sábado, 31 de julho de 2010

Um-outreidade: o barroco e eu

Dando continuidade à discussão iniciada no post anterior, puxo um outro exemplo para que a imagem do um-outro fique melhor lapidada, ao mesmo tempo em que preparo a casa para a vinda dum post futuro, sobre o que é que se faz disso tudo. Se, antes, apresentei dois personagens ficcionais para ilustrar o conceito, conto agora uma experiência pela qual estou atravessando: o embate violento e sanguinário entre a minha pacífica pessoa e o dragão hermético que é a música barroca. Rufem os tímpanos!
Barroco quer dizer "disforme", diz o dicionário. Esse termo foi usado, até meados do século XIX, para nomear - pejorativamente - as formas artísticas por demais carregadas, ornamentadas, incrementadas e cheias de fru-fru. Foi idéia do povo moderno tranformar o palavrão num conceito e aplicá-lo a uma coordenada temporal específica, caracterizada por sua estilística rebuscada. O Barroco musical - demarcação de historiador - nasce com o surgimento da ópera e do oratório, no começo dos anos 1600, e falece juntamente com Händel e Bach, em 1750.
Muito estudei para escrever sobre o Barroco. Visitei inúmeros sites e li diversos livros para a empreitada... Tá, tudo bem! Fui na Wikipédia e folheei uma modesta enciclopédia sobre história da música, confesso. No entanto, mesmo me articulando, apenas, com estas duas fontes, obtive uma quantidade incrível de conteúdos desejosos de serem passados adiante: a divisão sócio-política do século XVII e como a arte barroca se distinguia duma classe a outra; a influência do racionalismo científico na música da época; as inovações musicais do Barroco, como o baixo contínuo e o conceito de tonalidade; a importância da música instrumental e suas novas formas, como a sonata, a suíte, a fuga e o concerto; o investimento em instrumentos de boa capacidade melódica, como o violino e o cravo; a aparição de novos personagens no cenário musical, como o virtuose, o luthier, o castrati, o mecenas. E isto sem mencionar as já manjadas contradições típicas do espírito barroco, verdadeiras relações um-outro: o piano e o forte, o solista e a orquestra, a letra e a música, o vocal e o instrumental, o religioso e o profano, o lento e o rápido, o sério e o bufo. Cada um dos tópicos renderia escritos e mais escritos! Como estou mais preguiçoso que o de costume não detalharei nada disso. Importância não implica obrigatoreidade, certo? Fiquemos com o necessário.
Meu exangue parágrafo não é suficiente para que os amigos construam uma imagem do Barroco, definido pelo seu rigor e prolixidade. Aos mais animados, sugiro uma pesquisa: Monteverdi, Scarlatti, Albinoni, Vivaldi, Bach, Telemann, Purcell, Händel, Couperin. Escolham - ao menos! - dois dos senhores listados e façam uma viagem por algumas composições. Aos mais fatigados, dou três informações: o Barroco musical não utiliza de muitos acordes, visto a harmonia ser construída pela própria melodia; o Barroco musical aposta na música conjunta - orquestras e grupos de câmara, por exemplo - em oposição aos solitários bardos renascentistas; o Barroco musical, por fim, possui um andamento rítmico bem definido e, por que não dizer, repetitivo. Pois bem!
Para os que não sabem, eu toco um pouco de violão. Mas - abro o jogo - meu instrumento preferido é o pianoforte. O violão, embora consciente do seu papel de segunda opção, mantém boas relações comigo. Tive aulas formais de piano quando guri mas, não tendo o corpulento móvel a minha disposição, preferi debandar para as cordas. Tendo pouca orientação com o novo instrumento, só pude aprender a tocar de minha própria maneira: partituras para piano, bares, classicismo italiano, chorinho, Tárrega, Baden Powell, Andres Segovia, Raphael Rabello, manuais de música, blogs especializados, amigos, paixões, bebedeiras e luais compunham um coletivo vivo a acompanhar minha solidão. Destarte! Como seria o encontro entre a aristocracia barroca e o tempo roubado dos sambas e das bossas!? Como um violão judiado e mestiço soaria uma música ariana!? Como um instrumentista solitário - acostumado a tirar e por notas, acelerar e frear compassos, repetir o que não deve e pular o que não curte - encararia um estilo pontual, formal e grupal!? E é esse o encontro um-outro do escrito: eu e o barroco.
