sábado, 20 de abril de 2013

Música Nova

Frente ao adágio que diz que toda e qualquer música é a combinação sequenciada de 12 notas sonoras (ou que todo e qualquer texto é a combinação sequenciada de 26 letras, ou que toda pintura é a combinação de 7 cores e suas nuances numa tela etc.), objetar-se-ia com músicas microtonais, músicas que mandam para os infernos o sistema cromático de notação musical e suspendem, por um segundo que seja, toda a tradição sonora na qual os nossos espíritos foram modulados. Seria o equivalente a escrever usando de letras que não possuem correspondência no alfabeto, de jogos de palavras que não nos mobilizem exemplo algum e de expressões que não tenham referência outra que não elas mesmas, ou pintar com cores duvidosas, entremeadas entre o vermelho e o amarelo do sol no horizonte, o azul e o verde do mar profundo. Franz Kafka escreve em alemão como quem pragueja, como um burocrata, como um judeu, escreve em alemão como um não-alemão; Milan Kundera dispõe a sua literatura e desenrola a vida insustentavelmente leve de Tomas e Teresa (e Sabina e Franz e Karenin...) como quem faz filosofia. Para comentar a frase inicial de que tudo se resume às tais "12 notas" - o que equivaleria a dizer que o pensamento (musical, literal, pictural etc.) demanda sempre condições estruturais e bem formalizadas para se manifestar - a Crítica da Razão Pura tomada por Código de Direito Penal - nem é preciso chegar ao microtonalismo (a radicalidade desta discussão, o xeque-mate do sistema serial). 

Antes mesmo de Schoenberg (o atonalismo, a escala cromática levada a seu limite) ou de Pierre Boulez (o microtonalismo efetivamente falando), Claude Debussy já nos dava a ainda mais absurda lição - tanto em sua música quanto em sua literatura - que a nota Dó de uma oitava, por exemplo, difere do Dó da oitava seguinte, do Dó uma oitava acima. Só são "a mesma nota em oitavas diferentes" pois já nos acostumamos - tanto individual (ontogênese?) quanto historicamente (filogênese?) - a dividir o continuum do som em pacotes de 12. Se é duro educar o ouvido para considerar uma obra atonal/microtonal como música, é ainda mais duro educar o ouvido para conseguir distinguir como duas músicas distintas a mesma sequência sonora tocada em oitavas diferentes (ou em timbres diferentes; como o violão e o piano, muito distintos, e o violino e a rabeca, menos distintos mas, ainda assim, com timbres distintos). Numa partitura, a variação vertical da nota produz alteração de tonalidade; a variação horizontal produz mudança de ritmo. Vale apontar, a título de nota e de experimentação, que uma micro-mudança de ritmo - mais sutil que a mais sutil das semifusas - é ainda mais difícil de captar do que uma micro-mudança de tonalidade. É tanto mais difícil de captar quanto, captando, mais difícil de entender, de compreender, de se fazer música com essas variações moleculares. De qualquer maneira, escapar dessa fenomenologia musical, segundo a qual uma música equivale à sua estrutura, à sua gestalt, é atividade muito mais difícil do que acostumar-se a atonalismo ou microtonalismo ou microritmismo.

Para elucidar o pensamento musical de Debussy, é interessante lembrar de Victor Borge, o humorista-pianista, fazendo uma brincadeira ligeira com a sua Clair de Lune. Assim que começa a interpretar a suite, e embora as notas estejam certas e a platéia reconheça a música imediatamente, fica-se logo com a impressão de que "tem algo errado". Depois das pantomimas do maestro, todos percebem que ele estava a tocar a música uma oitava acima. Essa verdadeira aula de Borge reflete bem a música e a teoria musical debussiana: o que ocorreu não foi a mesma música executada uma oitava acima, mas sim uma outra música! A experiência musical é distinta, é uma outra, ainda que, "aparentemente", fenomenologicamente, pareça se tratar da mesma coisa. O mesmo se dá para uma música que, por exemplo, foi composta para o piano e está sendo executada num violão (variação no timbre). Debussy diria que não é a mesma obra pianística interpretada no violão, mas, isso sim, uma outra música, uma outra obra, ainda que as notas sejam exatamente as mesmas. Aí está o caminho das pedras: entender que "Clair de Lune ao piano" e "Clair de Lune ao violão" são experiências distintas, são músicas distintas, é algo mais difícil de exercer do que preparar o ouvido para o atonalismo e para o microtonalismo (e mesmo para o microritmismo). Noutros termos - e repetindo o já dito - é difícil educar o ouvido para considerar uma obra atonal/microtonal/microrítmica como música, mas é ainda mais difícil educar o ouvido para conseguir distinguir e entender como duas músicas distintas a mesma sequência sonora tocada em escalas ou timbres diferentes.

É mister não encarar a tal da "experiência musical" como algo subjetivo. A mudança de uma oitava para outra ou uma alteração de timbre, além de possuírem um correlato mensurável, é uma mudança tão violenta para a música quanto a alteração de seu ritmo ou de sua tonalidade. É nisso que Debussy insiste, quando toca a sua música: por que se diz que a alteração objetiva da tonalidade e do ritmo de uma sequência de notas produz uma outra música, enquanto que para outras mudanças - como alteração do timbre ou da oitava em questão, igualmente objetivas - diz-se que é da mesma música que se trata? Duas experiências: escutar Libertango com o bandoneon do próprio Piazzola, acompanhado de Yo-Yo Ma destruindo um violoncelo; e escutar um qualquer tocando o Libertango num solo simplificado de violão. Debussy não diria que são duas interpretações distintas da mesma música, mas duas músicas distintas, ainda que reconheçamos a mesma identidade nelas, o mesmo fenômeno.

Fugir da tal fenomenologia musical é a mais brutal das asceses da escuta que se pode praticar, já que não se resume a preparar o ouvido para outras "identidades musicais", outros estilos ou outras "coisas", mas se trata de erradicar a consciência da música, de expurgar da mesma a humanidade, e nela encontrar, como já tinha colocado o próprio Beethoven, as condições para a superação heroica de si  mesmo e do mundo no qual se está. O menino-exemplo de Husserl a escutar uma orquestra no disco riscado entra sem querer no jogo programático do sujeito-ouvido e do objeto-música e logo identifica a obra como sendo a mesma coisa que escutou numa ocasião passada ou que leu numa partitura. Ora, realmente se acredita que essas experiências se identificam? Se sim, mantém-se a consciência como dativa do sentido do mundo e, mesmo a contragosto de Husserl e da sua fenomenologia, o homem é um ser que representa a realidade. Caso contrário, se está a investir numa música sem intérprete nem compositor, sem gravação nem mixagem, uma música sem músico e sem ouvido, sendo a consciência - tonal, atonal, microtonal - efeito de suas práticas, fruto de sua atividade e criação de suas criações. O convite está lançado: ou a análise é focada no "sujeito que faz música", o tal do intérprete, o tal do compositor; ou se foca na música em seu amadurecimento criador, produtora de obras musicais, de músicos, de técnicas, de tecnologias, de instituições, de jogos políticos, de história, a música imanente à vida e a vida em notações musicais - venham elas em 12 ou não.

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