sábado, 31 de julho de 2010

Um-outreidade: o barroco e eu

Dando continuidade à discussão iniciada no post anterior, puxo um outro exemplo para que a imagem do um-outro fique melhor lapidada, ao mesmo tempo em que preparo a casa para a vinda dum post futuro, sobre o que é que se faz disso tudo. Se, antes, apresentei dois personagens ficcionais para ilustrar o conceito, conto agora uma experiência pela qual estou atravessando: o embate violento e sanguinário entre a minha pacífica pessoa e o dragão hermético que é a música barroca. Rufem os tímpanos!
Barroco quer dizer "disforme", diz o dicionário. Esse termo foi usado, até meados do século XIX, para nomear - pejorativamente - as formas artísticas por demais carregadas, ornamentadas, incrementadas e cheias de fru-fru. Foi idéia do povo moderno tranformar o palavrão num conceito e aplicá-lo a uma coordenada temporal específica, caracterizada por sua estilística rebuscada. O Barroco musical - demarcação de historiador - nasce com o surgimento da ópera e do oratório, no começo dos anos 1600, e falece juntamente com Händel e Bach, em 1750.
Muito estudei para escrever sobre o Barroco. Visitei inúmeros sites e li diversos livros para a empreitada... Tá, tudo bem! Fui na Wikipédia e folheei uma modesta enciclopédia sobre história da música, confesso. No entanto, mesmo me articulando, apenas, com estas duas fontes, obtive uma quantidade incrível de conteúdos desejosos de serem passados adiante: a divisão sócio-política do século XVII e como a arte barroca se distinguia duma classe a outra; a influência do racionalismo científico na música da época; as inovações musicais do Barroco, como o baixo contínuo e o conceito de tonalidade; a importância da música instrumental e suas novas formas, como a sonata, a suíte, a fuga e o concerto; o investimento em instrumentos de boa capacidade melódica, como o violino e o cravo; a aparição de novos personagens no cenário musical, como o virtuose, o luthier, o castrati, o mecenas. E isto sem mencionar as já manjadas contradições típicas do espírito barroco, verdadeiras relações um-outro: o piano e o forte, o solista e a orquestra, a letra e a música, o vocal e o instrumental, o religioso e o profano, o lento e o rápido, o sério e o bufo. Cada um dos tópicos renderia escritos e mais escritos! Como estou mais preguiçoso que o de costume não detalharei nada disso. Importância não implica obrigatoreidade, certo? Fiquemos com o necessário.
Meu exangue parágrafo não é suficiente para que os amigos construam uma imagem do Barroco, definido pelo seu rigor e prolixidade. Aos mais animados, sugiro uma pesquisa: Monteverdi, Scarlatti, Albinoni, Vivaldi, Bach, Telemann, Purcell, Händel, Couperin. Escolham - ao menos! - dois dos senhores listados e façam uma viagem por algumas composições. Aos mais fatigados, dou três informações: o Barroco musical não utiliza de muitos acordes, visto a harmonia ser construída pela própria melodia; o Barroco musical aposta na música conjunta - orquestras e grupos de câmara, por exemplo - em oposição aos solitários bardos renascentistas; o Barroco musical, por fim, possui um andamento rítmico bem definido e, por que não dizer, repetitivo. Pois bem!
Para os que não sabem, eu toco um pouco de violão. Mas - abro o jogo - meu instrumento preferido é o pianoforte. O violão, embora consciente do seu papel de segunda opção, mantém boas relações comigo. Tive aulas formais de piano quando guri mas, não tendo o corpulento móvel a minha disposição, preferi debandar para as cordas. Tendo pouca orientação com o novo instrumento, só pude aprender a tocar de minha própria maneira: partituras para piano, bares, classicismo italiano, chorinho, Tárrega, Baden Powell, Andres Segovia, Raphael Rabello, manuais de música, blogs especializados, amigos, paixões, bebedeiras e luais compunham um coletivo vivo a acompanhar minha solidão. Destarte! Como seria o encontro entre a aristocracia barroca e o tempo roubado dos sambas e das bossas!? Como um violão judiado e mestiço soaria uma música ariana!? Como um instrumentista solitário - acostumado a tirar e por notas, acelerar e frear compassos, repetir o que não deve e pular o que não curte - encararia um estilo pontual, formal e grupal!? E é esse o encontro um-outro do escrito: eu e o barroco.