Montei com uns amigos, a alguns meses atrás, um projeto musical. Coisa nova em minha estética, visto sempre ter recusado convites para tocar em conjunto. A música era coisa muito séria a mim e, por isto mesmo, não deveria ser formalizada em grupos, estilos ou apresentações. Seriedade, ma non troppo. Coisa de misantropo, ao que parece. Ou de apaixonado, o que é quase a mesma coisa! E mesmo sacando a pegada das músicas, tendo as partituras em mãos e treinando com afinco cada uma delas, eu não me desempenhava tão bem durante os ensaios coletivos quanto nas dedilhadas em isolado. Mesmo apresentações simples para alguns amigos não pareciam tão gloriosas quanto os meus toques, quando estou só. Foi nessa experiência que resolvi marcar um encontro com o Barroco e ver no que este esbarrão resultaria.
Recapitulando. A música barroca constrói a harmonia - Dó com sétima aumentada, Lá com Nona, Si diminuto, Mi menor! - não com acordes, mas no andamento da própria melodia; visa - sendo geral - grupos musicais; e possui um ritmo constante - quase matemático! - no andamento de suas composições. Pareando comigo. Um pianista frustrado que toca violão, um instrumento reconhecidamente harmônico (ainda que eu me arrisque mais na melodia); sempre exercitou sua música distante de outros musicistas (ainda que goste de ver outros tocarem); e tem mania de alterar o andamento das pautas que lê (ainda que curta a escrita das partituras). Encontro tenso. As mãos tremulam. O cabelo, em desalinho, começa a coçar. Um se irrita com a falação do outro, e o outro desgosta da retidão do um. Os corpos se incomodam. Param. Mexem-se. Sentem-se rasgar. Inferno! Mas até no inferno - adornando - ainda há algum ar para respirar. Link com o post anterior: Se o Barroco está para Chiaki, eu estou para Nodame-chan (salvo, claro, o fato da menina possuir uma ginga musical imensuravelmente superior a minha).
O encontro entre Chiaki e Nodame produziu mudanças num, noutro e no mundão relacional dos dois. Mas Chiaki-Nodame não são nem duas unidades fechadas a se influenciarem nem uma única unidade resultante da relação. Não é uma coisa - nem duas! - mas um "entre". Disse isto, no texto anterior, e o repito! Símile é a relação "entre" a minha pessoa e o Barroco. Não dois pontos individuais, mas uma rede de hecceidades. Eu, violeiro romântico, passo a serializar um pouco mais a minha música, assim como o sujeito lírico deixa de poesia e passa a prosear, intuindo ser um pouco mais compreendido pelos demais. O Barroco, referência circulante viva e independente de todos os humanos, passa a fazer parte de meu repertório e falatório, ganhando existência noutras cadeias de proposições que não as minhas ou as de um e outro erudito perdido, pelas bandas de lá. Verdadeiras negociações de guerra. Quanto mais alguém se enganou na vida, mais ele dá lições. Deleuziando! Um e outro ganham, mas não é simples aprendizagem mútua. Um-outreidade é isso aí! É encontro que não ensina, não corrige e tampouco aponta caminhos. Mas temporaliza os espaços, desinternalizando a diferença - transformando a in-diferença em afeto - entre uns e outros e colocando problemas que não devem ser solvidos por nenhuma das partes, mas pelo coletivo derivado de toda essa articulação caótica e nem um pouco ordenada entre homens e mulheres, períodos históricos e auto-didatas, teorias acadêmicas e a galera normal do nosso dia-a-dia...

