terça-feira, 24 de junho de 2014

Conectar, representar, falar II

Esse esquema tripartite composto pela fala, pela representação e pela conexão é por demais rico e complexo e, como toda complexidade, levanta mais questionamentos que soluções.

O primeiro fio a ser desemaranhado é a confusão que vincula toda discussão sobre técnica aos seus acessórios tecnológicos, confusão que identifica fala tão-só com a operação ruidosa emitida pela boca de seu sujeito, faz equivaler representação com o significado abstrato de uma realidade concreta grafado numa superfície de inscrição qualquer através de signos convencionados, e entende conexão como o acesso de um armazenador-processador de dados aos dados de outro armazenador-processador. Fala não é (apenas) conversa, canto, fofoca, discurso; representação não é (apenas) escrita, pintura, brasões; e conexão não é (apenas) acesso à internet.

O aumento exponencial das performances dos instrumentos eletrônicos nas últimas décadas, aliado à também exponencial queda dos preços desses produtos, torna o acesso tecnológico um quase sinônimo de inclusão social; no entanto, e mais além, essa crescente naturalização do digital na cultura - assim como a fala e a escrita nos constituem enquanto sujeitos que falam e que leem de há muito - torna opacos os próprios processos sociais que constituem o digital, operando uma transformação de todo o campo problemático que constitui esse cenário em substâncias, instrumentos, práticas, instituições, estados de coisas. Esse processo de reificação do problema nos termos e respostas que o mesmo agencia também se deu e se dá, constantemente, na comunidade oral que a fala suporta e na cultura da representação condicionada pela escrita.

O "pólo tecnológico" e o "pólo social" compõem, juntos, um mesmo campo sociotécnico.

A técnica é, sempre, uma sociotécnica.

Confunde-se o virtual, enquanto um coletivo articulado de proposições, com o real, a sua interface.

Ora, entender a técnica e a tecnologia como simples instrumental é nos colocar numa perspectiva em que o sujeito do conhecimento já está pronto para os atos de escutar, aprender e enunciar a verdade. Equivaler a técnica a suas tecnologias é suspender a prática ascética como condição para o exercício do pensamento e do dizer-a-verdade. 

Para um autor como Pierre Lévy, usuário convicto do esquema tripartite, a abordagem tradicionalista da comunicação – na qual o comunicar teria, como função primeira, a transmissão de informações, o contexto intervindo, apenas, como um auxiliar na interpretação das mensagens dirigidas – deve ser substituída por uma teorização que considere o ato de comunicar como definidor, fundamentalmente, da situação que significa e valora a troca de mensagens; agir e comunicar são sinônimos, sim, mas apenas quando consideramos o contexto como o próprio alvo da comunicação, dos atos-de-comunicação. Dentro de escalas variáveis (pessoas, aparelhos, técnicas, organizações), os atores da comunicação e os elementos das mensagens que emitem (falas, objetos, planejamentos, dispositivos) criam e recriam universos de sentido, mundos de significação.

A estrutura da retórica, da gramática, do hipertexto enfim, não dão conta, tão-só, dos processos comunicativos, mas sobretudo dos processos sociotécnicos. A retórica, a gramática e o hipertexto como metáforas, ou melhor, como analogias, um análogon, para todas as esferas do real que tratem da produção, da distribuição e do consumo de bens e significações.

O segundo fio: pensar que fala, representação e conexão remetem a espaços alheios e paralelos ao espaço real.

São comuns as análises que tomam a internet como sinônima de sua interface digital, a internet como um ciberespaço, e o ciberespaço como um "espaço virtual" entendido como negativo do real; ou então a linguagem, seja da fala seja da escrita, como criadora de um simulacro que duplica a existência em "mundo em si mesmo" e "mundo como representado por nossas faculdades" (um representacionismo, um kantismo vulgar).

O engodo tem a sua razão-de-ser. O internauta, desejoso em aprender um pouco de música, pode facilmente “ter acesso” a muita informação com um e outro mouse click: história dos estilos, organização dos instrumentos numa orquestra moderna, procedimentos para a leitura de pautas, cifragem europeia, luthieria; uma simples busca no Google o apresenta a bibliotecas e compêndios sem fim. Ele pesquisa um manual de teoria musical, lê um artigo sobre o nascimento da noção de harmonia, assiste interpretações históricas no Youtube, faz download de discos diversos, interage com outras pessoas num fórum digital dedicado à música instrumental. Depois disto tudo, quando, numa roda de conversa, o perguntam onde aprendeu sobre, exemplo, as diferenças técnicas e históricas entre o tango e o flamenco, o barroco e o classicismo, o choro e o samba, ou onde ele, outro exemplo, aprendeu a interpretar certa música do cancioneiro popular numa versão mais elaborada, responde: "na internet, oras". E a resposta, embora correta, opera um falso problema através da noção de espaço (o onde da questão).

