quinta-feira, 3 de março de 2011

Blocos de duração

A Empire, uma revista britânica de cinema, listou - em junho do ano passado - o que considera ser os 100 melhores filmes do cinema mundial. Britânicos e estadunidenses não entraram na lista. Au concours? Não creio. De qualquer maneira, fico feliz ao perceber que conheço - de vista ou de lida - mais da metade dos listados. O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Jean-Pierre Jeunet, França, 2000). A Liberdade é Azul (Krzysztof Kieslowski, Polônia, 1993). Akira (Katsuhiro Otomo, 1988, Japão, 1988). Asas do Desejo (Wim Wenders, Alemanha, 1987). Um Cão Andaluz (Luis Buñuel, Espanha, 1929). Solaris (Andrei Tarkovski, Rússia, 1972). Persona (Ingmar Bergman, Suécia, 1966). Acossado (Jean-Luc Godard, França, 1960). A Viagem de Chihiro (Hayao Miyazaki, Japão, 2001). Guardiões da Noite (Timur Bekmambetov, Rússia, 2004). A Regra do Jogo (Jean Renoir, França, 1939). Central do Brasil (Walter Salles, Brasil, 1998). Jules e Jim (François Truffaut, França, 1962). Os Idiotas (Lars Von Trier, Dinamarca, 1998). O Clã das Adagas Voadoras (Zhang Yimou, China, 2004). Persépolis (Vincent Paronnaud & Marjane Satrapi, Irã, 2007). O Vôo do Dragão (Bruce Lee, Hong Kong, 1972). Adeus, Lenin! (Wolfgang Becker, 2003, Alemanha). Oldboy (Park Chan-wook, Coreia do Sul, 2003). Nosferatu (F.W. Murnau, Alemanha, 1922). Os Sete Samurais (Akira Kurosawa, Japão, 1954).
A enciclopédia musical da Editora Moderna dedica a sua terceira parte a fazer uma historiografia da música brasileira. Começa com as influências lusitanas e africanas do Brasil colônia; passa pelos eruditos e modinheiros do império; chega ao final dos mil-e-oitocentos falando de choro e maxixe; adentra no nacionalismo brasileiro; passeia pelo modernismo; discorre sobre as vanguardas; prosa sobre a era do rádio; diz do surgimento do samba e de suas escolas; visita o baião, o coco e o forró nordestinos; põe um pé no fandango do sul e o outro no cururu do norte; destaca a música instrumental de caráter elitizado; ginga na bossa nova; divulga a era da TV e seus festivais; defende o tropicalismo; lista os grandes compositores e intérpretes ainda viventes; experimenta a vanguarda paulistana; detona no rock pós-80; e termina, engraçadamente, com um capítulo dedicado aos estilos populares - axé, pagode, rap, samba-reggae, hip-hop, funk - e outro, logo seguinte, apresentando o que há para ver e ouvir na música erudita contemporânea. Que festa! Carlos Gomes, Domingos Barbosa, Ernesto Nazareth, João Pernambuco, Pixinguinha, Alberto Nepomuceno, Camargo Guarnieri, Radamés Gnattali, Villa-Lobos, Guerra-Peixe, Mario Reis, Orlando Silva, Emilinha Borba, Cauby Peixoto, Carmen Miranda, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Adoniram Barbosa, Paulinho da Viola, Cartola, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Tonico e Tinoco, Pena Branca e Xavantinho, Garoto, Dilermando Reis, Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, Raphael Rabello, João Gilberto, Tom Jobim, Baden Powell, Roberto e Erasmo, Os Incríveis, Renato e seus Blue Caps, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, João Bosco, Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, Ná Ozzeti, Arrigo Barnabé, Raul Seixas, Lulu Santos, Barão Vermelho, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Zeca Pagodinho, Ivete Sangalo, Marcelo D2, Nelson Freire, Turíbio Santos, Bidu Sayão.
A revista Superinteressante, numa edição especial publicada em Abril de 2005, anuncia os 101 livros que mudaram a humanidade, dispondo-os numa linha temporal. Diz o nome original da obra, a sua nacionalidade, a área do saber na qual o livro se encaixa. As três principais informações, no entanto: do que trata o livro, quem o escreveu e, finalmente, porque o encadernado mudou o mundo. A Bíblia. Os tratados hipocráticos. A República. Confissões. O Corão. O Livro das Mil e uma Noites. A Divina Comédia. O Príncipe. Os escritos de Giordano Bruno acerca do infinito, do universo e dos mundos. Hamlet. Discurso sobre o Método. Princípios Matemáticos da Filosofia Natural. Tratado da Natureza Humana. A Enciclopédia, idealizada por Diderot e D´Alembert. Os Sofrimentos do Jovem Wherter. Crítica da Razão Pura. Ensaio sobre o Princípio da População. Manifesto Comunista. Madame Bovary. A Origem das Espécies. Assim falou Zaratustra. A Interpretação dos Sonhos. O Processo. Ser e Tempo. O Ser e o Nada. 1984. O Livro Vermelho. Simulacros e Simulação. Estante mais heterodoxa, esta.
Diferenças é o que não faltam nas listas acima listadas. Cinema, música brasileira e literatura. Que um pouco de fotografia nos ajude a imaginar - tornar imagem - nossos pensamentos. Vamos ao cinema, de início.

Cena clássica de Um Cão Andaluz, filme surrealista de 1928, escrito e dirigido por Luís Buñuel e Salvador Dalí.


Akira, um anime cyberpunk de 1988 baseado no mangá homônimo de Katsuhiro Otomo, e dirigido pelo mesmo.


Juliette Binoche em A Liberdade é Azul, filme de drama dirigido pelo polonês Kieslowski, em 1993.