domingo, 25 de julho de 2010

Nodame Cantabile

Gosto de coisas duais. Coisas duplas. Quase falsas. Não é das contradições dos românticos que falo, porque estes ou querem cobrir o mundo efervescente com o véu gelado da razão humana ou querem fazer dos afetos a potência motora de toda e qualquer eventualidade. Nem Hegel nem Freud. Talvez por isto goste tão publicamente do Bergson e começo, em segredo, a tomar afeição pelo Bachelard. Ciência, método e rigor dividindo o palco com arte, poesia e criação. Não um ou outro. Nem um e outro. Mas um outro! Ou "um-outro", para os que gostam de conceitos bonitinhos. Talvez seja nessa um-outreidade (valei-me!) que se situe meu apreço por Nodame Cantabile, um anime sobre música erudita.
E já se revela, aí, a primeira mostra de um-outreidade em Nodame Cantabile. Falas histéricas, olhos esbugalhados e reações inesperadas fazendo conjunção carnal com platéias silenciosas, ouvidos atentos e partituras. Um casamento que, numa primeira visada, teria tudo para descambar num divórcio, e sem separação de bens. Mas não! Animações e eruditismos conseguiram - como em poucas vezes - fazer um casal casadinho, casal-um-outro! E um trabalho tão bonito carrega duas personagens igualmente bricoladas, ainda que gritantemente diferentes.
Chiaki-sama e Nodame-chan. O ordeiro e a caótica. O perfeccionista e a desleixada. O maestro e a professorinha do jardim. O barroco rebuscado e o jazz desconexo. A leitura na pauta e a composição inventiva. Diferenças! E diferença, na minha escrita, não se opõe a semelhança, mas a indiferença! Vejamos. O primeiro encontro, ainda que invisível, de nossos heróis se dá na escola superior de música na qual ambos estudam. Chiaki, logo após discutir feiamente com seu orientador, começa a andar apressado pelos corredores do prédio e escuta, vindo de uma das salas de treino, o segundo movimento da sonata para piano nº 8, de Beethoven, a famosa Patética. Esse hipnotizante movimento, um Adagio Cantabile, é conhecido pelo seu ar de tranquilidade e leveza, fruto dum encontro um-outro entre o andamento pesado e moroso dos adágios e o tempo flexível e carregado de legatos das canções. A execução que Chiaki escutava, no entanto, estava interpretada em Capriccioso Cantabile. Uma Super-Canção! Saltitante, imprevisível, desordenada! Mas, mesmo desordenada, não estava errada. Isso Chiaki assumia. Era apenas um encontro outro do parido por Beethoven. Diferente!
O segundo encontro Chiaki-Nodame - que pode ser considerado um prolongamento do primeiro - se dá quando a menina Nodame, ao voltar para casa, encontra Chiaki desmaiado de bêbado à frente de sua porta. Acaba levando-o para dentro de seu apartamento; um verdadeiro aterro, principalmente quando comparado à perfeição métrica e higiênica do lar do mocinho que, por sinal, é seu vizinho. Ao acordar, Chiaki dá de cara com o corpo que deu vida a tão caprichosa interpretação da Patética, tocando a mesma bela e imprevisível canção, mar de beatitude a preencher um quarto cheio de lixo. Assustado, corre dali o mais rápido que suas pernas, bambas de ressaca, permitem.
O desenrolar da narrativa toma um caminho muito característico dos mangás shoujo: Nodame se apaixona - loucamente - por Chiaki, que pouco lhe dá bola. As situações decorrentes, porém, sempre insistem em colocá-los juntos. O que nos interessa: Chiaki, devido a um trauma de infância, não consegue viajar de avião ou navio, o que o impossibilita de ir à Europa; já Nodame, mesmo sendo dona duma pegada musical invejável, tem como sonho ser uma professorinha maternal. Ambos planejam, mas nenhum consegue caminhar. Chiaki, preso ao Japão, não pode construir sua desejada carreira de maestro e Nodame, instável e imprevisível, não conseguiria nem se dedicar ao piano erudito nem tomar conta das crianças, que tanto ama. É aí que um e outro se enlaçam.
As postagens daqui, do Sujeito, em geral querem sempre fazer uma apologia à criação, ao novo, ao imprevisto. Os visitantes usuais deste cantinho devem até estar esperando uma comparação entre o intelectivo Chiaki e a intuitiva Nodame, e como esta é superior a aquele por isto, por aquilo e por mais tantas outras coisas. Mas não! Hoje, quero falar do encontro. Chiaki-Nodame. Chiaki nada seria sem a Nodame, e a Nodame nada produziria sem o Chiaki. O arrogante Chiaki, preso a suas próprias pautas, passa a olhar para o lado humano da música, aprendendo que reger orquestras é, antes de tudo, escutar as pessoas. A maluquinha da Nodame, em contraparte, passa a escutar as referências inumanas que por aí ressoam, deixando de compor - a todo momento - em cima das músicas de outrem. Dessemelhanças que se fazem diferença! O casal não se ignora. Não se fazem unidades separadas, nem um 2 fechadinho. Mas se permitem afetar! Produção de diferença, em si e no outro. Chiaki recebe uma transfusão de vida, verdade! Mas Nodame aprende - antes de mostrar seu repertório - a escutar o que é que os outros tem a lhe dizer...