Pensar a internet como um espaço (ou um conjunto de espaços, de sites) no qual impera a livre produção de conhecimento e o compartilhamento de informações é assumir uma posição que não engendra novidade alguma se não se remodela, com este movimento conceitual, a própria ideia de espacialidade. Afinal, se o internauta aprende japonês com um amigo nipônico (por telefone e Skype) e o perguntam na mesma roda de conversa onde (e quando) o mesmo aprendeu o idioma, seria estranho se se respondesse "no telefone" ou "no Skype" (e ficaria ainda mais clara a impossibilidade de se precisar uma coordenada temporal para a atividade). O telefone e o Skype estruturam, isso sim, a ecologia cognitiva que condiciona o aprendizado do internauta (o análogon desta rede), que não é o aprendizado simples de um organismo, de um eu, mas a atualização dum coletivo em virtualidade, dum campo de imagens numa consciência. Idem para a internet; a noção de internet pensada como um lugar – ou, pior, como um objeto tecnológico – só é válida se se pensar o telefone, a televisão, o rádio e tantas outras tecnologias da informação como outros lugares (o que não faz muito sentido). Se, por insistência, mantém-se a internet como um espaço, é mister considerá-la como um espaço trans-local, um trans-lugar, um espaço-trans-espacial, espaço-entre-espaços, espaço ciborgue, ciber-espaço (aqui, não mais um "espaço virtual"). Logo, o internauta, o sujeito conectado, o ciborgue, é trans-egóico e se identifica com o coletivo articulado de tecnologias que o condiciona.

O mesmo para a fala e para a escrita. 

A fala articula e propicia modos de sociabilização literalmente impensáveis sem a mesma, fazendo o tempo operar numa circular infinita e jogando a memória para fora do corpo orgânico, regulada através de rituais, festas, cânticos, mitos, lendas, parábolas, histórias.

A escrita opera outra torção no tempo, transformando-o numa reta ascendente e progressiva a que comumente chamamos de História, colocando nossa memória e nossos dizeres em tábuas, pergaminhos, paredes, livros; com a impressão da linguagem numa superfície de inscrição solidificada, noções como Verdade ou Lei ou Estado se tornam possíveis (não apenas "mais prováveis"; se tornam de fato possibilidade pensável) e, numa mesma esteira, o nomadismo se estanca, a caça e a coleta cedem lugar à pecuária e à agricultura, e o sedentarismo humano pode se dar. 

Essa redução da técnica às tecnologias que a mesma modula também torna opaca a própria discussão acerca dos instrumentos tecnológicos, já que dentro de um mesmo "registro acessorial" podem estar articuladas realidades muito pouco afins umas às outras. A lalação do bebê, o discurso do político, a oração religiosa, o canto espiritual, o grito de guerra, são todos fala; a escrita rúnica, em sua estrutura e propósito, pouco tem de ver com a cuneiforme que pouco tem de ver com a hierática que pouco tem de ver com a alfabética grega (esta talvez tenha sido a primeira a "fazer o texto falar"); mesmo na esteira desta escrita representativa oriunda dos gregos e dos latinos, é mister separar a escrita do poeta da escrita do romancista da escrita do patrístico da escrita do escolástico da escrita do cientista, e dentro de cada uma dessas escritas, a da poesia, do romance, da espiritualidade, da didática, da ciência etc., temos a manifestação de estilos e mais estilos, e estilo é um modo específico de dobrar a escrita, torcer o seu projeto original, jogar com sua gramática intestina, produzir uma realidade não dada com os elementos textuais conhecidos e reconhecidos, estilizar a escrita é traí-la, mas traí-la como um espião, traí-la sem ser descoberto e, paradoxalmente, criar o novo dentro do conjunto velho e sob a aparência do velho, para dele não ser expulso e nulificado; mesmo criações não-escriturais - como as da pintura, do cinema, da música - também possuem estilos, possuem modos consolidados e modos por vir de forçar suas estruturas de expressão e recolocá-las, sempre e a todo momento.

Assim como as tecnologias digitais, tanto fala quanto escrita recolocam nossa relação com o espaço, o tempo e a memória. Habitamos "realidades virtuais", sim, mas isto desde que começamos a falar: o bebê em seu esforço gaguejante para habitar um mundo que ainda não é seu apenas reatualiza a cena e o esforço de Adão, o primeiro homem a receber o sopro da linguagem e sair do paraíso do puro real. O processo de virtualização - a aparente suspensão do espaço e do tempo ditos "reais" - que tanto creditamos à conexão digital já existe na fala.

O termo "tecnologias do virtual", termo comumente usado para se referir às "tecnologias do digital", está mal aplicado no plano de discussão que estamos colocando, já que o virtual não equivale a um estado específico de coisas, mas a uma "elevação à potência de uma unidade considerada", o seu "complexo problemático", o seu "nó de tendências", seja essa unidade um mobile da Apple ou um canto tribal, um PC ou uma ponta de lança feita de pedra polida, uma pintura modernista ou as pichações de Lascaux.

