, o homem coloca essas duas possibilidades. Ou isto ou aquilo. Pode, ainda, ser aquele terceiro que esquecemos de considerar. Tanto faz. Mas o que diria a mulher, a ateniense, a esposa de sua própria situação!?
Nada. Pois a fala se dá na praça, sempre na praça, sempre entre outras falas, e a mulher de Atenas não sai de sua casa. Vida privada, privada do espaço público dos homens. Será? Idiota era o homem que permanecia em casa, com as mulheres, e não assumia o seu papel na assembléia, junto dos outros barbados. Mas a mulher, ela mesma, não era idiota. A mulher "suportava" o homem, dava suporte a seu homem e lhe criava as condições para que ele pudesse estar nos aerópagos. A mulher é o essencial invisível aos olhos. É o ser. Enquanto os falantes estavam lá fora no jogo da política e da ética, as mulheres - do lado de dentro - cuidavam dos pequenos, dos futuros varões a ocupar a praça do porvir; cuidavam da casa para acolher as línguas cansadas ao final do dia; cuidavam do seu homem a todo o momento de sua existência, enfim. Sorge heideggeriano. Era assim que participavam da cidadania grega. Não aos modos de suas colegas romanas, filósofas dos bastidores, a titeritar e manipular imperadores, mas com o silêncio e a imobilidade.
Não se trata de resignação. Helena não é Amélia! Há silêncio pois a mulher é indizível. Há imobilidade pois a mulher é o puro inefável. A língua divina é língua silente, inaudível aos ouvidos humanos. Hermes, então, traduz os ditos para que céu e terra se encontrem e se comuniquem. Hermes é deus-tradutor, deus-falador, deus-esmiuçador, mensageiro de seus irmãos divinos para os homens ao sopé do Olimpo. Socrátes muito deve suas habilidades de forja e escultura a Sofronisco, o senhor seu pai. Mas não existiria filosofia se não fosse Fenarete, sua mãe parteira. Chronos, deus-pai, precisa de Gaia, deusa-mãe, para que tudo corra nos conformes. Adão, homem-terra, precisa de Eva, mulher-semente, para arborescer. O próprio Todo Poderoso, para a realização de sua maior epifania, fez-se carne e submeteu-se a uma jovem menina que o suportou.
Pensadores de todos os tempos tentaram representar essa dualidade do real. Idealistas e materialistas, patrísticos e escolásticos, racionalistas e empiristas, dialéticos e positivistas, espiritualistas e fisiologistas, pós-modernos e experimentalistas. Problema mais mal colocado, este. Separa-se, desde sempre, o corpo de seu espírito e montam-se trincheiras para organizar os exércitos que defenderão um ou outro dos lados. Matéria visível e seu fantasma translúcido. Homem e mulher. Anér e Gyné. Spinoza fala que Deus é a alma do universo, sendo o mundo seu corpo. Deus que é corpo palpável e alma intangível. É tudo e todos. O homem é unidade, é matéria, é ser vivo, é a soma de todos os corpos reais e, mesmo, possíveis. Hermes. A mulher é o heterogêneo, é espírito, é a vida mesma, é o elã a atravessar todos os elementos e lhes dar uma evolução comum, um plano comum, um mesmo conjunto. Afrodite. Terrível. Bela. Amante. Mãe. Deusa. Incompreensível.
Dizer que Chico Buarque vende menos discos que o Luan Santana pelo fato deste possuir CD´s mais baratos é uma interpretação. Dizer que a noção skinneriana de comportamento operante é uma crítica mais bem colocada ao behaviorismo metodológico do que as estruturas merleau-pontyanas por estas serem menos famosas que aquelas é uma interpretação. Dizer que a educação das crianças parisienses é mais adequada ao gênero humano que os rituais de passagem dos Cherokee devido ao resultado dos francesinhos na Escala de Binet-Simon ser maior que o dos little indians é uma interpretação. Afrodite, porém, não interpreta. Ela manda a Psiqué aos infernos, lá onde Hermes não chega! Ao invés de preços, começa a falar de fomento à cultura, investimento libidinal midiático e ditadura militar. No lugar de argumentos mal ou bem elencados, diz de políticas departamentais nas academias. Em vez de buscar respostas nos testes psicológicos, fala de transculturalidade e antropologia simétrica. Hermes busca espaços seguros para pousar e fixar suas raízes. Afrodite temporaliza. Hermes quer categorizar. Afrodite diferencia. Hermes procura as soluções. Afrodite problematiza. Instituído e Instituinte? Nesta política da contrariedade ambos se igualam, tornam-se Instituição. Deus é Elemento do Mundo e Alma do Universo, é Hermes e Afrodite. Hermafrodita. Andrógino. Ser Integral. Corpo sem órgãos. O homem examina as peças, delineia os funcionamentos e esquadrinha os procedimentos. A mulher joga a questão para fora, articula as partes e produz o novo. Todos os dias - 1, 2, 3, 28, 31 - são do homem. O 8 de Março é da Mulher? Não. Esta não pode ter dia, hora, minuto, segundo que seja seu. Por mais que estrangulemos o tempo em intervalos menores e menores não encontraremos o invisível da mulher. Ela é o fluir. É o "entre", entre um e outro.
O 8 de Março é a mulher feita homem. É "O Feminino". Mulher hermética, fechada, que perdeu seu perfume afrodisíaco. A mulher entrou no mercado de trabalho. A mulher ganhou o direito do voto. A mulher tornou-se livre pensadora. Mentira. A mulher, aí, fez-se homem e tornou-se coisa visível. "O Feminino", repito feito professora maternal. A economia, a política e o pensamento não se tornaram mais silenciosos com isto. Ao contrário, ganharam mais corpos. Mais elementos a serem analisados e interpretados. O homem ganha e fortalece seu poderio. Mas a mulher, memória solar cada vez mais esquecida, continua a existir para além da luz de neón dos muitos planetóides hominais. O homem é ponto material. Sistema solar, no máximo. Mulher!? É Sol, calor, paixão. Homem é boca, mulher é o beijo dos enamorados; homem é olho, mulher é a visão da aurora; homem é nariz, mulher é o perfume de pintanga dela e o pós-barba dele; homem é face, rosto, identidade, mulher é falsidade, rostidade, afecção pura. É teia de aranha, é rede virtual, é conexão, é cyborg, é máquina desejante, é híbrido, é bricolagem, é a vida do vivo, é o movimento da bala de revólver, é a alma de Frankenstein, é a surdez de Beethoven, é a impressão nas molduras de Monet, é a expressão nas películas de Murnau. Homem é homem. E nada mais...

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