segunda-feira, 12 de julho de 2010

Ethos

  • Tá! Começo puxando o Bauman e aquele lance da conduta moral que ele pega do Levinas. Como era, mesmo!? O paradoxo em se falar duma necessidade da moral, a morte da ética quando pedimos por argumentos para justificá-la – palavra com muitos sentidos! Tenho que trabalhar isso, no texto – e o des-propósito da moral, visto ser a mesma uma manifestação criativa típica da humanidade. Depois, articulo isso com a Beatriz Sarlo e a idéia do colecionador às avessas, que ela traz. Ué, cadê!? Não tô encontrando! Devia ter marcado a página. Merda! Enfim, depois procuro isso. Cadê meu rascunho? Aqui! O colecionador às avessas não deseja objetos, mas atos de compra-e-venda. Pronto! E isso, eu ligo com a Heliana Conde e sua proposta duma narrativa eventual, que ela constrói usando o Foucault, que constrói seu trabalho usado o Nietzsche. Demolir os castelos da metafísica e deter-se nos bairros baixos e singulares. Bonito, isso! Heliana-Foucault-Nietzche! Não, apaga, apaga! Peraí! Essa idéia de eventualização – ou seria melhor citar em francês, mesmo? Événementialisation! Nada, é pedante demais! – eu poderia ligar com a temporalidade suspensa dos Shoppings Centers, que a Beatriz comenta. E, falando em tempo, acho que uma pitadinha de Bergson no trabalho não fará mal. Isso! Genial! E, pra ligar o menino ao Bauman, eu posso usar uns parágrafos da Hanna Arendt sobre política, já que ela tem um pézinho na fenomenologia do Heidegger. Sempre quis parear Bergson e Heidegger! E aqui, nesta parte, a Beatriz fala da identidade transitória do ato de consumo e de como os objetos nos significam. Dá pra puxar os não-humanos do Bruno Latour e falar da política de intercessores do Deleuze, também! Mas eu penso, penso, penso e penso mais um pouco. Aaah! Quanto mais eu penso, menos consigo escrever! Não fiz nada, até agora, e o trabalho é pra ser entregue próxima semana! Fodeu, velho! Nem uma gotinha sequer de tinta consigo espremer das minhas penas. Consegui juntar esse monte de gente, que é o mais difícil, mas não consigo escrever nada! Céus!!!

  • Monte de gente!? Você ficou trancado em casa o final de semana inteiro. E sozinho! Bebeu!? Ou endoidou de tanto estudar?

  • Nada! Tenho um ensaio sobre ética pra entregar e, mesmo com boas idéias – porque eu as tenho! – não consigo preparar nada que seja bacana.

  • Vai fazer uma outra coisa, então, e esfria a cabeça. Como comprar pão, por exemplo. Acabei de preparar um café, mas percebi que o pão de ontem acabou. Vai lá na padaria, pra mim.

  • Posso, não! Tenho de acabar o trabalho e, logo mais, encaminhar outros problemas da universidade, mulher.

  • Tá bem, “homem”, mas você acabou de dizer que não consegue produzir coisa alguma. Além disso, comprar pão é mais importante que escrever seu trabalho, não!?

  • Claro que não! É um trabalho sobre Ética, com “E” maiúsculo! Que pode ser mais importante que isso? Volta a assistir o William Bonner e me deixa terminar o escrito.

  • Começar”, você quis dizer. Enfim... O Jornal tá pior que o de costume, hoje! Metade das notícias é sobre aquele goleiro do Flamengo. É Bruno pra cá, Bruno pra lá... E olha que as eleições já estão aí!

  • E qual o problema?

  • Como assim, “qual o problema”!? Um Jornal que se diz Nacional, vê se pode!

  • Mas o Bruno é uma figura pública. Não vejo nada demais, nisso...

  • O Bruno é uma figura célebre, bem. Não pública! Figura pública é um outra coisa, atrelada e articulada com os processos políticos, com os movimentos que interessam à nação e seus habitantes!

  • De qualquer maneira, ele é popular!

  • Também não! O que é popular vem do povo. Cria e se cria no povo, no meio das gentes.

  • Lá vem...

  • Tá! Se não quer conversar, não conversa. Mas vai comprar o pão, ao menos!?

  • Já disse que não posso! Tô escrevendo!

  • Então, me mostra o que você já escreveu.

  • Sacanagem, isso. Você sabe que ainda não escrevi nada!

  • Mostra os rascunhos, ao menos. Deixa eu ver... Bauman... Levinas... Hum... Certo. Heliana Conde... Foucault... Mais Foucault...Huhum... Hum...

  • E aí!? Que achou?

  • Bonito.

  • Legal a proposta, né!?

