sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Quadro e plano, enquadramento e decupagem

I
O enquadramento, simplifica Deleuze, seria a determinação de um sistema fechado. Sistema, este, que abarca uma imagem e tudo o que nela está presente - cenários, objetos, personagens - assim como um conjunto a compreender elementos e outros subconjuntos. Tais elementos são como dados, dados de conteúdo, dados de informação; por vezes numerosos, saturados, por vezes escassos, rarefeitos. A saturação e a rarefação. Duas tendências, pois. Com estes dois extremos, aprendemos que a imagem não é apenas visível, mas também legível. Se muito pouco vemos numa imagem é porque não sabemos lê-la, não sabemos bem avaliar sua saturação ou sua rarefação. Com Godard, fica explicito o uso do quadro como superfície opaca de informação, um quadro-superfície ora saturado de conteúdo ora equivalente a um conjunto vazio, a tela branca ou negra.
Enquadrar é limitar, enfim. Um tal limite pode ser definido como geométrico/matemático (composição do espaço como receptáculo no qual os corpos vem ocupar) ou físico/dinâmico (o quadro numa dependência dinâmica das cenas, imagens, personagens, objetos e afins). Com esta mesma divisão, podemos classificar o quadro quanto às partes do sistema que reúne e separa. No enquadramento matemático, o quadro é composto por distinções geométricas. É coisa simples.
Dentro de um mesmo quadro temos outros muitos quadros, diferentes entre si. Conjuntos e subconjuntos. Pessoas e coisas, indivíduos e multidões, potências da natureza e as janelas dos carros. É através do encaixe destes quadros que as partes do conjunto reúnem-se e se separam, conspiram e se fecham no quadro geométrico. O quadro dinâmico, por sua vez, nos induz conjuntos vagos divididos em zonas. Não mais o quadro objeto das divisões geométricas, mas de gradações intensivas. É a indissociação entre a aurora e o crepúsculo, o céu e o mar, a água e a terra. Aqui, o conjunto não se divide em partes sem "mudar de natureza". Não se trata de um ser divisível e do outro ser indivisível, mas de ambos serem "dividuais". Indo mais além, diz Deleuze que a tela - quadro dos quadros - dá uma medida comum ao que não a tem. A paisagem e o rosto dum personagem, o céu estrelado e a gota da chuva. Partes dessemelhantes quanto à distância, relevo, luminosidade, mas assemelhados no quadro, que assegura uma desterritorialização da imagem.
Uma coisa a mais. O sistema fechado é um sistema ótico, referente a um ponto de vista sobre os conjuntos e suas partes. Vez e outra, estes pontos de vista parecem extraordinários, sobre-humanos, paradoxais: vista a partir do chão, de cima a baixo, câmera ascendendo. No entanto, tais visadas sempre se justificam pragmaticamente, informaticamente, confirmando a função legível das imagens para além da sua função visível.
Por fim, a noção de extracampo. O extracampo faz referência ao que, embora presente, não se vê, ouve, perceptua. O quadro, fala-nos Bazin pelo Deleuze, realiza um corte móvel através do qual os conjuntos se comunicam a um conjunto maior, mais vasto. Se um conjunto, contudo, se comunica com seu extracampo através de suas características positivadas, infere-se que um sistema fechado - por mais fechado que seja - nunca suprime o extracampo, atribuíndo-lhe existência e importância, a sua maneira. Todo enquadramento determina um extracampo. Necessariamente!
A própria matéria se define por este duplo movimento, o de constituir sistemas fechados e, ao mesmo tempo, pelo inacabamento dessa constituição. Todo sistema fechado, destarte, é comunicante. O conjunto de todos os conjuntos é uma continuidade homogênea, um universo, um plano material ilimitado. Mas não é o todo. O todo é, antes disso, o que impede cada conjunto de se fechar em si mesmo, forçando-o a se prolongar num conjunto maior e maior e ainda maior. Verdadeiro fio a atravessar os conjuntos e lhes conferir a possibilidade de se comunicarem entre si. É o Aberto, remetendo mais ao tempo e ao espirito que ao espaço e sua matéria. O extracampo, assim sendo, compreende duas naturezas: uma relativa, no caso do sistema fechado que faz referência a um conjunto que não se vê mas pode vir a sê-lo, arriscando assim suscitar um novo conjunto não visto, ad infinitum; e uma absoluta, na qual o sistema fechado se abre para o todo do universo.Deleuze usa a metáfora do fio grosso e do fio tênue para elucidar ambos os aspectos do extracampo. Quanto mais grosso for o fio que liga um conjunto (visto) a outros (não-vistos), melhor o extracampo cumpre sua primeira função (acrescentar espaço ao espaço). Quanto mais fino o fio for, menos ele reforçará o fechamento do sistema e sua distinção do exterior, realizando sua segunda função (introduzir o transespacial no sistema).