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Ouvido Absoluto e Relatividades


Numa conversa com um amigo, por esses dias, falava eu sobre a infinidade criativa da música. Ou na música. Mas enfim! Dizia que a música, assim como qualquer manifestação inventiva do homem e do mundo, possuia inesgotáveis possibilidades; meu adversário de idéias, fazendo frente a minhas discursivas apaixonadas, argumentava que as possibilidades sonoras a usarem toda a escala cromática - um sistema serial de 12 notas, que são a totalidade de sons que um instrumento temperado pode executar numa oitava - tenderiam a um fim, assim como as sequências numéricas decorrentes duma análise combinatória.
Percebo, então, que estamos usando termos diferentes, mas que respondem ao mesmo nome, em nossa prosa. Como toda criança que não sabe o que fazer num momento decisivo, trago para a conversa alguns mestres para que os mesmos falem da Matéria e da Memória, mas o resultado foi um desfile de conceitos vagos e pedantes que transformaram uma boa conversa de bar numa chata palestra de cátedra que terminou sem perguntas; não porque o falante, de seu púlpito, trouxe luz à caverna, mas porque transformou em escrita una toda a sonoridade coletiva daquele evento. O momento torna-se instante. A festa vira foto. Cometo o mesmo assassínio temporal que eu condenava durante meu discurso de acusação, o que ficará claro no decorrer da postagem. Espero!
Imaginem uma partitura em branco. E, para os que nada entendem de notação musical, tentarei ser o mais claro possível na explicação. Coloquemos a mesma em quatro por quatro. Ou seja, dentro de cada compasso da partitura teremos quatro espaços, indicados pelo numerador, sendo que cada um deles vale uma semínima, valor de duração equivalente ao 4 do denominador. Revisão puramente contextual: uma semínima dura um quarto do tempo duma semibreve, metade do tempo duma mínima, o dobro do tempo duma colcheia, o quádruplo duma semicolcheia. Paremos por aqui. Na nossa pauta, em 4/4, "cabem" 4 semínimas. Como cada semínima vale duas colcheias, poderíamos substituir as 4 semínimas por 8 colcheias. Ou por 3 semínimas e 2 colcheias. Ou 2 semínimas e 4 colcheias. Ou 1 semínima e 6 colcheias. E isto em ordens diversas: SSCCCC, SCSCCC, CCSSCC e CSCSCC são algumas das muitas possibilidades de combinação de 2 semínimas e 4 colcheias num compasso em 4/4. Reflitam.
Poderíamos substituir, dentro deste mesmo compasso, cada nota por uma pausa. Existem pausas com valores equivalentes a todas as durações, da morosa Máxima, usada nas notações antigas, à histérica Quartifusa, que vale 1/32 de semínima! Ao invés de fazer soar, então, podemos calar. Vê só! Dentro de cada valor, poderíamos tocar 12 notas (Dó, Dó sustenido, Ré, Ré sustenido, Mi, Fá, Fá sustenido, Sol, Sol sustenido, Lá, Lá sustenido e Si) ou optar por calar. 13 possibilidades. Num compasso em 4/4, ocupado apenas por valores de semínima, eu posso ter 13x13x13x13 combinações musicais. E isto num instrumento temperado de apenas uma oitava! Um violão, de três oitavas, ou um pianoforte, de sete, multiplicam os possíveis. Para os neuróticos obssessivos curiosos em levar a brincadeira adiante, façam as contagens com todas as combinações possíveis de valores, da Máxima (8t) à Quartifusa (t/128), levando em consideração as 12 notas da escala cromática e as costumeiras pausas. Eu, que sou menino, paro por aqui. Pra deixar a atmosfera menos pesada, proponho um exercício de imaginação diferente, uma viagem para outros lugares. Quatro, em especial. Um bar, um teatro, um quarto e um outro teatro.