  • Não disse “legal”. Disse “bonito”. Você pegou um monte de cores diferentes, esparramou numa tela, deu um formato reconhecível e apreciável... Uma obra de arte! Mas daí você pendura na parede dum museu, junto com outros quadros pintados, por você ou não, que seja. Um dia, alguém entra no museu, por acidente ou não, que seja, e dá de cara com sua tela. Olha, entende, gosta e, depois de comentar com os colegas ao lado sobre a pintura, vai pra casa, viver a sua vida. Acho eu que você deva gastar sua tinta com coisas mais urgentes. Nossa casa anda precisando duma mão, por exemplo.

  • Nunca entendo as suas histórias... Como assim?

  • Pão! Não temos pão. E você não está fazendo nada, agora.

  • Essa sua conversa já tá me dando raiva...

  • Minha, não! Nossa! E ela já está me dando é fome. Meu caso é pior! Como é que é aquela música do João Bosco, mesmo!? Aquela, do ronco da cuica...

  • Tá, tá! Algo mais?

  • Claro que sim, amor. Vamos falar sério. Esse Bergson já encheu, né!?

  • É o quê!? Tá fumada!? O Bergson, mesmo tendo nascido a mais de 100 anos atrás, continua atualíssimo! Escrevia sobre cinema, matemática, relatividade restrita, neuropsicologia, bioética... Ouxe! Com 23 anos, já era professor dum Liceu, minha amiga! A tese de doutorado do cara é referência para a filosofia vitalista, até hoje! Era diplomata, também, e interviu diretamente na Primeira Guerra! Resolveu um dos grandes problemas de Pascal! Ganhou um Nobel! Era amigo de William James! Era casado com a prima de Marcel Proust!

  • Ei, ei, ei! Calma, aí! Nem é disso que se trata. Não quero saber se as bolas dele são maiores do que as suas. O que eu tentei dizer mas você não deixou – como sempre! – é que, não importando o assunto, seja ciência, religião, a copa do mundo, cerveja, uma receita de macarronada, enfim, você sempre arruma um jeito de tascar o Bergson na conversa. Seu pensamento é invertido!

  • Hein?

  • É. Você não pega uma experiência e, dela, tira um discurso; mas parte do blá-blá-blá da teoria e tenta colocar as coisas dentro dela. É o que eu sempre achei engraçado no Platão. A vida só faz sentido quando ela corresponde a uma idéia! Tosco demais, pra mim. Você começa do fim, do céu, mas nunca termina no chão. Como o Platão e o Bonner.

  • Entendi, de começo, mas agora voei! Como que o William Bonner entrou na conversa?

  • Hoje, mesmo, ele só falou do Bruno e do gorro da Fátima. Uma tragédia e uma comédia. E eu com isso!? Mas não! Eu querendo saber de Dilma e Serra, e o que eu recebia eram notícias dum tal polvo que sempre acertava o placar dos jogos. Azar dele, que não participou de bolão! Você, que é psicólogo, deve se empolgar ao ver que questões individuais suscitam mais interesse que os assuntos coletivos. Não entendo isso!

  • O Sennet dedica um livro só pra isso. Posso arrumar um exemplar pra você, se quiser. Mas não mudemos de assunto. Tenho um trabalho a terminar e...

  • A começar”!

  • Que seja! Vai me ajudar a construir o trabalho ou vai ficar aí, falando e falando e falando?

  • O especialista em monólogos, aqui, é você, bem.

  • Como disse?

  • Você, como todo intelectual, não sabe conversar. É você que fica falando e falando e falando! Seu adversário de idéias se dá por vencido, muitas vezes, não porque você foi convincente ao trazer realidades pra ele, mas porque sua fala se torna um desfile de conceitos, autores e teorias que acaba levando o ouvinte à exaustão.

  • !…

  • Nem faça essa cara, porra! Você sabe que é verdade. Aliás, acho que você não consegue tocar seu trabalho pra frente porque, mesmo no meio de muitos, você sempre se faz sozinho. É Deus, você!

  • Como assim, sozinho!? Estou cercado de autores, de livros, de...

  • De homens e coisas? Humanos e não-humanos? Invocar o Lévy e o Latour não vai te livrar dessa. Você se cerca de outros deuses, mas nada de carne e de sangue perto de você. Prova disso é que, sem carne nem sangue, não há comunhão nem pão!

  • Isso não foi um argumento, foi!?

  • Não! Mas foi um trocadilho bonito, diz aí!

  • Já entendi. Deixa que vou comprar o pão! Afinal, até Arquimedes precisou descansar e deixar o trabalho de lado pra pôr termo em seu problema.

  • Esse aí insiste em convidar pra festa quem não tem nada a ver com ela. Até grego aparece; eu, hein!? Enfim... Aproveita e traz leite!

  • Peraí...

