quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O pensamento, temporalidade e a política de imagens

Um ano em 10 minutos. Uma contração temporal – precária, sempre precária – se dará aqui, conosco. Bloco de espaço-tempo bergsoniano. Dispenso fotogramas, vídeos ou qualquer outro recurso de imagem, para que a própria fala se configure como imagem disparadora. Pois bem. Essa minha fala, fala em mim, é produto da pesquisa Produção de imagens e os modos de imaginação: pensamento, cinema e contemporaneidade, vinculada ao PIBIC, que visou analisar processos de produção-consumo de imagens, articulando-os ao acionamento da imaginação no contemporâneo. Procuramos criticizar o pensamento e os modos de produção da atividade cinematográfica contemporânea, demarcando, por fim, a disposição de encontro com um cinema que busque se constituir como uma estética que permita a coexistência temporal. Bergson, mais uma vez.

Como parte desse projeto de pesquisa, foi ofertado – no 2º semestre de 2009 – a disciplina Tópicos Especiais em Psicologia Social e Institucional, na qual todos os envolvidos nesta pesquisa tomaram parte. Como objetivos a serem atingidos em sala de aula estavam o compartilhar experiências e leituras do cinema contemporâneo, discutindo sobre a produção de imagens e dimensionando, assim, possibilidades de imaginação.

Nossas conversações em sala de aula transbordaram num espaço de registro e de produção coletivos – a saber, um weblog aberto, que servia tanto como dispositivo acadêmico, visto que seriam as postagens no blog usadas como sistema de avaliação, quanto um lugar de discursos e discussões, pois o sítio eletrônico servia como extensão das prosas disparadas em sala de aula.

Esbarramo-nos, tanto em sala quanto no blog, com filmes que confortam e põe soluções; e filmes que colocam mais perguntas que respostas. Duas modalidades do fazer cinema: películas que apertam o coração e películas que retiram o chão. Trabalharemos nisto, mais adiante. Um desvio de percurso, agora. Luis Antonio Baptista, num dos sublimes capítulos de seu A Cidade dos Sábios, discute a condição de escuta em narrativas onde o que está em jogo é a fabricação do indivíduo. Fala duma escuta clínica, definida pelo processo de ensurdecimento da realidade histórica do acontecido, buscando dar conta do que seja o verdadeiro no evento mesmo. Em posterior, aponta uma escuta solidária, marcada por uma relação, na qual os sentidos e encaminhamentos são frutos duma realização comum de forças e interesses que trabalham coletivamente.

Um outro modo de apresentar essa discussão é apontar para os processos de produção que individualizam as experiências do viver e os modos de subjetivação marcados por uma política da coletividade. Entretanto, essas duas lógicas têm dinâmicas conflitantes nos modos de operar no tempo e no espaço. Esse conflito se revela nos termos que já dispomos: como processos que apertam o coração ou que retiram o chão. Ao invés da audição, no entanto, problematizamos aqui os modos de visão.

Cabe a mim, aqui, alguma definição desse olhar para bem colocar este problema. Poderíamos tomar o olhar como algo que produz intencionalmente o mundo e daí outros subsequentes olhares que recebem e assimilam esse mundo. Nessa relação, teríamos um super-olhar – olhar privilegiado – produzindo os modos de olhar, enxergar, ver. Um grande olho, que se faz e se quer verdadeiro, produzindo olhos. Decidimos, no entanto, por outra expressão que pontua melhor o nosso plano de experiência. Resolvemos trabalhar com a noção dum olhar parcial como força que participa dos processos de produção de sentido. A ele, designamos a expressão olhar precário.

O olhar precário possui essa sina, eterna seara, de não se bastar, e com ela pode encontrar aquilo que seja capaz de potencializar ainda mais a parcialidade do seu alcance visual. Ou seja, o incremento da sua insuficiência, da sua precarização. É olhar que possibilita a invenção das imagens que mira e não sua decodificação. Bruno Latour nos diz: o ato de conhecer – melhor dizendo – o ato de produzir saber não está no registro do transcendental sujeito conhecedor, nem na imposição à realidade pela coisa mesma a ser conhecida. O olhar é fruto de articulações coletivas, de encontros e colisões entre homens e coisas, humanos e não-humanos. É, portanto, necessariamente precário.

A precariedade do olhar soa e ressoa como condição para uma política por intercessores. Deleuze aponta para um modo de precarização criativo e parceiro nos modos de composição do mundo. Diz que esse olhar se opõe aos pré-estabelecidos, às formas colonizadoras. Fabulação dum povo que ainda não existe. Parece emergir, daí, a questão de como algo que ainda não é pode resistir a aquilo que já é. Vejamos. Com Nietzsche, aprendemos nós a buscar encontros e não uma extensão. Não se trata de interpretação, mas de maquinação. O que quero dizer, ainda com Nietzsche, é que antes da emergência de uma vida instrumental, havia a vida, em qualquer tempo. Antes do super-olhar, olhos. A imagem que pretendo construir: a vida normativa é quem resiste ao olhar precário, no sentido da invenção da vida.

