sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Teses sobre o movimento - Primeiro comentário de Bergson

I
O prólogo deixa claro, logo de início. O Imagem-movimento é muito mais um livro de lógica que um livro sobre cinema, uma taxionomia imagética e signalética que referencia o filósofo Pierce. Mas este primeiro volume da obra trata dos elementos de apenas um desses conjuntos, ficando a imagem-tempo como objeto duma segunda parte do trabalho. Outrossim, Deleuze faz parceria com seu conterrâneo Bergson que, apesar de suas críticas ao cinema, forja o conceito que dá nome ao livro, conceito este usado pelo Deleuze para tratar da própria imagem cinematográfica, o que coloca o autor de cinema no plano do artista - o pintor, o arquiteto, o músico - mas também do pensador. O autor de cinema é um pensador que pensa não com conceitos, mas com imagens: imagens-tempo e imagens-movimento. Mas tornam-se compreensíveis os incontáveis filmes vazios de conteúdo e sentido com os quais nos esbarramos, se considerarmos economias e indústrias a impedir o autor-pensador de realizar seu trabalho. Adentremos no capítulo um.
O movimento não é o espaço percorrido, mas o próprio ato de percorrer. Se o espaço é passado, o movimento é presente. Se o espaço é divisível - infinitesimalmente! - o movimento não se divide sem que se torne, ele mesmo, espaço. Das três teses de Bergson sobre o movimento, esta é a mais referenciada e, embora ofusque as demais, não passa de intróito a elas. Um outro modo de se enunciar esta tese seria o dito de que não se pode reconstituir o movimento através de posições espaciais ou instantes temporais, ambos recortes imóveis do real. Se temos dois cortes a se sucederem, sejam duas posições no espaço sejam dois instantes no tempo, o movimento se fará sempre entre os dois. E por mais que dividamos, subdividamos, espartilhemos o espaço-tempo perderemos o movimento, pois este nunca se dá numa coordenada abstrata, mas numa duração concreta. Bergson, no seu A Evolução Criadora, aponta para a chamada ilusão cinematográfica.
O cinema, para Bergson, nos oferece um movimento falso. Sucedâneo de cortes imóveis. O curioso, para o Deleuze, é o fato de Bergson dar um nome tão moderno - "cinematográfico" - a uma ilusão tão antiga quanto à consciência. Diria Bergson que o cinema, ao reconstituir o movimento, apenas reproduz o modo de funcionamento da nossa percepção natural, pois sempre que intencionamos pensar, exprimir ou somente perceber o movimento, fazemos cinema. Os paradoxos do Zenão como produção cinematográfica! O cinema, para o Bergson, não passa de reprodução duma ilusão constante e universal da consciência. Será mesmo?
Vinte e quatro imagens por segundo. Ao corte imóvel do cinema, chamamos fotograma. Mas o que o cinema nos revela não é o fotograma, mas uma certa imagem-média a qual acrescentaria movimento. Não um movimento abstrato resultante da sucessão de cortes imóveis, mas um corte móvel enquanto dado imediato da consciência. Uma imagem-movimento! A noção de corte móvel/imagem-movimento como um para-além da percepção natural, foi trabalhada pelo Bergson no seu Matéria e Memória, onze anos antes da publicação do Evolução Criadora. Que houve, então, a levar o Bergson a esquecer de seu genial conceito e fazê-lo condenar - ainda que suscintamente - a produção cinematográfica, anos depois?
A novidade sempre surge num campo que ainda não a comporta - elemento que transcende o conjunto - devendo evidenciar de si as semelhanças com os demais elementos deste conjunto para dele não ser expulsa. O bergsonismo, ao invés de buscar o eterno, coloca o problema da produção do novo. Bergson fala que o caráter de novidade imprevisível, típico dos viventes, não aparecia nos organismos primordiais, visto que a vida, de início, era obrigada a imitar a matéria. Deleuze, do mesmo modo, toma partido do cinema. Diz que, na sua aurora, o cinema era obrigado a imitar a percepção natural. A câmera fixa, o espaço imóvel, o tempo abstrato. A emancipação do cinema da percepção natural se dá pela montagem, câmera móvel. A máquina de filmagem não mais se confunde com a máquina de projeção. O plano espacial torna-se temporal. O cinema deixa de representar a percepção natural e passa a corresponder à imagem-movimento bergsoniana.
Recapitulação. Uma crítica às tentativas de reconstituição do movimento através de cortes imóveis e temporalidades abstratas. Uma crítica do cinema como reprodução da percepção ilusória que temos do devir. E a apresentação dos cortes móveis/planos temporais/imagem-movimento, que tão bem definem, para o Deleuze, o cinema. Passemos a nossa segunda tese.