Nogueira acorda cedo, pela seis, e começa a afinar seu cavaco. Depois dum café reforçado, separa algumas cifras e passa na casa do Joca, pra por a conversa em dia. Vão juntos, minutos depois, ao "Choro do Zé", onde costumam passar o sábado inteiro. Caixas de cerveja, uns velhos isolados no canto, cachorros bebendo a água da sarjeta. Estão lá o Paulão, o Batata, o Clóvis. Nogueira, já meio ébrio, cansa de tocar seu cavaco, vai pro violão e, desacostumado aos trastes grandes do instrumento, puxa uma música do João Bosco, que é seguida pelo Joca com seu pandeiro maroto.
Sara é violinista e mestre de concerto duma orquestra de repercussão global, mesmo sendo a mais jovem do grupo de cordas. Exigente consigo mesma, treinou duro para alcançar sua posição, visto ter nascido em família pobre e nunca ter tomado aulas. Nenhum membro da orquestra - aristocrática - sabe do seu berço. Entra no palco com seu vestido vermelho, destoante do negro pinguim usado pelo resto da orquestra; cumprimenta o maestro Vieira; olha a platéia, acomodada em suas fofas poltronas; fecha os olhos e começa a melodiar o primeiro movimento da Primavera, de Vivaldi.
Gomes é aluno de guitarra clássica e toma aulas com Seu Silva, um professor particular. Seu objetivo é adentrar num conservatório musical mas, pra isso, pretende entrar em contato com noções básicas do seu instrumento e adquirir algum manejo da teoria musical. Nervoso, tira seu violão da capa e começa a interpretar um estudo em Sol Maior do Ferdinando Carulli, em uníssono com o seu tutor - o que considera muito difícil - visto sua interpretação ser bem diferente do toque rubatado de Seu Silva.
Luís entra no palco e ruma ao piano. Recebe uma salva de palmas. Pretende tocar Villa-Lobos em sua apresentação do festival Avant-garde de música moderna mas, como uma surpresa de abertura para a platéia, interpreta 4´33´´, do John Cage, permanecendo quatro minutos e meio em posição de ataque, mas em completo silêncio durante toda a execução da obra.
O que aprendemos com Nogueira, Sara, Gomes e Luís? Só um tolo não perceberia que a música do Nogueira e o Choro do Zé são unha e carne. Que o Prada escarlate e a infância pobre de Sara é que matizam as cordas do seu violino. Que Gomes e Seu Silva, mesmo tocando a mesma música, tocam músicas diferentes. Que Luís não está em silêncio, pois o ruído dos pigarros e sussuros no teatro é que fizeram música, diria o chinês! A partitura, tecnologia de inteligência, não abarca a história. Transforma em sucessão de sons e silêncios o que é, em verdade, uma coexistência de eventos. As desculpas intelectuais: se Nogueira e Joca percussionam diversamente das valsas bem compassadas, diz-se então que estão a sincopar; Sara, persistente, aprendeu a arte do violino mesmo em condições adversas a tal; Gomes e Seu Silva tocam a mesma música, mas com expressividades diferentes; e John Cage é um experimentalista idiota!
Se partirmos da escrita musical, numa pauta, estaremos corretos em comparar a música a uma sequência numérica. Compreensível. Mas seria o mesmo que afirmar, numa analogia, que todo o pensamento já está pré-colocado e destinado a um fim, visto só possuirmos 26 letras para combinar em palavras soantes. A atividade musical, sempre eventual, só atingirá seu fim quando cessar as relações que possibilitam essa criatividade coletiva de homens, mulheres, roupas de grife, cerva gelada, teatros silenciosos, platéias sibilantes, quartos escuros, violões desafinados. A música não como sons que se sucedem, mas como mundos que se agenciam. Sejam as dobras musicais que a história tão bem delineou - Barrocos, Românticos, Impressionistas - sejam as esquinas escuras que, pintadas de povo, camuflam-se dos registros intelectuais...
P.S.: E eu nem entrei nos méritos da música microtonal. Fica pra uma próxima...

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Ethos

  • Tá! Começo puxando o Bauman e aquele lance da conduta moral que ele pega do Levinas. Como era, mesmo!? O paradoxo em se falar duma necessidade da moral, a morte da ética quando pedimos por argumentos para justificá-la – palavra com muitos sentidos! Tenho que trabalhar isso, no texto – e o des-propósito da moral, visto ser a mesma uma manifestação criativa típica da humanidade. Depois, articulo isso com a Beatriz Sarlo e a idéia do colecionador às avessas, que ela traz. Ué, cadê!? Não tô encontrando! Devia ter marcado a página. Merda! Enfim, depois procuro isso. Cadê meu rascunho? Aqui! O colecionador às avessas não deseja objetos, mas atos de compra-e-venda. Pronto! E isso, eu ligo com a Heliana Conde e sua proposta duma narrativa eventual, que ela constrói usando o Foucault, que constrói seu trabalho usado o Nietzsche. Demolir os castelos da metafísica e deter-se nos bairros baixos e singulares. Bonito, isso! Heliana-Foucault-Nietzche! Não, apaga, apaga! Peraí! Essa idéia de eventualização – ou seria melhor citar em francês, mesmo? Événementialisation! Nada, é pedante demais! – eu poderia ligar com a temporalidade suspensa dos Shoppings Centers, que a Beatriz comenta. E, falando em tempo, acho que uma pitadinha de Bergson no trabalho não fará mal. Isso! Genial! E, pra ligar o menino ao Bauman, eu posso usar uns parágrafos da Hanna Arendt sobre política, já que ela tem um pézinho na fenomenologia do Heidegger. Sempre quis parear Bergson e Heidegger! E aqui, nesta parte, a Beatriz fala da identidade transitória do ato de consumo e de como os objetos nos significam. Dá pra puxar os não-humanos do Bruno Latour e falar da política de intercessores do Deleuze, também! Mas eu penso, penso, penso e penso mais um pouco. Aaah! Quanto mais eu penso, menos consigo escrever! Não fiz nada, até agora, e o trabalho é pra ser entregue próxima semana! Fodeu, velho! Nem uma gotinha sequer de tinta consigo espremer das minhas penas. Consegui juntar esse monte de gente, que é o mais difícil, mas não consigo escrever nada! Céus!!!

  • Monte de gente!? Você ficou trancado em casa o final de semana inteiro. E sozinho! Bebeu!? Ou endoidou de tanto estudar?

  • Nada! Tenho um ensaio sobre ética pra entregar e, mesmo com boas idéias – porque eu as tenho! – não consigo preparar nada que seja bacana.

  • Vai fazer uma outra coisa, então, e esfria a cabeça. Como comprar pão, por exemplo. Acabei de preparar um café, mas percebi que o pão de ontem acabou. Vai lá na padaria, pra mim.

  • Posso, não! Tenho de acabar o trabalho e, logo mais, encaminhar outros problemas da universidade, mulher.

  • Tá bem, “homem”, mas você acabou de dizer que não consegue produzir coisa alguma. Além disso, comprar pão é mais importante que escrever seu trabalho, não!?

  • Claro que não! É um trabalho sobre Ética, com “E” maiúsculo! Que pode ser mais importante que isso? Volta a assistir o William Bonner e me deixa terminar o escrito.

  • Começar”, você quis dizer. Enfim... O Jornal tá pior que o de costume, hoje! Metade das notícias é sobre aquele goleiro do Flamengo. É Bruno pra cá, Bruno pra lá... E olha que as eleições já estão aí!

  • E qual o problema?

  • Como assim, “qual o problema”!? Um Jornal que se diz Nacional, vê se pode!

  • Mas o Bruno é uma figura pública. Não vejo nada demais, nisso...

  • O Bruno é uma figura célebre, bem. Não pública! Figura pública é um outra coisa, atrelada e articulada com os processos políticos, com os movimentos que interessam à nação e seus habitantes!

  • De qualquer maneira, ele é popular!

  • Também não! O que é popular vem do povo. Cria e se cria no povo, no meio das gentes.

  • Lá vem...

  • Tá! Se não quer conversar, não conversa. Mas vai comprar o pão, ao menos!?

  • Já disse que não posso! Tô escrevendo!

  • Então, me mostra o que você já escreveu.

  • Sacanagem, isso. Você sabe que ainda não escrevi nada!

  • Mostra os rascunhos, ao menos. Deixa eu ver... Bauman... Levinas... Hum... Certo. Heliana Conde... Foucault... Mais Foucault...Huhum... Hum...

  • E aí!? Que achou?

  • Bonito.

  • Legal a proposta, né!?

  • Não disse “legal”. Disse “bonito”. Você pegou um monte de cores diferentes, esparramou numa tela, deu um formato reconhecível e apreciável... Uma obra de arte! Mas daí você pendura na parede dum museu, junto com outros quadros pintados, por você ou não, que seja. Um dia, alguém entra no museu, por acidente ou não, que seja, e dá de cara com sua tela. Olha, entende, gosta e, depois de comentar com os colegas ao lado sobre a pintura, vai pra casa, viver a sua vida. Acho eu que você deva gastar sua tinta com coisas mais urgentes. Nossa casa anda precisando duma mão, por exemplo.

