sábado, 10 de outubro de 2009

O Pensamento e o Movente - Primeira Parte

Diz-nos Zenão de Eléia. Caso um corpo queira se deslocar de A até B deve, antes disso, chegar até metade deste mesmo trajeto. Mas, para chegar até esta metade, deve - igualmente - percorrer metade desta metade. E, antes de se deslocar este quarto da reta original, tem de andar metade-da-metade-da-metade. E assim até o infinito! Chegar ao final de uma reta, então, é percorrer uma sequência infinita de pontos. Logo, a mudança mostra-se contraditória e impossível, visto que - logicamente - não se pode chegar ao fim do infinito. Numa corrida entre o célere Aquiles e uma tartaruga, exemplificando, na qual Aquiles dá alguns passos de vantagem ao quelônio, o animal sempre venceria pois, para alcançar o ponto no qual se encontra o cascudo réptil, o herói deveria atingir um ponto anterior ao desejado e, antes deste ponto, um outro ponto e assim em diante.
Os sistemas filosóficos, para Bergson, de tão abstratos e imprecisos que são, não se ajustam à nossa realidade. Pensemos, novamente, no móvel que quer sair de A e chegar em B. Lembrem-se da física colegial. A duração do deslocamento se mede pela trajetória do movente, num tempo dado e linear. Este tempo, entretanto, não se relaciona à duração mesma, mas a momentos, a paradas virtuais do tempo. Quando construímos matemáticas e dizemos que um evento X se dará ao final dum tempo t, dizemos - com isto - que teremos contado até o evento um número t de simultaneidades duma mesma categoria.
A consciência, neste esquema, não passa pela "fadiga da espera". Um caso simples: antes que esta quinta-feira última chegasse ao fim, eu comecei a planejar o dia de sexta: iria à universidade, pela manhã, participar dum coletivo de estudos ao qual faço parte; logo após, iria almoçar num restaurante nas proximidades do local; ao término da refeição, eu iria ao mercado municipal produzir dados para uma pesquisa etnográfica; e, depois de uma ou duas horas no mercado, eu voltaria à universidade para assistir um debate entre dois professores. Meu dia estava totalmente delineado e, de fato, aconteceram todas estas coisas que pré-vi e na mesmíssima ordem que as desenhei. No entanto, eu tratei o tempo como se ele já tivesse passado. Defini seus contornos exteriores, mas não posso definir suas matizes interiores. Extrai do mundo o suscetível de repetição e cálculo, ou seja, aquilo que não dura. Essa duração, escamoteada pela ciência, difícil de ser colocada em linguagem, é a nossa vida mesma!
Zenão, a metafísica, a filosofia, a ciência, a linguagem. Todos estudam o tempo e o espaço como coisas de mesma natureza. Troca-se "justaposição" por "sucessão" e está tudo resolvido. Chamamos o tempo, mas é o espaço que sempre responde. Somos tentados a perguntar, então. Se a inteligência descarta a temporalidade real não é porque o nosso entendimento sobre as coisas assim o exige? A inteligência retém posições. Um ponto. Outro ponto. Um terceiro ponto. O que se passa no "entre", no interstício, é ignorado.
A inteligência não liga muito para a mudança. E, caso reclamemos da falta de mobilidade da linguagem espacial da inteligência, esta começa a figurar outros pontos, estrangulando-os em intervalos cada vez menores rumo ao infinitesimal. Coisa natural, visto que nossa ação intelectiva só se dá sobre estes pontos. O que a inteligência tem por movimento é a simples sucessão simultânea de duas paradas virtuais no tempo, vendo o movimento como uma sucessão de posições e o tempo como uma sucessão de instantes. Tal qual um cinematógrafo é o nosso entendimento, um sucedâneo que recompõe artificialmente a duração e a mudança. Mas a duração e a mudança mesmas são uma outra coisa. Não o suceder, mas o fluir. O real não são os estados ao longo da mudança, mas a continuidade da transição. O real é a mudança, progressiva, ininterrupta, indivisível, substancial, que adere em si mesma numa duração que se alonga sem fim.
