segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Salto quântico


E, num instante, tudo muda. Não se é mais o Mesmo. O que o Mesmo se torna? O totalmente Outro, o divino e numinoso Outro, o diabólico e bacante Outro. E o que o Mesmo se torna, mesmo!? Ainda não se sabe. Não se é mais o Mesmo, mas ainda não se é um outro Mesmo. É o salto no escuro do homem de fé, do cavaleiro kierkegaardiano, esse tal Outro. É o movimento do eu, o Outro. O inverso nos esclarece: quando um outro se movimenta, o eu sente que algo efetivamente real acontece, quer um objeto tenha passado em frente a seus olhos, quer ele-Mesmo, o eu, esteja se movendo frente a este outro (que não é o Outro, atenção, atenção). Essa certeza-de-realidade do movimento fica ainda maior quando o eu-Mesmo o produz, depois de ter querido fazê-lo. A contração dos seus músculos reforça ainda mais a consciência deste movimento. Significa isto que apreende, ele-Mesmo, o movimento, internamente, como mudança. Quando distingue o som do silêncio, ou mesmo de outro som, o mesmo se dá. A passagem de um estado para outro é um fenômeno real. Absolutamente real. A vida se realizando como uma sucessão de estados, como um metacinema. Do frio ao calor, da alegria à tristeza, do trabalho ao ócio, a vida muda sem cessar. Uma mudança profunda, mudança que é muito mais do que parece e aparece no telão do cinema-da-consciência. O cartesiano, ele-Mesmo, sabe que existe. Sabendo disto, que existe, pergunta o que ele-Mesmo é: uma coisa que pensa, conclui pensando. Mas quem disse que ele-Mesmo, de antemão, era uma coisa? Ser é ser-alguma-coisa? O que é Ser? Ser é pensar um objeto, Ser é conhecer o mundo extenso, Ser é o caralho, escreve Descartes. Ora, Ser é mudar, é o movimento, diz a vida, canta a vida, pois. As gentes falam do tempo - está quente, está frio, está assim, está assado (o não-assim) - como uma sequência de momentos, de estados, e de cada um desses estados como se fossem blocos. E, ao dizer que mudam, entendem a mudança como a passagem de um desses blocos para um bloco outro (que não é o Outro). No que se refere a cada estado, cada bloco, creem que é idêntico a si mesmo durante todo o tempo em que dura. Uma preleção bergsoniana: o mais estável - o mais “bloqueado” - dos estados psicológicos seria a percepção visual de um objeto exterior que permanece imóvel durante todo o tempo em que é observado. Fita-se este objeto de um mesmo lado, numa mesma angulação, com a mesma luminosidade. A visão que dele se tem é idêntica à visão que dele se teve no instante imediatamente anterior, com uma única diferença: a imagem seguinte está um instante mais velha. A memória está presente no objeto, empurrando o passado para dentro do presente. Sensações, sentimentos, pensamentos, desejos, nunca param de se modificar, a todo instante, visto que, se cessasse seu movimento, cessaria o próprio fluxo que constitui sua duração. A psicologia cotidiana diz que a mente - seu objeto de estudo, sua coisa-que-pensa - salta dum bloco a outro. Seria mais acertado, no entanto, afirmar que se muda e se muda, sem cessar, visto que o próprio “estado” já é mudança. A descontinuidade da vida, da experiência psicológica, só se dá fenomenalmente, pois a atenção costuma operar através de atos, postos em série. A mudança, ininterrupta, só é notada quando imprime, no corpo, uma nova ação, uma nova atitude, logo, uma nova atenção. Percebe-se, assim, uma mudança de estado. É, pois, uma violência que demarca o ponto de mutação, que separa o frio do calor, o santo do apóstata, o anjo do diabo. E se o anjo caído vira diabo, um deus caído se vira em quê? Ganha corpo e vira gente. Mas Deus deposto não chora por perder seu trono, assim como o santo não chora por ser excomungado e o poeta não chora por ser incompreendido pelo gramático. Mas, sem choro, sem reação, como Deus, o santo e o poeta saberão que mudaram de natureza e se tornaram Outro? Não se sabe (mas eles sabem). O Mesmo sabe dele e do outro (que não é o Outro...), mas só o Outro sabe de si-mesmo (que não é o Mesmo, atenção), sem pensar muito sobre isso. Se pensar, vira outro, vira o outro de um Mesmo qualquer, vira um Mesmo qualquer e esquecerá que um dia já foi Outro. O melhor a fazer é esperar. E ver o Outro subir aos céus, mais uma vez, e virar outro Mesmo. Até que, num instante, num instante Outro, tudo possa mudar...

2 comentários:

Felipe J. R. Vieira disse...

Não sei porque, mas percebo que você já começou a escrever sua dissertação de mestrado heheheeh. Nada melhor do que alguns dias vagos para ter a liberdade de criar. Alguma nova música já nasceu?

Até mais!

Carmem disse...

Que coloquemos mais e mais afetos nos objetos constituídos de memória. Que mudemos, que nos façamos Outros ou que se façam outros em nós.

Percebo uma escrita outra em você.

Abraço!