sábado, 30 de março de 2013

Escrita Nova

Escrever não é representar uma realidade (um idealismo insosso) nem, tampouco, apontar um estado de coisas (um realismo ingênuo), mas sim montar uma armadilha para o leitor, é planejar acidentes (e não essências), é montar um alçapão de enunciados, ainda que ninguém dispare o mecanismo subcutâneo da palavra estruturada. Escrever é um ofício semelhante ao do marujo que não leva o tesouro consigo – não consegue, é grandioso demais – mas rabisca e marca xis num papelão velho a habitar garrafas; tudo isso para que seus convivas refaçam sua caminhada trôpega e povoem a ilha deserta na qual habita solitário. Contemporaneamente, ler não é perceber o ambiente (input), processar a informação (loading...) e emitir a resposta (output); o homem só "funciona" em fenômeno e aparência; não se trata dum organismo, dum conjunto de órgãos, a sofrer influências do fora, do alheio, do outro, nem se trata, igualmente, do interacionismo de um sujeito pronominal com o predicativo mundo dos objetos, ambos já postos de antemão, mas duma terra que suporta (dá suporte) e condiciona (cria condições) a ambos. Na escrita, o Eu do autor se desdobra em inúmeros Tus, Nós, Eles, e mesmo, e principalmente, em orações sem sujeito algum. Resta a ação, a retórica a-gramatical, a anti-escolástica, o verbo puro. 

O ato de escrever pode ser pensado como uma escultura da fala. Cansado de repetir a mesma ladainha para outrem, o falante inventa a escrita e eterniza seu discurso numa superfície de impressão. Sobrevivência, adaptação e necessidade. “O que quis dizer o autor?”, perguntamos. Uma escrita que simula a fala, porém, perde a sua própria especificidade, a sua potência criativa. Quando a invenção se dá num sistema fechado, num contexto determinado, esse elemento transviante deve manter algum tipo de semelhança com o conjunto originário para dele não ser expulso. Desta forma, em suas respectivas auroras, a escrita surge como cópia da fala, a fotografia como instantâneo do momento, o cinema como imitação da percepção natural, e por aí se vai. Tais invenções, no entanto, acabam ganhando autonomia em relação ao seu chão originário, e se tornam, potencialmente, falsas. A escrita monta jogos de palavra que a fala mesma não suporta; a fotografia pode objetivar instantes que não possuem correlato no real; o cinema opera, através da câmera móvel e dos procedimentos de montagem, imagens irreais. Com uma ferramenta que se tornou “inútil”, tornou-se arte e despregou-se do mundo, calcam-se os caminhos para a criação dum outro real, duma outra terra, doutros suportes e doutras condições, atualmente “desnecessárias”, “desajustadas” ou, mesmo, “perigosas”. 

A linguagem, pensada como o dedo-significante que aponta para a lua-dos-significados, não dá conta do solo natal (que não é o solo pátrio, a bandeira já fincada) dos discursos, solo em constante redefinição de fronteiras, solo plural, inominável, como diria Samuel Beckett. Devemos, então, calar as nossas escritas, quer elas ganhem ou não o papel? Decerto que não. Devemos adotar uma estratégia linguística oposta. Escrever, falar, gritar, gaguejar, ainda que sobre a impossibilidade de se falar “das coisas”, “sobre o mundo” e “para outros homens”. Beckett já relacionava, em seus roteiros, a linguagem com um de-fora da linguagem, fazendo brotar na platéia o silêncio, que não é o silêncio do conjunto vazio, mas antes a produção do invisível e do inaudível, num estilo produtor de visões e audições puras – para lá com o esquema sensório-motor! – que esburacam as palavras, os signos, as intenções, as respostas. Outro dramaturgo, Carmelo Bene, insistia em conceber as peças de teatro como ensaios críticos. O que se critica? Em seu Romeu e Julieta, é Shakespeare o criticado? Não necessariamente. Bene critica por amputações: amputa Romeu da peça original e deixa a história correr adiante, deixa o sistema rodar e transladar sem o seu sol, produzindo corpos mutilados a tal ponto que não sabemos mais se são já o organismo sem alguns de seus membros ou o membro ainda pulsante desprendido de sua unidade biológica. Pedaços costurados noutros pedaços, gerando vida e movimento. 

