domingo, 22 de novembro de 2009

Eu e o outro...

Tento, sempre que posso, falar e escrever como pessoa primeira, como “eu”, como sujeito implicado, só utilizando a insossa linguagem impessoal dos eruditos como possível recurso retórico. E, já que o “eu” se pronunciou, invoco o discurso cartesiano para fundar nossa discussão. Mas deixo claro que não pretendo atribuir a Descartes a criação do sujeito privado, da individualidade moderna ou do liberalismo. O francês apenas se nos afigura como um representante histórico, um resultante duma rede de tendências, como a alta da razão no Renascimento, o surgimento da imprensa e da leitura privada e os movimentos reformistas e contra-reformistas a valorizarem a interioridade individual.

No Discurso do Método, lemos o registro dum homem renascentista que, submetido a uma profusão de idéias e ideais a brotarem, prefere desacreditar a todas. Cético ao extremo, põe entre parênteses até mesmo a dúvida enquanto método – dúvida sobre a dúvida – dadas a falibilidade dos órgãos dos sentidos, a mutabilidade dos sentimentos ou, até mesmo, a suposta existência duma deidade maligna a nos enganar em todos os nossos juízos. Quando o pirronismo parece colocar Descartes numa seara insuperável, este encontra um fundamento para o conhecimento. Enquanto duvidava, existia ao menos o ato de duvidar e, para esta ação, supôs como necessária a existência dum sujeito pensante. Cogito, ergo sum!

Mudarei um pouco a trajetória, visando uma melhor colocação de nosso problema. Se pensarmos o comércio em termos de troca comunitária, podemos facilmente encontrar em todo agregado social alguma atividade comercial. É por demais comum o excedente de uma família ou clã ser trocado, eventualmente, pelo produzido por outros grupos, seja no medievo, numa aldeia indígena ou em cidades no interior de nosso Brasil.

Esta situação se altera, entretanto, quando a produção não mais intenciona o abastecimento dos feudos, voltando-se não à subsistência mas ao comércio mesmo. Já teríamos, aqui, um fundamento sólido o suficiente para sustentar o cogito cartesiano, visto que cada um procura identificar sua “especialidade” e nela aprofundar-se. Identifica-se com ela! Mas não paremos por aqui. O próprio mercado, enquanto lugar de compra e venda, cria a barganha, na qual o lucro dum torna-se o prejuízo doutro, e cada mercador deve defender seu próprio interesse. Quando todas as relações entre os homens se processam por meio da compra e da venda dum bem ou signo elaborado por particulares, quando – melhor dizendo! – o modelo do mercado é ampliado às demais esferas do relacionamento humano e o modelo do mercador torna-se experiência universal, naturaliza-se uma lógica egotista e individual na qual os interesses de cada um são mais importantes que os interesses do todo!

O homem – no agora! – se fez indivíduo. Livre para defender seu interesse. A sanha do mercador contaminou a relação entre os saberes do mundo, a relação entre este mundo e o homem e o modo como este homem cria laços com outros homens. O Ser humano torna-se sujeito puro e, ao crer-se como unidade, pouco liga ou se liga aos movimentos do socius. Os poucos homens implicados são tomados por arrogantes – metidos e intrometidos – isto quando não recebem a epítome de desajustados e subversivos, de acordo com um vocabulário psicológico tecnicista, experimental e positivo, reedição da verdade neutra e objetiva das revelações. Homens que se constroem fora da pólis, do público e do mundo, entorpecidos por uma interioridade subjetiva e privada que, mesmo sendo a maior riqueza do homem moderno, pouco dá de si para o bem do outro...

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