quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Por que Psicologia?

O Koffka deixa claro, logo nos primeiros versos, que seu livro não é uma obra de psicologia, mas sobre a mesma. Seus motivos: a psicologia dividiu-se em tantos ramos – diversos, ignorantes, combatentes – que causa confusão ao leigo quando imerso a tantas escolas. “Psicologias”, é o que dizem! O que nos diz o autor: o estudante de Filosofia quer conhecer os problemas e soluções que o pensamento nos legou, de ontem à hoje; o estudante de História pretende estar por dentro das relações de poder a erigir e demolir nossos castelos; o estudante de Física objetiva compreender a natureza através de sua metodologia experimental; e o estudante de Medicina deseja ter em mãos todo o poder que um conhecimento generalizado sobre a vida pode lhe legar. E o estudante de psicologia? Que quer esta criatura? Conhecer a natureza do homem!? Prever suas ações!? O Sr. Koffka não nos dá uma resposta positiva à pergunta. Tanto que só se sente justificado a escrever seu Princípios de Psicologia da Gestalt quando chega a uma solução sincera a este problema. Ele delineia a questão: o que alguém ganharia ao atravessar um curso de Psicologia e – mais importante – o que este sujeito teria a oferecer para a humanidade?
Um psicólogo que, através de sua ciência experimental, factuasse toda a existência humana teria um conhecimento inegável. Tudo bem. É costume atribuir mais valor a um fato objetivo que a uma teoria subjetiva. E a Psicologia só começou a entrar no terreno científico, inclusive, quando assumiu para si o projeto de busca-aos-fatos típico da ciência. Destarte, deixou de lado suas especulações imaginativas e lançou-se ferozmente a esta busca pelo saber. Mas este saber merece ser avaliado. Um conhecedor de 20 coisas sabe dez vezes mais que um outro, sapiente de apenas 2 itens. Não obstante, caso este último conheça seus dois itens em sua relação – dispondo, assim, não mais de duas unidades, mas de um todo com duas partes – saberá mais, muito mais que o primeiro, diz-nos Koffka, visto aquele só conhecer os 20 itens como unidades independentes.
Multum nom multa.
A ciência volta seus esforços para reduzir o número de proposições e assertivas das quais podemos derivar os fatos que conhecemos. Princípio de economia. Um exemplo: sabemos todos que um corpo pesado chega mais rápido ao chão que um corpo leve. Este fato é complexo, no entanto. Um fato simples – objetivado – seria a afirmação de que todos os corpos caem com a mesma velocidade no vácuo. Deste fato simples, podemos derivar o fato complexo cotidiano (a diferença de velocidade na queda dum lápis e duma folha de papel, inferimos, se deve ao atrito, que inexiste no vácuo) mas a recíproca é falsa. A ciência, econômica, fica com o fato simples mas, daí, a própria noção de fato é problematizada. Pensemos.
Considera-se o progresso científico como o aumento do número de fatos conhecidos. Conhecimento de
multa. A simplicidade a que almeja a ciência não é no sentido de tornar o saber cada vez mais fácil para aprendizagem, mas sim de construir um sistema cada vez mais coeso, fechado e unitário. Fórmula de tudo! O Koffka, por sua vez, coloca o saber científico noutro plano, visto que ao conhecermos um fato entramos em contato com muitos outros fatos a partir do primeiro. Conhecer, para ele, é considerar a interdependência de todos os fatos. Conhecimento de multum.
Óbvio, este projeto de encontrar a ordem unitária para todos os fatos é inatingível. O sistema nunca se completa. Fatos novos pululam a todo momento e resolvem fazer companhia aos antigos, quebrando a unidade do sistema. O próprio progresso do saber científico se deu através de seu espartilhamento, em muitas e muitas especializações. Se houve aumento no número de ciências - coesas e independentes entre si – pergunta-se qual a relação entre elas. Como podemos derivar
multum do multa é a pergunta que o Koffka coloca, delegando esta tarefa à própria ciência.
É possível uma conduta sem ciência. Todas as coisas nos enunciam, como que por si, o que são: a maçã quer ser comida; o vinho, degustado; o trovão, temido. Esta é a postura do homem primitivo, diria o cientista. O processo de pensamento – desvinculação do homem à linguagem da vida – destrói esta unidade do mundo, desenvolvendo categorias, classes e leis. A existência concreta, porém, não cabe nas ordens do pensar. A vida transborda. A ciência lega a si mesma o direito de sujeitar a ação humana a seus processos mas, muitas vezes, tais processos não nos indicam uma trilha definida para bem seguirmos. A razão revela a verdade, mas uma verdade que não nos orienta para uma boa conduta. A busca por orientação, ansiando ser satisfeita, descambou, para o autor, no dualismo ciência-religião. A ciência, desintegrando a vida, nega aquilo que proferimos aos domingos. Uma tal atitude revela-se nociva, e não à religião. Caso mantida, bloqueará o progresso da própria ciência em sua questão essencial; afinal, uma ciência progride não agregando fatos individuais, mas ao formular teorias gerais e significativas. A Psicologia koffkiana é, neste sentido, “teórica”, visto intuir os fatos dentro do sistema ao qual eles pertencem.
Resumindo, a função da verdadeira ciência não é fragmentar o mundo, mas reintegrá-lo, indicando nossa posição no mundo e nos bem relacionando com as coisas que nos cerceiam. E a Psicologia tem uma função especial neste projeto de integração, a saber a articulação entre a natureza inanimada, a vida e a mente. A relação entre estas três instâncias nos apresenta alguns problemas. Koffka apresenta dois tipos de soluções – o materialismo e o vitalismo - para estas questões mas, adiantando, rejeita ambas em nome duma terceira.
O materialismo diz que o problema é inexistente, negando a existência de substâncias – matéria, vida e mente – e reduzindo todas à matéria que, combinada nas mais diversas formas, originou a vida. Pensar e sentir tornam-se movimentos atômicos. O erro reside na discriminação arbitrária cometida pelos materialistas entre os três conceitos. Aceitam um e negam os demais, usando como justificativa o êxito sistêmico e prático da ciência. No vitalismo, apontamos três abordagens: a primeira, cartesiana, coloca a vida e a matéria inanimada dum lado e o espírito do outro; a segunda funde a vida e o espírito, considerando-os impulsionados por um elán distinto da matéria; a terceira mantém a trindade e estabelece atividades diferenciadas para cada uma das substâncias. O problema da solução vitalista é que ela não é uma solução, mas uma recolocação do problema. Claro, ao fazer este movimento mostra-se superior ao materialismo mas, ainda assim, propõe apenas uma nova terminologia ao problema e a vende como solução.
Ambas as alternativas são rejeitadas pelo Koffka que, observando as ciências da natureza, da vida e da mente, extrai de cada uma delas conceitos para a forja de sua psicologia: das ciências naturais, pega a idéia de quantidade; das ciências da vida, invoca a ordem; das ciências da mente, pede emprestada a noção de significado.
A fórmula matemática quer estabelecer uma relação entre o número abstrato e o processo que pretende descrever. Neste sentido, a descrição quantitativa não se opõe à qualidade, visto indicar uma processualidade, uma condição, sendo apenas uma maneira de representá-la.
Quanto à ordem, fala-se da mesma quando cada um dos objetos questionados está numa posição determinada pela relação com outros objetos. Koffka rejeita o mentalismo, assim como o materialista o faz, mas não abandona a noção de ordem, típica dos vitalistas. Faz parceria com os dois e trai a ambos. Soluciona o problema colocando a ordem como uma característica da natureza mesma, da física, podendo aceitar o conceito nas ciências da vida sem recorrer a uma força especial responsável pela ordenação dos viventes. Se o materialismo rouba da vida seu caráter ordeiro, a teoria gestáltica a atribui à matéria inanimada.
Já a noção de significado – elucidada pelas hostes celestes do Wertheimer – é capturada pela teoria da Gestalt para referir-se às formas científicas. Através de nossas observações e experimentos, descobrimos regularidades e formulamos leis. A lei, entretanto, é apenas um enunciado factual. É prática, verdade. Mas não tem significado algum! Nenhuma lei fisiológico-comportamental pode explicar um momento histórico-cultural, irredutível ao movimento de suas partes isoladas. Não
o quê, mas por que.
Visando integrar quantidade e qualidade, mecanismo e vitalismo, explicação e compreensão, a Psicologia da Gestalt introduz na ciência a articulação matéria-ordem-significado, salvando os conceitos da vida e da mente de sua condição ficcional. A vida corre por fora dos moldes da ciência, que a ignora. Se a Psicologia puder agenciar o encontro entre ambos, estarão estabelecidas as bases para um conhecimento no todo, que envolva tanto o átomo quanto o teatro, tanto as amebas quanto a produção musical, tanto nossas práticas puras no laboratório quanto nossas mais significativas condutas sociais...
KOFFKA, Kurt;
Por que psicologia?; In Princípios de Psicologia da Gestalt; Trad. Álvares Carvalho; São Paulo; Cultrix; Editora da USP; 1975; pp.15-35.

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