Indo mais a fundo nessa noção de virtual, vemos que a própria divisão entre oralidade, escrita e internet é uma divisão categorial, estanque, típica da cultura universalizante, generalista e burocrática da representação. Quem a constrói e esquematiza é um sujeito-que-escreve, e só no cenário sociotécnico construído pela escrita essas três instâncias se dão como realidades estanques e independentes; afinal, quem escreve também fala, e quem se conecta o faz lendo e escrevendo; no entanto, é característico da cultura escrita deslegitimar os oralistas e seus modos de sociabilização (chamamo-os de primitivos, selvagens, analfabetos), enquanto a internet recupera um modo de funcionar aberto à instabilidade e à deriva que o projeto universalizante da escrita deixou de lado. 

Fala, representação e conexão só são três coisas distintas, só são três coisas, três objetos ou três estruturas para o sujeito-que-escreve.

Desafiado o problema - isto é, desvincular a lógica da técnica de seu correlato tecnológico e abandonadas as análises sobre a técnica de caráter meramente instrumental ou espacial - está dado um primeiro passo para uma discussão realmente seminal acerca da técnica e da tecnologia. Porém, esse movimento conceitual torna o esquema tripartite de P. Lévy uma abstração universalista que não tem lugar dentro do próprio plano de discussão que o autor construiu.

Falar, representar e conectar apareceram, durante todo o texto, como três lógicas técnicas, três modos de virtualização.

O próprio autor assume que esses blocos estanques não nos permitem distinguir suas especificidades. A disjunção "com ou sem escrita", por exemplo, "mascara o uso de signos pictóricos, já bastante codificados em algumas sociedades paleolíticas (e que portanto são classificadas entre as culturas orais), omite a diferença entre escritas silábicas e alfabéticas, oculta a diversidade dos usos sociais dos textos etc." Não são categorias ontológicas, mas "disjunções úteis", artifícios para chamar a atenção do leitor aos elementos técnicos e às restrições materiais que condicionam o pensamento e as instituições sociais. São espacialidades.

Essa divisão, assim sendo, só faz sentido metodologicamente, é uma divisão com fins meramente didáticos.

Ilusões e necessidades da escrita.

Wittgenstein é quem ensina: deve-se jogar a escada após ter subido por ela.

Abandonemos a noção de espaço e, em seu lugar, coloquemos a noção de espacialidade como centro da discussão, entendida como o estado de coisas atual construído pelas nossas injunções metodológicas. Fala, escrita e internet são três lógicas, mas não três estruturas ontológicas; poderíamos, ao invés, separar o problema em sociedades de prosa e sociedades de poesia e, desta feita, encontrar os modos de racionalidade, de governo e de espiritualidade próprios que compõem e são compostos por cada uma dessas categorias sociotécnicas, sempre artificiais. Delas, recomporíamos um determinado campo virtual que condiciona, sociotecnicamente, esse estado de coisas (mais importante que falar de uma suposta "sociedade da prosa" seria falar de como a prosa, em seu funcionamento, modula políticas, racionalidades e sujeitos específicos; a "sociedade da prosa" pode ser jogada fora, depois disso). A espacialidade, de todo modo, é uma ficção explanatória, mas o modo de tecê-las não é arbitrário.

É aí entra a noção de estilo, em substituição à ideia de um estudo técnico instrumental.

Estilo pode ser entendido como um modo, consolidado ou por vir, de evidenciar, dobrar, levar ao limite e recolocar as formas instituídas da expressão (falada, escrita, pictórica, musical, cinematográfica etc.), ir além do estado de coisas atual e abrir-se para o virtual; o ato de virtualizar uma entidade, diria Lévy, "consiste em descobrir uma questão geral à qual ela se relaciona, em fazer mutar a entidade em direção a essa interrogação e em redefinir a atualidade de partida como resposta a uma questão particular".

O impressionismo desiste de pincelar o real e afirmar uma lógica representacionista e passa a pintar a própria percepção, a própria impressão do esteta; ao invés do objeto que o olho olha, o impressionista pinta e evidencia o próprio olho, criando não só uma nova espacialidade ("O Impressionismo" como um movimento estético francês do começo do século passado), mas remodelando, com esse ato criador, toda a arte que lhe precedeu. Caravaggio, da Vinci, Rembrandt, Michelangelo, de La Tour e outros passam a ser lidos não mais nos termos que anteriormente colocaram, os de uma pintura que representa as coisas, mas, ao serem remodeladas pelo movimento impressionista, passam a ser estudadas e mesmo diretamente percebidas, assim como um Monet, um Renoir ou um Degas, como pinturas que pintam olhos, olhares, impressões. Após o impressionismo, não olhamos mais para um Velázquez e nos perguntamos, apenas, sobre as técnicas que o pintor usou para bem fotografar a realidade; mas, também: que olho é esse quer representar a realidade? Que olho é esse que representa a realidade deste, e não daquele, jeito?

O estilo é o movimento da espacialidade.

Um não existe sem o outro.

A própria separação estilo-espacialidade é ficcional.

Temos, aí, mais uma ilusão necessária da escrita.

[continua].

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