  • Nunca entendo as suas histórias... Como assim?

  • Pão! Não temos pão. E você não está fazendo nada, agora.

  • Essa sua conversa já tá me dando raiva...

  • Minha, não! Nossa! E ela já está me dando é fome. Meu caso é pior! Como é que é aquela música do João Bosco, mesmo!? Aquela, do ronco da cuica...

  • Tá, tá! Algo mais?

  • Claro que sim, amor. Vamos falar sério. Esse Bergson já encheu, né!?

  • É o quê!? Tá fumada!? O Bergson, mesmo tendo nascido a mais de 100 anos atrás, continua atualíssimo! Escrevia sobre cinema, matemática, relatividade restrita, neuropsicologia, bioética... Ouxe! Com 23 anos, já era professor dum Liceu, minha amiga! A tese de doutorado do cara é referência para a filosofia vitalista, até hoje! Era diplomata, também, e interviu diretamente na Primeira Guerra! Resolveu um dos grandes problemas de Pascal! Ganhou um Nobel! Era amigo de William James! Era casado com a prima de Marcel Proust!

  • Ei, ei, ei! Calma, aí! Nem é disso que se trata. Não quero saber se as bolas dele são maiores do que as suas. O que eu tentei dizer mas você não deixou – como sempre! – é que, não importando o assunto, seja ciência, religião, a copa do mundo, cerveja, uma receita de macarronada, enfim, você sempre arruma um jeito de tascar o Bergson na conversa. Seu pensamento é invertido!

  • Hein?

  • É. Você não pega uma experiência e, dela, tira um discurso; mas parte do blá-blá-blá da teoria e tenta colocar as coisas dentro dela. É o que eu sempre achei engraçado no Platão. A vida só faz sentido quando ela corresponde a uma idéia! Tosco demais, pra mim. Você começa do fim, do céu, mas nunca termina no chão. Como o Platão e o Bonner.

  • Entendi, de começo, mas agora voei! Como que o William Bonner entrou na conversa?

  • Hoje, mesmo, ele só falou do Bruno e do gorro da Fátima. Uma tragédia e uma comédia. E eu com isso!? Mas não! Eu querendo saber de Dilma e Serra, e o que eu recebia eram notícias dum tal polvo que sempre acertava o placar dos jogos. Azar dele, que não participou de bolão! Você, que é psicólogo, deve se empolgar ao ver que questões individuais suscitam mais interesse que os assuntos coletivos. Não entendo isso!

  • O Sennet dedica um livro só pra isso. Posso arrumar um exemplar pra você, se quiser. Mas não mudemos de assunto. Tenho um trabalho a terminar e...

  • A começar”!

  • Que seja! Vai me ajudar a construir o trabalho ou vai ficar aí, falando e falando e falando?

  • O especialista em monólogos, aqui, é você, bem.

  • Como disse?

  • Você, como todo intelectual, não sabe conversar. É você que fica falando e falando e falando! Seu adversário de idéias se dá por vencido, muitas vezes, não porque você foi convincente ao trazer realidades pra ele, mas porque sua fala se torna um desfile de conceitos, autores e teorias que acaba levando o ouvinte à exaustão.

  • !…

  • Nem faça essa cara, porra! Você sabe que é verdade. Aliás, acho que você não consegue tocar seu trabalho pra frente porque, mesmo no meio de muitos, você sempre se faz sozinho. É Deus, você!

  • Como assim, sozinho!? Estou cercado de autores, de livros, de...

  • De homens e coisas? Humanos e não-humanos? Invocar o Lévy e o Latour não vai te livrar dessa. Você se cerca de outros deuses, mas nada de carne e de sangue perto de você. Prova disso é que, sem carne nem sangue, não há comunhão nem pão!

  • Isso não foi um argumento, foi!?

  • Não! Mas foi um trocadilho bonito, diz aí!

  • Já entendi. Deixa que vou comprar o pão! Afinal, até Arquimedes precisou descansar e deixar o trabalho de lado pra pôr termo em seu problema.

  • Esse aí insiste em convidar pra festa quem não tem nada a ver com ela. Até grego aparece; eu, hein!? Enfim... Aproveita e traz leite!

  • Peraí...

  • Que foi, agora?

  • Já que é pra falar duma experiência que me afeta, posso falar sobre essa nossa conversa. Falar sobre o pão, veja só!

  • Interessante! