sábado, 25 de setembro de 2010

Herói

Ando, e já a algum tempo, decepcionado com filmes de ação. A decepção é para com o cinema atual, deveras, mas a ação - em particular - vem me causando tremendo desgosto. Diálogos a nível sensório-motor, enquadramento e decupagem clichês, interpretações que não convencem. Nunca gostei de ofensas a minha inteligência, que nem merece tantas considerações. É a sina do filme comercial: ao invés de nos lançar numa temporalidade, numa historicidade, dispõe-nos uma sequência prévia de cenas, de fotogramas e de movimentos. É ir na onda, só que não a Nouvelle Vague, o ato de criação, mas a Bad Trip, o stimuli-respond. O horror não sabe mais nos colocar no medo e apela para estripações e torturas. A comédia já não possui a sutileza do riso e tenta nos agradar com cenas espalhafatosas e constrangedoras. O drama não mais chora conosco e passa a narrar lições de moral e piedade. Decaida está a sétima arte, chego a pensar. Decaimento de Heideggeriano, entretanto. Interroga o Ser em termos de Ente mas, ao menos, faz a máquina funcionar.

Qual não foi a minha surpresa quando, em uma de minhas visitas diárias a um site de cinema cult [aka. um blog para cinéfilos chatos, pseudo-intelectuais, metidos a besta e arrogantes] encontro, para download, um filme com o Jet Li. Herói, o nome. Franzo a sobrancelha, num sinal de incompreensão. Vejo a ficha técnica do mesmo: filme colorido, lançado em 2002, uma hora e meia da tela inicial ao crédito final, diálogos em mandarim, classificado como Ação e Drama e dirigido por um tal de Yimou Zhang. Parece ser mais um daqueles Wushia, que sempre me desagradaram pela irrealeza dos seus movimentos. Coloco para baixar, motivado por um elán-curiosidade, e faço uma aposta silenciosa de que algo bom está a me esperar, por ali. O filme começa. E termina. De A a B. Entre os pontos, entretanto, muito se deu. Tudo se deu!

Recebam, agora, toda uma saraivada de palavreados, xingamentos, gesticulações e correlatos enquanto eu tento pintar o filme através da escrita. Não os porei, aqui, porém. Profanariam o silêncio de Herói. Há pouco diálogo, mas muito é dito. Há muito movimento, mas poucos moventes. Quase não há forma, mas a cor abunda. Herói é filme pra ser visto. Necessariamente visto! Sua fotografia é radiante, multicolor, pluritemporal. Poucos corpos, mas que irradiam paletas inteiras de cor. Da cor que cega ao incolorido. Seus personagens são mundinhos vastos: a bela Neve Flutuante e o austero Espada Quebrada, a menina Lua e o tranquilo Céu, o grande imperador Qin e o protagonista Sem Nome.


A história? Pouco importa. E não por esta ser apenas o papel de parede sobre o qual as miríficas batalhas se desenvolvem. É um filme de Kung Fu, afinal. Mas não é por isso que resisto a tecer uma sinopse. A trama é baseada numa das muitas lendas sobre a constituição do império da China. A história, no entanto, é tão só o corpo no qual a bonita narração encarna. Não é o tema, mas como ele se nos revela. O título original, 英雄 (transl. yingxiong), pode significar tanto "herói" quanto o seu plural, "heróis". Sentido duplo. Dividual. A história é o desinteressante, aqui, porque é o enlaçamento das muitas histórias - contadas e vividas - que matiza o filme. Cores, cores, cores. Sem Nome narra uma história vermelha ao ditador Qin. Este, velho de guerra, percebe a tentativa de engodo do reles Sem Nome e conta a sua versão do acontecido, todinha azul. Sem Nome, acoado por ter seu plano descoberto, revela a verdade. Branca. Multiplicidade de experiências, que não se anulam uma a outra.


Herói
é um filme informe. A cor precisa de extensão, mas não dum corpo pra existir. O diretor Zhang, genialíssimo contador de histórias, jogou com a regra até o seu limite, levou-a ao extremo num alternar saltitante entre combates voadores e diálogos soturnos, histórias de amor e casos de traição, assassinatos e sacrifícios, claridade e negritude, águas calmas e chamas trêmulas, espadas tensas e penas viris. Herói me salvou. Mostrou que ainda posso ter esperanças para com o cinema, para com a ação, a verdadeira ação criadora na sétima arte! Pouco sangue é derramado no filme, percebo. Mas o filme é violento, mesmo que não o pareça. É violento, pois nos coloca no próprio ondular zigue-zagueante da matizada narração. Uma hora e meia de Duração, de Tempo, de Violência. O corpo do espectador, de Sem Nome, dos soldados do imperador são destruídos no violento embalo da poética das cores de Zhang, e somos todos imersos na caótica ordem dos opostos. Não é dialética. É a escrita chinesa, meu amigo. Esgrima e caligrafia numa mesma mão. Espada Quebrada o sabia bem. E sabia de cor...

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