II
O erro, para Bergson, está em se querer reconstituir o movimento através de cortes imóveis, instantes, posições ou que seja. Isto nós já expomos e compreendemos. Mas, ainda no Evolução Criadora, Bergson distingue dois modos de se cair na ilusão, a saber, a maneira antiga e a maneira moderna. Na antiguidade, o movimento era concebido como a passagem duma forma imóvel e eterna para uma outra. Pontos privilegiados. Já a modernidade não lida com instantes privilegiados, mas com o instante qualquer. Não se trata mais duma síntese inteligível das poses formais transcendentes, mas duma análise sensível dos cortes materiais imanentes. Deleuze nos apresenta seus exemplos: a astronomia kepleriana, a lei dos corpos galileana, a geometria cartesiana e o cálculo newtoniano-leibniziano. O comum entre todos é a reconstituição do movimento pela sucessão mecânica, em oposição à antiga dialética transcendente das poses. "A ciência moderna" - como lindamente dispôs o Bergson - "deve se definir sobretudo pela sua aspiração de considerar o tempo uma variável independente."
O cinema, para Bergson, é fruto desta mesma árvore moderna. Deleuze entra em cena, mais uma vez, e coloca o cinema - e o desenho animado - como um sistema que reconstitui o movimento através duma sucessão de instantes quaisquer - momentos equidistantes - que cria a impressão de movimento. O fotograma não é uma foto acabada, mas uma imagem que está, a todo momento, se fazendo e se desfazendo. Eisenstein já propunha o "patético", levando uma cena ao seu ápice e a fazendo colidir com uma outra. Paroxismo. Diz Deleuze que o instante cinematográfico não equivale a poses transcendentes ansiosas por realização, mas a pontos singulares pertencentes ao movimento mesmo. Dialética moderna, essa, do Eisenstein. Nem arte nem ciência, nem antiguidade nem modernidade.
Seja através de poses transcendentes ou de cortes imanentes, torna-se impossível reconstituir o movimento porque, em ambos, atribuímos uma totalidade, enquanto no movimento real o todo não é dado. Ao lidar com o movimento invocando momentos deve-se considerar a produção de novidade. Assim como Bergson recoloca a filosofia - legando à ciência uma nova metafísica - Deleuze se utiliza da segunda tese de Bergson para colocar o cinema não como um reprodutor de ilusões, mas como modelo duma nova realidade artística.
III
Por fim, a terceira tese: assim como o instante é um corte imóvel do movimento, o movimento é um corte móvel da duração, duma totalidade. Que seja, o movimento é a mudança mesma nessa duração ou totalidade. O célebre exemplo bergsoniano do copo de água com açucar, contido no Evolução Criadora, pode nos elucidar. Antes de tomar a solução, devo esperar que o açucar se dissolva por completo. Sentença simples mas não simplória. Há uma passagem qualitativa da água-onde-há-açucar para a água-com-açucar, movimento que exprime uma mudança no todo. Se agitamos a água com uma colher parecemos tão somente acelerar o movimento mas, neste gesto, modificamos a totalidade incluíndo, nela, a colher, sendo este novo movimento acelerado uma expressão da mudança no todo. Se no plano da ilusão lidamos com cortes imóveis e a impressão de movimento decorrente destes, temos - no plano do real - o movimento como corte móvel a exprimir uma mudança qualitativa no todo. Ao esperar o copo de água com açucar parar de reagir, está expressa aí a minha realidade espiritual, duração concreta.
O erro da ciência moderna - e dos saberes antigos - é buscar o todo no plano das eternidades. Muitos são os que afirmaram a impossibilidade de se conhecer o todo, o que se desenvolve na sentença de que o todo é uma noção sem-sentido. Mas para Bergson, o todo é impassível de conhecimento não por istos e aquilos, mas por mudar, inovar e durar sem cessar. Se eu, um vivente, sou uma totalidade tal qual o universo, não é à maneira dum microcosmo fechado como um universo dado e acabado, mas sou aberto ao mundo e o mundo ele mesmo é o Aberto!
O todo é relação e a relação não é uma propriedade dos objetos, mas lhe é sempre exterior. O todo, ou os todos, não são como conjuntos. Um conjunto é fechado, definido e artificial. É sempre um conjunto de partes. O copo de água, usado como exemplo, é um conjunto: a água, o copo, a colher do Deleuze. Isto não é o todo, mas um conjunto. O todo, criação incessante, se dá como devir espiritual. O copo, a água e a colher são abstrações do todo, recortadas pelos meus sentidos e desvelando-se em forma de consciência. Este recorte artificial, transformação da totalidade aberta num sistema fechado não deve ser encarado como simples ilusão. As fórmulas da primeira tese ganham, aqui, novo formato. As partes de um conjunto fechado são cortes imóveis, sendo os estados sucessivos calculados num tempo abstrato, enquanto a abertura da totalidade corresponde ao movimento real duma duração concreta, sendo os movimentos equivalentes aos cortes móveis que atravessam o sistema fechado.
O movimento é duplo. Passa por entre as partes e, ao mesmo tempo, exprime o todo. Divide a duração em múltiplos objetos e conjuntos e os reúne de novo na duração. Cai a ficha sobre a profundeza do Matéria e Memória: não há, apenas, a imagem instantânea, o corte imóvel, mas imagem-movimento, corte móvel da duração, numa relação de mudança para além do movimento mesmo...
DELEUZE, Gilles; Teses sobre o movimento - Primeiro comentário de Bergson; In: Cinema 1 - a imagem-movimento; Trad. Stella Senra; Editora Brasiliense; 1983 [original]; pp. 9-21.

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