terça-feira, 3 de maio de 2011

Lavoura Arcaica, Moderna, Contemporânea

Eu coloco uma questão. Lavoura Arcaica projeta um tal André (mas que poderia ser João, Pedro ou José) sufocado por um patriarcalismo universal e um maternalismo anestesiador. André sofre, se afeta, reage. Bergsonismo beirando a Nietzsche. Este último, mesmo, tornou-se carne na conversa-ação entre o pai e o filho, quando o pródigo à casa retorna. Filme apolítico e intimista, gritam alguns. Pergunto: onde reside o individualismo, aí? André é só André? André é um André? Ele é só? Ele é um?
É um filme que fala de afeto. Não o afeto do romântico, do mentalista e do cristão (quase a mesma coisa, os três), mas sim o plano-paisagem que vira primeiro plano. Só isso. Não o primeiro plano que parcializa, que recorta uma parte da totalidade e esquadrinha os seus interiores, à maneira dum cientista, mas o primeiro plano que transforma o próprio "objeto parcial" numa realidade independente. Primeiridade, diria o Peirce. Não é um filme que nos "fala" da alma do André, mas que nos coloca na dor do mesmo. O filme nos dói e nos pesa pois doído e pesado é o próprio afeto que arrebatou o André. O próprio afeto que o configurou e que se projeta em nós. Não a memória das coisas mas a memória nas coisas e as coisas se lançando em nós (nós-pronome-plural e nós-ponto-da-rede).
Não é um filme intimista, privado ou coisa semelhante. É apenas o afeto feito imagem. Não, não acho que o filme seja filosófico, no sentido (e apenas neste sentido) de que o mesmo discuta conceitos, apresente teoréticas ou suscite postulados. É um filme para ser discutido dentro do próprio filme, dentro da própria linguagem cinematográfica. Podemos falar de contextos históricos, referências bibliográficas, críticas à cultura e outras extrapolações, outros além-filme (extracampo?...), mas intenciono puxar - não aqui, não agora - uma discussão do filme pelos jogos de imagem que o mesmo constitui: excesso de primeiros planos "mal-decupados" (como os rostos cortados pelo enquadramento, causando um efeito de confusão semelhante ao falso raccord), o silêncio em momentos nos quais deveria haver ruído (a mãe acordando o filho, naquela dança das mãos por sob os lençois), câmeras sobre-humanas ou, mesmo, inumanas (André entrando na casa velha e a câmera o pegando de baixo do assoalho), a constituição de "espaços quaisquer" (transformação de detalhes duma cena na cena inteira; não como simples close, simples aproximação dum objeto parcial, mas a transformação desse detalhe - desse objeto - na cena inteira, tornando o fundo irrelevante e tecendo o objeto numa imagem-afecção deleuziana).
Quando falo duma análise das imagens ou dum estudo da montagem do filme, posso sugerir que o critério de julgamento para um filme ser bom ou ruim é a sua "técnica". Ou, mais ainda, que nada há para além dum filme que a sua técnica! Certo. Ou errado. Não é de técnica que falo, mas de linguagem, de linguagem cinematográfica, de classificação dos signos. Falo em "linguagem" não em seu sentido mais formalzão, saussureano (significante + significado = linguagem), mas numa alternativa para a separação do sujeito puro/significado (o "indivíduo" que assiste a película) com o objeto puro/significante (o "filme-em-si"). Linguagem semiótica, peirceana, é a que proponho.
Skinner diria (não com estes significantes...) que o ato de fala, de significação, de linguagem, é um comportamento, deveras, mas um comportamento atrelado a um circuito construído e mantido por toda uma coleção de elementos contingentes (não-necessários) a se articularem. A língua-que-fala só existe pois existe, aí, um ouvido no qual as palavras lançadas ao ar podem pousar e repousar. Uma fala é um mundo. Estudar o signo da linguagem, assim sendo, é estudar o estruturante que lhe dá condições para existir. Criticá-lo, virtualizá-lo, é mapear as suas condições de possibilidade, é re-configurar seu campo problemático. Isto se dá tanto na mais grosseira das partículas materiais quanto nas mais sublimes das artes. Agora, puxo o cinema.
Quando falo em ver o filme dentro do próprio filme, ou estudar cinema dentro do próprio cinema, não falo - tão somente, mas também - em técnica de enquadramento, em captura de movimento, em jogo de cor, em boas atuações (humanas e não-humanas), em equipamentos de gravação, em cenografia. Falo destas coisas, sim, mas não como "técnicas"; falo delas como "linguagens". De onde vieram? Pra onde querem ir? Por que assim o são? A quê servem? Tais perguntas substituem o "que é isto?" da filosofia, questão intelectual e moderna por excelência. Que é isto, o sujeito? Que é isto, o objeto?