II
A decupagem é a determinação do plano. E o plano, por sua vez, é a determinação do movimento no sistema fechado. O todo, como já foi dito, é o aberto, a duração. O movimento revela, portanto, uma mudança no todo, uma articulação na duração, sendo tanto relação entre partes, quanto afecção do todo. Logo, o plano apresenta dois extremos, a saber, em relação aos conjuntos espaciais (modificações relativas entre elementos e subconjuntos) e em relação ao todo (alteração absoluta na duração). O plano, então, é intermediário do enquadramento dos conjuntos e da montagem do todo, ora tendendo a um ora a outro. Enquadramento e montagem como aspecto duplo da decupagem, que é tanto a mudança das partes dum conjunto no espaço quanto a mudança dum todo que se transforma no tempo.
Como tais divisões e uniões são operadas por uma consciência, podemos dizer do plano que ele age como uma. Mas a consciência cinematográfica não é nossa, a do espectador, nem a do mocinho, na película, mas é a câmera! Humana, inumana, sobre-humana. É através da câmera que o movimento se decompõe e volta a se recompor. Podemos, inclusive, considerar certos movimentos como uma assinatura autoral, seja na totalidade dum filme ou duma obra completa, ou num movimento relativo duma imagem ou dum detalhe desta imagem. Essa análise do movimento é um programa de pesquisa indissociável da análise de autor. Poderíamos chamar a isto de estilística, inclusive.
O Deleuze repete-se e apresenta, mais uma vez, o duplo aspecto do movimento, componível e decomponível. Esse movimento é o plano, intermediário do todo que muda e dos conjuntos com seus elementos, que não param de se converter e mudar de natureza, um no outro, outro no um. A sua grande sacada, agora, é que ele faz equivaler o plano à imagem-movimento bergsoniana - corte móvel da duração - apresentada no capítulo anterior. Bergson demostrava seu desapreço pelo cinema, julgando-o incapaz de movimento por lidar com um movimento ilusório, homogêneo e abstrato ao suceder fotogramas. Mas o movimento puro, movimento de movimentos, variando entre a decomposição e a recomposição, reporta-se tanto aos conjuntos quanto ao todo aberto que muda e dura incessantemente. E é justamente isto que faz o plano cinematográfico, ainda mais claramente que a pintura, visto que esta traz relevo e perspectiva ao tempo, enquanto o cinema exprime o próprio tempo como relevo e perspectiva. Fala André Bazin. O fotógrafo, por meio de sua máquina "objetiva", registra o movimento e o põe numa moldura. Mas o cinema não só registra o movimento como se molda sobre ele, captando sua duração.
III
Falemos do cinema primitivo. Seu quadro é definido por um ponto de vista único. O espectador a visar um conjunto invariável, não havendo comunicação de conjuntos variáveis e remetentes uns a outros. O plano indicava, unicamente, uma porção do espaço a uma certa distância da câmera, estando o movimento preso aos elementos que lhe servem de carona. Corte imóvel. Por fim, o todo, aqui, se confunde à soma de todos os conjuntos, estando o movente passando, apenas, dum plano espacial para outro, não havendo verdadeira mudança, mudança na duração. No cinema primitivo - podemos colocar esta máxima - a imagem está em movimento mas não há imagem-movimento. É contra este cinema - não cansa de atentar o Deleuze - que o Bergson tece as suas críticas.
Podemos nos perguntar, então, como a imagem-movimento se constituiu e o movimento se libertou dos elementos moventes. Duas formas: de um lado, pela mobilidade que a câmera ganhou e cedeu, de tabela, para o plano, que também torna-se móvel; por outro lado, pelo raccord, corte que designa tanto a mudança de plano quanto aos elementos de continuidade entre dois ou mais planos. Ambos os meios - formas da montagem - vêem-se obrigados a se esconder nos seus primórdios. Como bem coloca Bergson - ainda que não o tenha visto no cinema - as coisas não se definem pelo seu estado primitivo ou original, mas por uma certa tendência oculta neste estado de coisas.
Deleuze, citando L´Expérience Hérétique do Pasolini, coloca o plano como uma unidade de movimento que compreende multiplicidades que não o contradizem. Se o todo cinematográfico é um único e mesmo plano-sequência contínuo, temos, por outro lado, que as partes desse mesmo filme são planos descontínuos e sem ligação aparente. O todo renuncia a sua idealidade unitária e se torna uma síntese realizada na montagem das partes, partes estas que se coordenam, se cortam e se recortam em ligações que constituem o plano-sequência virtual, o todo analítico, o cinema.
Raccords imperceptíveis, movimentos de câmera, planos-sequência de fato. A continuidade sempre se estabelece a posteriori, o que nos mostra que o todo é de uma ordem para além dos conjuntos coordenados, sendo aquilo que impede os conjuntos de se fecharem entre si, ou mesmo de se fecharem uns com os outros. O todo surge numa dimensão que muda sem cessar. Dimensão do Aberto que escapa aos conjuntos e seus elementos. Um extracampo impossível de se filmar. O recorte, longe de romper o todo, são o ato do mesmo, que atravessa os conjuntos e suas partes que, num movimento inverso, reúnem-se num todo para além deles...
DELEUZE, Gilles; Quadro e plano, enquadramento e decupagem; In: Cinema 1 - a imagem-movimento; Trad. Stella Senra; Editora Brasiliense; 1983 [original]; pp. 22-43.

Nenhum comentário: