segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ouvido Absoluto e Relatividades


Numa conversa com um amigo, por esses dias, falava eu sobre a infinidade criativa da música. Ou na música. Mas enfim! Dizia que a música, assim como qualquer manifestação inventiva do homem e do mundo, possuia inesgotáveis possibilidades; meu adversário de idéias, fazendo frente a minhas discursivas apaixonadas, argumentava que as possibilidades sonoras a usarem toda a escala cromática - um sistema serial de 12 notas, que são a totalidade de sons que um instrumento temperado pode executar numa oitava - tenderiam a um fim, assim como as sequências numéricas decorrentes duma análise combinatória.
Percebo, então, que estamos usando termos diferentes, mas que respondem ao mesmo nome, em nossa prosa. Como toda criança que não sabe o que fazer num momento decisivo, trago para a conversa alguns mestres para que os mesmos falem da Matéria e da Memória, mas o resultado foi um desfile de conceitos vagos e pedantes que transformaram uma boa conversa de bar numa chata palestra de cátedra que terminou sem perguntas; não porque o falante, de seu púlpito, trouxe luz à caverna, mas porque transformou em escrita una toda a sonoridade coletiva daquele evento. O momento torna-se instante. A festa vira foto. Cometo o mesmo assassínio temporal que eu condenava durante meu discurso de acusação, o que ficará claro no decorrer da postagem. Espero!
Imaginem uma partitura em branco. E, para os que nada entendem de notação musical, tentarei ser o mais claro possível na explicação. Coloquemos a mesma em quatro por quatro. Ou seja, dentro de cada compasso da partitura teremos quatro espaços, indicados pelo numerador, sendo que cada um deles vale uma semínima, valor de duração equivalente ao 4 do denominador. Revisão puramente contextual: uma semínima dura um quarto do tempo duma semibreve, metade do tempo duma mínima, o dobro do tempo duma colcheia, o quádruplo duma semicolcheia. Paremos por aqui. Na nossa pauta, em 4/4, "cabem" 4 semínimas. Como cada semínima vale duas colcheias, poderíamos substituir as 4 semínimas por 8 colcheias. Ou por 3 semínimas e 2 colcheias. Ou 2 semínimas e 4 colcheias. Ou 1 semínima e 6 colcheias. E isto em ordens diversas: SSCCCC, SCSCCC, CCSSCC e CSCSCC são algumas das muitas possibilidades de combinação de 2 semínimas e 4 colcheias num compasso em 4/4. Reflitam.
Poderíamos substituir, dentro deste mesmo compasso, cada nota por uma pausa. Existem pausas com valores equivalentes a todas as durações, da morosa Máxima, usada nas notações antigas, à histérica Quartifusa, que vale 1/32 de semínima! Ao invés de fazer soar, então, podemos calar. Vê só! Dentro de cada valor, poderíamos tocar 12 notas (Dó, Dó sustenido, Ré, Ré sustenido, Mi, Fá, Fá sustenido, Sol, Sol sustenido, Lá, Lá sustenido e Si) ou optar por calar. 13 possibilidades. Num compasso em 4/4, ocupado apenas por valores de semínima, eu posso ter 13x13x13x13 combinações musicais. E isto num instrumento temperado de apenas uma oitava! Um violão, de três oitavas, ou um pianoforte, de sete, multiplicam os possíveis. Para os neuróticos obssessivos curiosos em levar a brincadeira adiante, façam as contagens com todas as combinações possíveis de valores, da Máxima (8t) à Quartifusa (t/128), levando em consideração as 12 notas da escala cromática e as costumeiras pausas. Eu, que sou menino, paro por aqui. Pra deixar a atmosfera menos pesada, proponho um exercício de imaginação diferente, uma viagem para outros lugares. Quatro, em especial. Um bar, um teatro, um quarto e um outro teatro.
Nogueira acorda cedo, pela seis, e começa a afinar seu cavaco. Depois dum café reforçado, separa algumas cifras e passa na casa do Joca, pra por a conversa em dia. Vão juntos, minutos depois, ao "Choro do Zé", onde costumam passar o sábado inteiro. Caixas de cerveja, uns velhos isolados no canto, cachorros bebendo a água da sarjeta. Estão lá o Paulão, o Batata, o Clóvis. Nogueira, já meio ébrio, cansa de tocar seu cavaco, vai pro violão e, desacostumado aos trastes grandes do instrumento, puxa uma música do João Bosco, que é seguida pelo Joca com seu pandeiro maroto.
Sara é violinista e mestre de concerto duma orquestra de repercussão global, mesmo sendo a mais jovem do grupo de cordas. Exigente consigo mesma, treinou duro para alcançar sua posição, visto ter nascido em família pobre e nunca ter tomado aulas. Nenhum membro da orquestra - aristocrática - sabe do seu berço. Entra no palco com seu vestido vermelho, destoante do negro pinguim usado pelo resto da orquestra; cumprimenta o maestro Vieira; olha a platéia, acomodada em suas fofas poltronas; fecha os olhos e começa a melodiar o primeiro movimento da Primavera, de Vivaldi.
Gomes é aluno de guitarra clássica e toma aulas com Seu Silva, um professor particular. Seu objetivo é adentrar num conservatório musical mas, pra isso, pretende entrar em contato com noções básicas do seu instrumento e adquirir algum manejo da teoria musical. Nervoso, tira seu violão da capa e começa a interpretar um estudo em Sol Maior do Ferdinando Carulli, em uníssono com o seu tutor - o que considera muito difícil - visto sua interpretação ser bem diferente do toque rubatado de Seu Silva.
Luís entra no palco e ruma ao piano. Recebe uma salva de palmas. Pretende tocar Villa-Lobos em sua apresentação do festival Avant-garde de música moderna mas, como uma surpresa de abertura para a platéia, interpreta 4´33´´, do John Cage, permanecendo quatro minutos e meio em posição de ataque, mas em completo silêncio durante toda a execução da obra.
O que aprendemos com Nogueira, Sara, Gomes e Luís? Só um tolo não perceberia que a música do Nogueira e o Choro do Zé são unha e carne. Que o Prada escarlate e a infância pobre de Sara é que matizam as cordas do seu violino. Que Gomes e Seu Silva, mesmo tocando a mesma música, tocam músicas diferentes. Que Luís não está em silêncio, pois o ruído dos pigarros e sussuros no teatro é que fizeram música, diria o chinês! A partitura, tecnologia de inteligência, não abarca a história. Transforma em sucessão de sons e silêncios o que é, em verdade, uma coexistência de eventos. As desculpas intelectuais: se Nogueira e Joca percussionam diversamente das valsas bem compassadas, diz-se então que estão a sincopar; Sara, persistente, aprendeu a arte do violino mesmo em condições adversas a tal; Gomes e Seu Silva tocam a mesma música, mas com expressividades diferentes; e John Cage é um experimentalista idiota!
Se partirmos da escrita musical, numa pauta, estaremos corretos em comparar a música a uma sequência numérica. Compreensível. Mas seria o mesmo que afirmar, numa analogia, que todo o pensamento já está pré-colocado e destinado a um fim, visto só possuirmos 26 letras para combinar em palavras soantes. A atividade musical, sempre eventual, só atingirá seu fim quando cessar as relações que possibilitam essa criatividade coletiva de homens, mulheres, roupas de grife, cerva gelada, teatros silenciosos, platéias sibilantes, quartos escuros, violões desafinados. A música não como sons que se sucedem, mas como mundos que se agenciam. Sejam as dobras musicais que a história tão bem delineou - Barrocos, Românticos, Impressionistas - sejam as esquinas escuras que, pintadas de povo, camuflam-se dos registros intelectuais...
P.S.: E eu nem entrei nos méritos da música microtonal. Fica pra uma próxima...

Um comentário:

Felipe J. R. Vieira disse...

Você explica bem melhor através de poesia, não de conceitos.
Esse texto possui visões que abrem a mente, mas, que na vida "comum" as vezes não é sentida.
O texto está muito bom e agora tenho uma impressão diferente do tema, porém, ainda dá muito pano para manga.
Como não escrevo muito bem, meus argumentos ficam para uma boa e filosófica conversa.

Até mais!