  • Que foi, agora?

  • Já que é pra falar duma experiência que me afeta, posso falar sobre essa nossa conversa. Falar sobre o pão, veja só!

  • Interessante! Mas não vejo como essa discussão – que é muito ética, pra mim e pra você – possa interessar outros que não estão aqui, com a gente.

  • Ora! Eu vou à padaria, falo com o seu Joaquim, troco umas palavras com os clientes, escuto suas conversas, vejo o que está sendo vendido e comprado... Daí, volto pra casa e escrevo uma narrativa sobre os modos de se fazer pão na pós-modernidade! Que acha?

  • Francês demais pro meu paladar!

  • Uma pesquisa etnográfica de longa duração, então! Como tenho de entregar o trabalho, logo agora, preparo o projeto da pesquisa como trabalho da disciplina. Mas me comprometo a fazer uma observação participante, durante um ano, sobre o trabalho nas padarias. Posso coletar informações sobre os diferentes tipos de pães; quem são os principais fornecedores de ingredientes, na região; tirar fotos dos consumidores...

  • Aí já é um texto pra inglês ler, amor! Informação que não acaba mais. Você publica um amontoado de respostas para uma pergunta que não faz muito sentido pra ninguém, além de você.

  • Olha o Bergson aí, de novo!

  • Que cara é essa!?

  • Não falo mais nada...

  • Tá bom, tá bom. Parece que o jeito é voltar para o quarto, me trancar, e escrever um ensaio simples. Mas, como a idéia é boa – e sempre é! – pode virar artigo. Ou um livro. Ou um tratado em três volumes! Já tenho até nome: “O Pão Ázimo como Possibilidade Fenomênica para o Espírito Constitutivo do Ser”!

  • ...

  • Que cara é essa!?

  • Vou te bater!

  • Pois! Quando, finalmente, encaminho meu trabalho, você reclama!?

  • Doido, você não é alemão no inverno pra ficar trancafiado em casa. Vê só, você me preparou um Blanquette de veau com vinho Rosé, um Flan de Chocolate com creme e uma Kartoffelsalat com cerveja. Mas um cafézinho com pão que é bom, nada!

  • E eu é que levo a fama por esnobar vocabulário. Além do mais, como dizem os filósofos analíticos, só usamos metáforas quando não sabemos do que estamos falando.

  • Não são esses mesmos analíticos que dizem que o seu Bergson não faz filosofia?

  • Er... Bom... Vou logo na padaria, senão não pego pão fresco.

  • E leite!

  • Tá certo, mas... Você tolheu todas as idéias que eu tinha para a confecção do ensaio. Faço o que, agora!?

  • Não sou eu que tenho de responder. Essa ética, daí, não é filha nossa.

  • Francês... Inglês... Alemão... Tenho de fazer uma filosofia à brasileira, é isso?

  • Rapaz... O Jackson do Pandeiro cantava uma música que era bem isso. Mas acho que não é nem dele. Enfim! Você quer fazer um samba-rock, mas o boogie-woogie passa longe do pandeiro e do violão. Essa sua filosofia à brasileira tá mais pra um chiclete com banana que qualquer outra coisa.

  • Eu tenho que tão somente sambar, então?

  • Não, porque o samba só interessa pra quem tá na batucada.

  • Mas ir na onda do Tio Sam também não seria muito adequado...

  • Verdade! Acho que é nesse espaço do meio, bem aí, que você devia trabalhar. Nem gringo nem bairrista. Acredito que seu trabalho deva ser fazer – escrevendo ou não – um problema seu ganhar um sentido para os outros, e não tacar respostas e mais respostas para uma problemática que nem existe no mundão lá fora. Coloque o problema e deixe que as respostas – sempre no plural! – surjam; não por geração espontânea, mas como um trabalho coletivo. Não sei se isto daria um trabalho sobre Ética – com “E” maiúsculo, como você diz - mas daria um trabalho ético.

  • ...

  • Que foi!?

  • E eu vou falar mais o quê, depois disso? Foda, viu!? Só posso é xingar, porque palavra nenhuma cabe mais...

  • Fica assim não, fio. Escreve um ensaio com o conteúdo da nossa conversa e entrega como trabalho final da disciplina. Missão completa!

  • Não posso escrever sobre isso. Não agora.

  • Então... Ah, sei lá. Escreve um conto, querido.

  • Você mesmo disse que sou um especialista em monólogos.

  • Mas também é muito bom em guiar uma conversa pra conclusão que você deseja. Seu ponto final vem sempre antes dos predicados e sujeitos.

  • Isso não foi um elogio, foi!?

  • Não! Mas eu te amo, ainda assim, bem.

  • Saco... Vou comprar o pão, agora...

  • Amor!

  • Oi!?

  • Não esquece o leite...

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