Quando Zenão assinala as "contradições do movimento e da mudança" ele fala dum movimento e duma mudança como nossa inteligência os representam. Está inaugurada, aí, a metafísica, mas uma metafísica que é simples encadeamento artificial de proposições, um construto hipotético que ultrapassa a experiência móvel e plena. Os "grandes problemas" que a metafísica colocou, para Bergson, não passam de "problemas mal colocados", pois não correspondem ao movimento, à mudança ou ao tempo, mas a pacotes linguístico-conceituais que tomamos por realidade. Torna-se necessária, aqui, uma metafísica que respeite a experiência, a duração. A metafísica de Zenão (e de todos os filósofos e cientistas após ele) nega a coisa mesma que define o tempo: o fluxo da duração. Criação contínua, novidade, imprevisibilidade.
Bergson coloca num mesmo plano tanto o determinista quanto o crente no livre-arbítrio. Este, para Bergson, reduz a sua liberdade à simples escolha de duas os mais opções que se lhe afiguram, como "possibilidades" ansiosas para se "realizar". Admitem, assim, que a estrada está igualmente dada. Não fazem idéia de que a ação nova, inteiramente não pré-existente a si, nem mesmo como possibilidade pura, é que é o ato livre.
A vida interior é como um copo de água açucarada, que faz necessária a espera da dissolução do açúcar na água. Ou como uma melodia, que não pode ter sua duração diminuída sem ser alterada. Na evolução da natureza, da vida, da consciência há constante criatividade. Criação perpétua não de realidades, mas de possibilidades. Quando o músico compõe a sua canção, podemos dizer que a sua obra era possível antes de ser real, se com isto entendemos que não existiam obstáculos a uma tal realização. Mas Bergson cavouca um pouco mais e afirma: no momento em que o músico possui uma idéia da canção que fará, a canção já está pronta!
Nossa lógica de pensamento é retrospectiva. Tende sempre a lançar para o passado, como possibilidade, as realidades atuais. Será por um feliz acaso dizermos, justamente, o que interessará ao historiador do futuro sobre o presente de outrora (seu passado, nosso hoje). Quando o historiador do futuro considerar o nosso presente - e quando nós consideramos nosso passado - procuramos, aí, a explicação de nossos presentes, daquilo que o presente contém de novidade e de diferença em relação a este passado. Desta novidade futura, visto que é criação, não podemos ter idéia alguma. As possibilidades passadas que enxergamos de uma coisa qualquer são miragens da nossa realidade.
Ao encerrar esta primeira parte, Bergson deixa claro que não se trata de renunciar à lógica representativa da inteligência - de natureza espacial e de utilidade social - mas fala da necessidade em torná-la flexível e adaptável à duração, a uma evolução que não é desenvolvimento, mas criação. Kant coloca a "coisa em si" como aquilo que escapa à consciência, visto que, para atingi-la, necessitaríamos duma capacidade intuitiva que, segundo o mesmo, não possuímos. Bergson refuta, dizendo que a inteligência adquiriu hábitos da prática que formam, reformam, deformam a realidade. Organizam-na em arranjos que vêm de nós. Se nós os construímos, podemos deles nos livrar. E, assim, entramos em contato direto com o real. O mal da filosofia, como foi colocado inicialmente, é a sua imprecisão. É a sua lida com objetos de pensamento que não são talhados de acordo com as coisas mesmas. A proposta: afastar os conceitos já prontos, nos proporcionando uma visão direta do real e a construir conceitos novos, levando em consideração as articulações do real e forjados na exata medida de nosso objeto, estudando-os neles mesmos e não na abstração generalizada do espaço...
BERGSON, Henri; O pensamento e o movente - primeira parte; In Bergson: Coleção os Pensadores; Trad. Franklin Leopoldo e Silva; pp.147-166.

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