Montei com uns amigos, a alguns meses atrás, um projeto musical. Coisa nova em minha estética, visto sempre ter recusado convites para tocar em conjunto. A música era coisa muito séria a mim e, por isto mesmo, não deveria ser formalizada em grupos, estilos ou apresentações. Seriedade, ma non troppo. Coisa de misantropo, ao que parece. Ou de apaixonado, o que é quase a mesma coisa! E mesmo sacando a pegada das músicas, tendo as partituras em mãos e treinando com afinco cada uma delas, eu não me desempenhava tão bem durante os ensaios coletivos quanto nas dedilhadas em isolado. Mesmo apresentações simples para alguns amigos não pareciam tão gloriosas quanto os meus toques, quando estou só. Foi nessa experiência que resolvi marcar um encontro com o Barroco e ver no que este esbarrão resultaria.
Recapitulando. A música barroca constrói a harmonia - Dó com sétima aumentada, Lá com Nona, Si diminuto, Mi menor! - não com acordes, mas no andamento da própria melodia; visa - sendo geral - grupos musicais; e possui um ritmo constante - quase matemático! - no andamento de suas composições. Pareando comigo. Um pianista frustrado que toca violão, um instrumento reconhecidamente harmônico (ainda que eu me arrisque mais na melodia); sempre exercitou sua música distante de outros musicistas (ainda que goste de ver outros tocarem); e tem mania de alterar o andamento das pautas que lê (ainda que curta a escrita das partituras). Encontro tenso. As mãos tremulam. O cabelo, em desalinho, começa a coçar. Um se irrita com a falação do outro, e o outro desgosta da retidão do um. Os corpos se incomodam. Param. Mexem-se. Sentem-se rasgar. Inferno! Mas até no inferno - adornando - ainda há algum ar para respirar. Link com o post anterior: Se o Barroco está para Chiaki, eu estou para Nodame-chan (salvo, claro, o fato da menina possuir uma ginga musical imensuravelmente superior a minha).
O encontro entre Chiaki e Nodame produziu mudanças num, noutro e no mundão relacional dos dois. Mas Chiaki-Nodame não são nem duas unidades fechadas a se influenciarem nem uma única unidade resultante da relação. Não é uma coisa - nem duas! - mas um "entre". Disse isto, no texto anterior, e o repito! Símile é a relação "entre" a minha pessoa e o Barroco. Não dois pontos individuais, mas uma rede de hecceidades. Eu, violeiro romântico, passo a serializar um pouco mais a minha música, assim como o sujeito lírico deixa de poesia e passa a prosear, intuindo ser um pouco mais compreendido pelos demais. O Barroco, referência circulante viva e independente de todos os humanos, passa a fazer parte de meu repertório e falatório, ganhando existência noutras cadeias de proposições que não as minhas ou as de um e outro erudito perdido, pelas bandas de lá. Verdadeiras negociações de guerra. Quanto mais alguém se enganou na vida, mais ele dá lições. Deleuziando! Um e outro ganham, mas não é simples aprendizagem mútua. Um-outreidade é isso aí! É encontro que não ensina, não corrige e tampouco aponta caminhos. Mas temporaliza os espaços, desinternalizando a diferença - transformando a in-diferença em afeto - entre uns e outros e colocando problemas que não devem ser solvidos por nenhuma das partes, mas pelo coletivo derivado de toda essa articulação caótica e nem um pouco ordenada entre homens e mulheres, períodos históricos e auto-didatas, teorias acadêmicas e a galera normal do nosso dia-a-dia...

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