Tratar o cinema pelo lado do sujeito (gênero dos filmes, reação da platéia, a moral da história, as inspirações pessoais) é resumir o cinema a simples produto, a simples coisa humana voltada para nosso consumo e posterior configuração identitária (filmes pra rir, filmes de terror, filmes pedantes franceses, filmes de ação explosiva...). Tratar o cinema pelo lado do objeto (técnicas de enquadramento e decupagem, escolas de montagem, tipos de roteirização, estúdios) é transformá-lo em laboratório, em uma espécime a ser dissecada e analisada por especialistas e sapientes do fazer cinematográfico, distantes da massa mortal. O estudo duma linguagem cinematográfica deve passar, pra mim, longe destes dois pólos, embora se utilize de aspectos dum e doutro, por vezes. Mas a idéia não é retratar nem os homens ("é um filme inspirador...") nem as coisas ("o filme possui travelings impecáveis..."), mas narrar o porquê de termos estes sujeitos e estes objetos e não outros, porque a platéia e a crítica especializada é assim e não assado, investindo numa produção que enriquece tanto a natureza do cinema quanto as subjetividades humanas.
No entanto, tratar das subjetividades humanas ou da natureza cinematográfica, antes desse trabalho "temporal", é danoso, insisto. Danoso no sentido de produzir indivíduos (sujeito) e especialistas (objeto) do e no cinema. Já lidar com o cinema enquanto um campo de signos, uma linguagem, uma duração e, só depois, retirar-lhe os sujeitos e seus objetos, é que enriquecerá a ambos. Retomando. O dano está na produção dum saber (todo coletivo produz um saber) que se quer desatrelado do mundo e das relações. Ele nasce de um coletivo, como todo saber, mas se arvora como a última bolacha do pacote, tentando dizer que é puro, coado, já que filtrou a humanidade das imundícies da natureza, e filtrou esta das vontades e ideias humanas.
Falar das paixões pelas quais um e outro da platéia foram arrebatados não é cinema, creio. Isso daí já é vida. É algo maior; não o infinitamente maior, mas o infinito mesmo. Um filme que arrebata alguém (muito melhor que um filme que arrebata a todos...) não é um bom filme, mas uma boa coisa. E esta discussão, ao que digo, já foge ao escopo duma discussão cinematográfica. É ética, é existencialismo, é política, é psicologia. Mas não é cinema (ao menos não por isto). Creio que falar do filme em termos de sujeito (as implicações da película em quem assiste) é ainda mais danoso que tratar das tecno-lógicas do objeto (fotografia, decupagem, montagem). Isso seria apegar-se a um (sujeito) ou outro (objeto) aspecto do cinema, dissecando-o. Falar do cinema - mas como signo ou linguagem! - é que é adentrar na própria lógica fundamentante do mesmo.
Mas repito, atento, deixo claro, digo logo. Não digo que devamos saber de todos os badulaques e penduricalhos usados na construção e gravação duma cena. Só disse que, muitas vezes, ao não fazer isto, estamos saindo do cinema. Entramos na ética, na política, na psicologia (sujeito/significado) ou na estética, no estilo, na técnica (objeto/significante). "Cinemar" seria falar dos signos e linguagens que produzem tanto esses sujeitos e sentidos quanto seus objetos e símbolos. Não prego um tecnicismo, mas apenas uma fuga do sujeito empírico. Um filme que me serve, ou que serve a um e a outro, ou que serve a todo mundo, não é um bom filme, mas - de novo! - uma boa coisa. É uma boa entidade, uma boa arma política, um bom recurso terapêutico, uma boa diversão. Mas o filme possui a sua própria linguagem, seu próprio plano de conversa, que pode passar tanto por movimentos de câmera quanto por risos, tanto por maquiagem quanto por lágrimas, tanto por figurino quanto por inspirações pessoais. O que quero dizer: falar de cinema não é falar nem de um nem de outro, mas do que dá sustança aos dois. É falar do tempo antes de trazer o movimento para a cena. Consciência cinematográfica contemporânea.
Imaginemos um saber cinematográfico arvorado na separação S-O. Temos o saber subjetivo de um filme, como o Lavoura Arcaica, por exemplo ("mudou minha vida", "me identifiquei", "é uma crítica à cultura") e o saber objetivo do mesmo ("é um filme com enquadramentos geométricos, à maneira da escola francesa..."). Essa separação S-O prejudica o coletivo porque se cria uma corja de intelectuais cineastas que dizem deter o saber sobre como fazer e falar sobre cinema, e um grupo de pessoas que, despotencializadas em sua produção cinematográfica, só podem se agrupar em coletivos identitários (curto drama, curto Tarantino, curto filmes franceses da década de 60, curto Chaplin) se quiserem viver o cinema! Elas não podem curtir o filme adequadamente ("vocês não entenderam o real significado das cenas...") nem fazerem seu próprio cinema, pensarem seu próprio cinema.
Lavoura Arcaica é um prato cheio para se discutir imagem (logo, para se discutir o mundo; as imagens do cinema revelando as imagens do mundo; crítica cinematográfica = ontologia): imagens de percepção, imagens de agonia, imagens de raciocínio, imagens de (re)ação, porém - mais especificamente - imagens de afeto. Não falo que o filme me tocou e me fez chorar e repensar meus conceitos e blá-blá-blá e coisa e tal. É um filme cult, intelectual, elitista? Talvez. Mas não desprezemos o cânone só pela sua sacralidade. Os santos - e não apenas os profanos - também merecem ser ouvidos, antes que os crucifiquemos...

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