Filosofia Frankenstein, pensamento ciborgue, escrita revolucionária, uma escrita em pedaços, uma colagem de fragmentos, uma montagem por falsos raccords, uma bomba de estilhaços, uma composição, várias trilhas, temas, tonalidades, trinados, se confundindo, se amarrando, dando nós, fazendo contraponto uns com os outros tal qual cravo barroco. O encadeamento lógico cede passagem ao pathos, a demonstração conceitual dá seu lugar à visão direta e o modelo da verdade totalitária desmorona frente às potências do falso como devir, expressão que tomo emprestada (mas sem devolver; roubo consentido) de Gilles Deleuze. Cada um dos pedaços que compõem a escrita - letras, palavras, frases, orações, parágrafos, livros e obras inteiras - tem uma alma sua, toda sua, está repleto de divindades (pilho Heráclito, desta vez) mas, embora existam em independência e possam ser lidos em separado, é em conjunto que podem ser melhor apreciados, como os diversos movimentos duma sonatina ou, ainda mais preciso, como o material para que novas lógicas e novos sentidos possam se dar em relação aos mesmos pedaços (o bibliotecário de Babel, de Borges). Cada pedaço pode ser analisado, dissecado, anatomizado dentro de si mesmo, mas é apenas em relação e acúmulo com os demais - sejam os demais pedaços dispostos pelo escritor numa mesma superfície de inscrição, sejam por outros pedaços já lançados ao mundo - que revela sua grandeza ou, antes, a sua miudeza, o seu sabor fugidio, sua obviedade. Potencializar o óbvio é exatamente o trabalho realizado por um Monet ou um Renoir, é o momento inicial de uma arte que desiste de pintar a realidade e passa a criar impressões puras. O mesmo se dá com a filosofia bergsoniana, pensamento que exalta a inteligência representativa e utilitarista, mas apenas quando banhada nas águas vivas da intuição, da vida e de seu movimento.

A linearidade da escrita operada pelo sujeito escritor é a falsificação do processo criativo, disruptivo, caótico e inumano que lhe originou (a escrita e o escritor). Um artigo científico, um capítulo de romance, um movimento musical, uma obra qualquer é a confluência de diversos outros pontos que bancaram sua existência. A escrita é um ponto cristalino duma rede de efervescências. E não opero com metáforas, aqui. Que é uma rede senão um monte de pontos e buracos? Se toda escrita é uma “trama”, se todo texto é já um hipertexto, é assim que o escritor comprometido com o devir da sua obra dispõe a palavra, respeitando os inúmeros nós (e tus, e eles...) que a constituem e seguindo o fio fino, o sprit de finesse pascaliano, que coliga uns nos outros e o outro no um. Cada pedaço que o escritor pede emprestado (mas sem devolver, friso) de outros escritores é utilizado como ferramenta; entra em cena, opera uma função e retorna à caixa para que uma outra ferramenta realize o trabalho específico que ela não dá conta e o trabalho geral que ela, sozinha, não concebe. Walter Benjamim, em seu Rua de Mão Única, não fia tão-só um texto-sobre-a-rua, mas um texto-rua, um texto tal qual uma rua, texto que nos coloca na rua. 

Pode-se argumentar que o escritor dos movimentos periga cair num hermetismo esotérico devido ao modo peculiar a que submete a escrita (ou, antes, o inverso; a que uma certa estética lhe submete): textos compactos, densos; sentenças aparentemente desconexas; argumentos mais imagéticos que lógicos; maior primor poético que gramático; uso de palavras diferenciadas e neologismos; uso de palavras comuns, mas com outro sentido diferente do prosaico. Os vícios de linguagem tornados virtude na pena do escritor revolucionário, que se afigura como uma alternativa política a uma escrita velha, "clara e distinta", que se refere, esta, a um algo em específico, que enuncia ordens, fundamenta verdades, diz de uma realidade já bem estabelecida, seja para o próprio escrevente seja para o mundo para o qual ele enuncia; o mesmo não se dá com a escrita nova. O texto revolucionário, ao invés de falar adequadamente das coisas que já existem, e antes mesmo de falar de "coisas que não existem" para um mundo que já está posto, fala com "uma fala que ainda não existe", uma fala que não é uma fala, escreve uma escrita que não é uma escrita, no intento de que o sujeito leitor saia de sua condição de mente racional, de "cérebro extirpado" - para usar a belíssima imagem do antropólogo B. Latour - e ganhe um corpo, e um olho, e olhe as modulações do mundo com esses novos olhos e esse novo corpo que ainda não se materializou por completo. O mundo a que a escrita nova se destina, ao contrário da escrita velha, não é o mesmo a que ela se refere no corpo de seu texto, no corpo de seu autor, já que este mundo referido ainda não existe. O estoico, já sabido dessas questões, não escrevia sobre o mundo e nem mesmo para o mundo; "escrevia-se", escrevia-se a si mesmo, tão somente (a hypomnemata). Sócrates, sem escrever, também já o sabia (a epiméleia heautoi e seu correlato cognitivo, o gnothi seauthon). Se a escrita velha pensa o texto como uma caixa do tamanho do mundo, uma caixa do tamanho exato do mundo, para ele adequada e para ele conter, a escrita da revolução é afetiva antes de cognitiva, criadora antes de burocrática, engrenagem antes de caixa. Antes de instruir o leitor, tomando-o de antemão como ignorante, busca-se com ele estabelecer uma parceria produtiva de um novo sentido para ele, que lê, para o mundo, a que se destina (mas a que não se refere) e ao virtual, mundo novo, a que sonha.

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