domingo, 25 de outubro de 2009

Testamento de Heiligenstadt


A surdez começou a visitá-lo quando tinha seus trinta anos. Trágico, para um pianista. O melhor dentre todos os virtuoses. Com tamanha concorrência, tentou esconder a sua condição. Não obteve muito sucesso. Então, desesperou-se! Pensando em suicídio, escreve uma carta aos irmãos. Deixo que fale por si mesma...

“Aos meus irmãos Karl e Johann
Vós, que me considerais ou me fazeis passar por melancólico, obstinado e misantropo, que injustos sois para comigo! Não conheceis as secretas razões do que se passa. O meu coração e o meu espírito eram inclinados, desde criança, para o doce sentimento da bondade. Sempre estive disposto para grandes trabalhos. Mas imaginai que, de há seis anos para cá, me vejo numa situação desesperada e esta situação foi-se agravando por culpa de médicos incompetentes, enquanto me iludiam com a esperança de uma melhoria para, finalmente, me ver apanhado na perspectiva de um mal duradouro, cuja cura demorará anos e talvez seja impossível. Nascido com um temperamento ardente e activo, sensível aos atractivos da sociedade, depressa me vi obrigado a isolar-me e a deixar passar a minha vida na solidão. Se bem que tivesse querido na altura superar tudo isto, ah!, que impossibilitado me via ao aperceber-me do meu problema no ouvido! Não era possível dizer às pessoas: “Falai mais alto, gritai, pois estou surdo!” Podia revelar a debilidade de um sentido que devia possuir com mais perfeição que qualquer outro, um sentido de que estive dotado num grau tal que certamente poucas pessoas do meu ofício jamais possuíram? Não, não podia. Perdoai-me portanto se me afastei, ainda que quisesse tanto estar convosco. A minha desgraça é duplamente penosa, pois devido a ela vejo-me obrigado a ter de passar por impopular; para mim acabaram-se para sempre os prazeres da sociedade, as conversas interessantes e as relações com as pessoas. Absolutamente sozinho, ou quase. Só na medida em que for absolutamente necessário poderei voltar a ter contacto com a sociedade; devo viver como um maldito. Se me aproximo das pessoas, sinto-me automaticamente atormentado por uma terrível angústia: a de me sujeitar a que adivinhem o meu estado. Assim passei os últimos meses no campo, aconselhado pelo meu competente médico, para cuidar dos meus ouvidos o melhor possível. Ele quase previu a minha situação, se bem que às vezes, movido pelo desejo de companhia, me tenha afastado do caminho que me está destinado. Mas, que humilhação quando alguém ao meu lado ouvia o som de uma flauta ao longe e eu não ouvia nada, ou quando alguém ouvia um pastor cantar e eu não conseguia escutá-lo! Tais circunstâncias enchiam-me de desespero, e faltou pouco para que pusesse fim a minha vida. A arte e só ela me salvou! Parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter transmitido tudo o que sentia nascer em mim, e assim, prolonguei esta vida miserável, com um corpo tão frágil que qualquer mudança brusca basta para acabar com a sua saúde. Paciência! É tudo o que devo fazer agora e assim o faço. Espero manter-me na determinação de esperar até que a cruel morte faça acabar com tanta amargura. Talvez fosse o melhor, ou talvez não, mas sou corajoso. Aos vinte e oito anos, ver-me obrigado a tornar-me filosofo não é agradável e, para um artista, é mais duro do que para outro homem. Meu Deus! Tu que do alto vês o mais fundo do meu ser, sabes que dentro de mim se movem desejos de fazer o bem e de amar o próximo. Vós, homens, se lerdes isto algum dia, pensai que tereis sido injustos comigo e que quem é infeliz se consola procurando alguém semelhante a ele. Apesar de todos os obstáculos da natureza, fiz, no entanto, todo o possível para ser admitido na categoria dos artistas e dos homens de valor. Peço-vos, meus irmãos, assim que eu fechar os olhos, se o professor Schimith ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever a minha moléstia e juntai a isto que aqui escrevo para que o mundo, depois da minha morte, se reconcilie comigo. Ao mesmo tempo, declaro-vos aqui herdeiros da minha pequena fortuna (se é que se pode chamar assim). Reparti-a com honestidade; respeitai-vos e ajudai-vos mutuamente. O que fizestes contra mim, há tempo que vos perdoei, bem o sabeis. A ti, irmão Karl, agradeço-te especialmente o afecto de que me deste provas nos últimos tempos. O meu desejo é que a vossa vida seja melhor e menos triste que a minha; recomendai aos vossos filhos a Virtude, que é a única coisa que nos pode fazer felizes e não o dinheiro, sei-o por experiência; é ela que me conforta na minha aflição; devo-lhe, assim como à arte, o não me ter suicidado. Adeus e conservai-me vossa amizade. Minha gratidão a todos os meus amigos. Mas assim aconteceu. Corro ao encontro da morte com alegria. Se esta, no entanto, chegasse antes de não ter tido tempo de desenvolver todas as minhas faculdades artísticas, fá-lo-ia demasiado depressa. Apesar da infelicidade do meu destino, queria que ainda demorasse. Mas mesmo assim havia de me conformar: a morte não me livraria talvez de um interminável sofrimento? Que venha quando quiser, irei ao seu encontro com alegria. Adeus, e não me esqueçais após a minha morte. Bem o mereço, pois pensei em vós muitas vezes e desejei que fosseis felizes: sede-o."
Heiligenstadt, 6 de Outubro de 1802, Ludwig van Beethoven.

Um comentário:

Carmem disse...

Dizem que produzimos coisas lindas tomados pelo desespero. Não sei se isso é de todo verdade, mas as belas palavras do Beethoven ainda ressoam aqui...