O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, comédia francesa de 2001 do diretor Jean-Pierre Jeunet.


Penso eu que o surrealismo de Buñuel, as referências à cibercultura de Akira, o drama profundo de Kieslowski e o riso contido da menina Poulain pouco tem de ver uns com os outros. O que têm em comum: são filmes, todos. E o que é um filme? Qual a essência comum que os mantém reunidos nesta categoria una? Digo-lhes: nada. Simples e puramente. Temos decupagem e enquadramento, trilha sonora e roteiro, personagens e cenários. O que cada um destes filmes entende por cada uma destas coisas difere tão gritantemente dos demais que só com muita ignorância e mouquice de nossa parte podemos dizer que se tratam de uma mesma coisa, que se tratam de "filmes". Se todos nos apresentam 24 fotogramas por segundo, o modo como montam, agenciam e enunciam tais imagens é díspare. Cada filme monta uma experiência diferente, configura uma noética muito particular e organiza um mundo de coisas assim e não assadas. A mulher que tem seu olho cortado por Buñuel seria parte de um experimento na Neo-Tókyo de Akira. A viúva Julie não seria tão sorumbática caso vivesse na França de Jeunet. Kaneda não teria propósitos tão bem definidos no mundo onírico de Um Cão Andaluz. E a radiante Amélie não poderia co-existir com o mundo monocromático de Kieslowsli. Cada personagem, objeto, ator, jogo de câmera, plano de fundo é idêntico a seu mundo. Alocá-lo para um mundo outro causaria a entropia da parte recém-chegada, do ambiente a recebê-la ou de ambos. Choque de universos, de cosmos, de mundus.
Podemos dizer o mesmo da música e da literatura. O que faria Paulinho da Viola na orquestra de Carlos Gomes? Como soaria o piano de Ernesto Nazareth junto dos sintetizadores do Marcelo D2? E se pudéssemos ouvir a Ivete Sangalo cantando Chico Buarque junto da Bidu Sayão? O inimaginável, imagem impossível. Mundos que não se colam. Impossibilidade que não implica impotência, não obstante. Não se colam, mas podem se bricolar. O virtual entra em campo. Jesus se inspiraria lendo o Manifesto do Partido Comunista? Como viveria o príncipe maquiavélico na politéia platônica? O que faria Kant para consolar as angústias de Werther? Como Freud interpretaria os sonhos de Josef K. e Gregor Sansa? O que é uma música? E um livro? A resposta, mutatis mutandis, é a mesmíssima do parágrafo anterior.
As músicas linkadas ao texto nada tem de ver umas com as outras. Os livros apontados ativam realidades distintas. A parte não é pedaço constituinte de uma estrutura maior, mas é uma visão parcial do todo. É o todo coagulado num único ponto. O Tao Te Ching, Crepúsculo e Memórias do Subsolo são livros. Papel de celulose ou fibra de carneiro, impressão digital ou escrito à punho, livro religioso ou comercial. Todos os livros têm em comum algo a ser exposto (palavras, imagens, fotografias...) e uma tecnologia que lhes dê suporte (brochura, papiro, códex...). Livros, músicas, filmes ou qualquer outra coisa, são todos blocos de espaço-tempo. Blocos de um espaço contrátil, dilatante, dobrável, e de um tempo que escorre, nunca cessa e dura. Blocos, estes, que nunca param de se chocar, alterando-se mutuamente. Kant, não sabendo como proceder com o deprimido Werther poderia, ele mesmo, entrar em desespero. O príncipe de Maquiavel planejaria um golpe de estado na aristocracia filosófica da república de Platão. Hamlet, depois de ler Heidegger e Sartre, percebe que seu problema "Ser ou Não-Ser" deve ser recolocado.
A existência não é um mundo, mas a energia resultante do atrito entre muitos e muitos universos. Uno e verso. É uma orientação - nunca finalizável, deveras - da matéria buscar alguma ordem. Vai se juntando, juntando, juntando. Partículas, blocos, planos inteiros. O mundo tende a ignorar o fora, entretanto. Considera-o como não-eu. E o joga fora. Dom Quixote é impedido de receber as visitas do Dr. Freud, os anjos de Wim Wenders tem o seu passaporte negado para a China d´O Clã das Adagas Voadoras, Michel Poiccard - o Acossado - só é pego no final pois não conseguiu passagem para o Irã de Persépolis, não tinha amigos no Japão d´Os Sete Samurais e não conseguiu fretar um ônibus na Central do Brasil. Akira, um filme, se assemelha muito mais à música de Vangelis e aos livros de William Gibson do que a outros filmes. Compartilham temporalidades, compartilham planos. Mas os planos, dificilmente, deixam blocos que lhe são alheios adentrarem seus domínios. Adentram de contrabando, sempre! Sorrateiros e furtivos, os estrangeiros chegam pela porta dos fundos - fingindo ser de casa - e fixam sua morada. Contam histórias de uma terra natal que não aquela. O mundo invadido, porém, nunca mais será o mesmo. Nem o bloco, pobre coitado. É Zeca Pagodinho tocando com o Villa-Lobos. É a Legião Urbana invadindo uma gravação do Orlando Silva. É Arrigo Barnabé tocando à quatro mãos com Radamés Gnattali. É um tempo que se dobra, um rio que sobe a ribanceira, um pássaro que voa de ré. Sem saber, muito bem, aonde esses casórios inesperados podem dar. É a vida...

Um comentário:

Felipe J. R. Vieira disse...

Parabéns pelo texto. Cada vez está mais perto de materializar sua definição de Blocos de duração. Cada vez mais classificações por forma, não por conteúdo... Quantos recortes mal cortados heeheh