terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Carta a um intelectual


Sou poeta, antes de qualquer coisa; mas poeta por incapacidade. Tenho certa inabilidade para com a ordem e o decoro. Olho pra você: engomado, perfumado, todo penteado. Escreve como um anjo. É encadeado, objetivo, cirúrgico e, como tal, é um enviado do divino. É a nossa diferença maior, inclusive. Indo direto ao assunto – o que não costumo fazer – digo que não partilhamos da mesma caneta. Escrevo para te dizer isto, e é só (somente, mas não sozinho, e por não ser sozinho, vou teimar e continuar a escrever, pra povoar isto aqui de gentes, bichos, monstros, demônios). A sua caneta aponta para as coisas, é caneta de adequação ao mundo, de referência ao real. Se eu te chamo de resignado? Sim! Claro! Mas não tenho muita certeza. A paixão, sim, mas não a certeza. Duvido, mas não como filósofo. Minha dúvida não é uma epoché, tampouco uma ignorância, mas uma doença. Você fala e escreve para informar um segundo sobre um terceiro. Seu mundo é um triângulo, seu mundo é uma trindade santíssima. Já eu não tenho um mundo meu. Sou incapaz de organizar e decorar a vida, e faço questão de não te deixar esquecer isso. Vê só, acabei de ler um texto seu; você fala de alguma-coisa usando o pensamento de não-sei-quem e aproximando com a escola de não-sei-onde. Seu texto é uma aula: todos os alunos calados (ou dormindo, já que calar é colocar os demônios pra dormir), uma cadeia de argumentos em desenvolvimento e alguma temática obscura  a se esclarecer. Quando escrever se resume a informar e comunicar, quando escrever se torna dar uma aula, a única lida que podemos ter com um enunciado é dizer da verdade ou da falsidade dele. Sintaxe, morfologia, semântica, gramáticas etc, etc. É verdadeiro, é falso, é ruído (o aluno que acorda). À sua fala que representa o mundo (epistêmica e politicamente), apresento a minha que o constrói. Minha linguagem é ferramenta, no literal. Um martelo para pregar, um violão para cativar, um punho para derrubar. Eu não “informo sobre o real”,  mas me insiro nele e o afeto. Gastar saliva para só dizer da verdade (ou da mentira, que é a verdade pelo  avesso; “desconstruída”, como diria você) é muito custo para pouco benefício. Salivo e faço poesia, e isto pela minha incapacidade de organizar a casa. Sou incapaz, já o confessei, e se sou um poeta é porque também não sei cuspir (o melhor custo-benefício da saliva,  inclusive;  nem Sócrates nem Cálicles, mas Diógenes). Você procede pela educação (a melhor das hipóteses), pela propaganda (o mal-por-vir) e pelo fascismo (os desejos de tirania; e falo dos cotidianos, mesmo) para construir um Mundo Melhor. O que faço em minha anti-filosofia é trabalhar, e trabalhar coletivamente, no incessante ofício de enxugar gelo que é construir nossas próprias histórias. Se o aluno acorda, isso não é lá algo ruim. Os ruidosos não precisam de educação, informação, punição, que seja; precisamos, isso sim, construir corpos que suportem esses ruídos e mundos nos quais esses ruídos possam tornar-se voz. Se sou incapaz de submeter os infinitos mundos e transformá-los num 3, é porque os próprios mundos não se prestam a essa tarefa. Minha incapacidade é respeito por esse desejo. Não sou parteiro das almas, mas um mago do câncer, um terrorista biológico. Você ajuda a dar a luz; eu, incito gangrenas. E isto porque amo, acredita? Já desisti de instruir o aluno, contextualizar o leitor e ler os textos de outros com os meus próprios olhos, e passei a trabalhar, inserido em meu próprio mundinho (e atento aos demais, que são bem mais que três), com minhas próprias ferramentas, numa história (e não mais num Mundo...) melhor.

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