Caio no olhar total, agora. Olhar, este, que busca através da instrumentalização do seu próprio foco ultrapassar a sua condição de precariedade. Um olhar que busca se dispor como “O Olhar”, com aspas, O” maiúsculo e tudo o mais, subvertendo a sua singularidade perceptiva por um modo de identificação persecutório. Panóptico. Máquina de Visão. Foucault e Virilio. Um olhar com razões que buscam se estabelecer antes da experiência do ver, para que o ver seja aqui o que se permite enxergar, aquilo que vai se dar as vistas, o verdadeiro.

Em resumo. Cabe, aqui, a crítica entre as forças que pontuam a condição de uma totalidade, ainda que finita e arbitrária, para as experiências do ver, o que definimos como olhar total, e uma outra condição que prima pela autonomia da imprecisão do ver e que aponta para produção de alternativas ao que está dado, o que tomamos por olhar precário. Como campo para este problema, tomamos – repito! – o cinema e duas experiências estéticas: as que apertam o coração e aquelas que retiram o chão.

O cinema como máquina que reforça; ou acusa essa condição de controle. O cinema como um entretenimento que ativa uma experiência sensório-motora; ou o cinema que se propõe uma dimensão estética que aciona possibilidades de diferença, que busca outra dimensão temporal que não o aqui-agora, demandando assim a criação de outras articulações do real. Produção de permanências ou jogo de descaminhos. As forças que trabalham por uma captura sentimental o fazem atuando como máquinas de repetição. A sua linguagem qualifica-se pela capacidade de síntese que uma experiência estética possa produzir. O cinema-que-aperta-o-coração assume uma dimensão industrial no seu fazer, fabricando experiências áudio-visuais voltadas para demandas sensório-motoras, que funcionam ao mesmo tempo de modo genérico, quando tomando seu público por conjunto, e também particular, quando viabiliza uma sensação de intimidade com o indivíduo, que se permitira uma absorção sentimental com aquilo que passa na tela. O filme de coração apertado é muito mais um caso que uma narrativa. Um exemplo que uma experiência. Não maquina, mas diz do movimento. História que identifica, visto ser história do indivíduo. Logo, história possível de cada um de nós.

O outro modo de cinema que disponho, aqui, é o cinema-que-retira-o-chão. Esse cinema atua noutra dimensão política, se posto em comparação com o cinema-que-aperta-o-coração. Retirar o chão é como que demandar desterritorializações, em oposição às zonas de conforto configuradas pelo cinema sensório-motor, anunciando um convite a outros possíveis territórios. É investir num tempo não disposto no instante, mas marcado por uma política do futuro do pretérito, por uma história efetiva. Nietzsche-Foucault. O filme sem chão mais desmancha que edifica, mas um desmanche que não configura dano. Nele, o imaginado subjaz ao inusitado.

O olhar precário busca, devido a sua percepção parcial, pares para que uma visão se dê. É na parcialidade e no encontro que se dá. O super-olhar, modalidade de exercício do olhar precário, se quer absoluto, tal qual a máquina de visão do Virílio que busca a produção dum sentido de totalidade. Pretensioso, o super-olhar quer estar em todos os lugares e a tudo ver. Ambicioso, quer ver os fatos e as vísceras. O super-olhar enquanto máquina de instantâneos quer representar o real, contrapondo-se às impressões inventivas que os olhares precários, em aliança, costumam pintar. Que modalidades de encontro são possíveis é a ocupação do olhar precário. O cinema voltado para uma sensibilidade sensório-motora, entretanto, funciona como fomentador desse desejo de totalidade do olhar.

Películas que apertam o coração e que retiram o chão. É a quarta ou quinta vez que disponho esse binarismo. Fala precária, esta minha. Não se trata, porém, de análise dos filmes – este é este, aquele é aquele – mas sim uma consequente aproximação dum campo de estudos que investe num modo outro de produzir olhares. Cabe-nos atentar para uma lógica problematizante, temporalizante, e buscar encontrar encaminhamentos de invenção em nossos encontros com modos outros, de abertura a uma produção – cinematográfica, psicológica, filosófica, que seja – que suscite olhares precários e ansiosos no hoje...

Fala que proferi, hoje mesmo, no vigésimo encontro de iniciação científica da UFS, a respeito da pesquisa "Pensamento, Cinema e Contemporaneidade", que participei durante o segundo semestre de 2009 e o primeiro de 2010. A pesquisa ganhará continuidade e, desta vez, investigará o pensamento deleuziano no que tange a questão do cinema, do tempo e do movimento e, num momento posterior, procurará dimensionar estética e politicamente o Cinema Novo em relação ao cinema clássico e de produção em escala industrial, focando a produção cinematográfica e literária do Glauber Rocha. Vamos nessa, então...

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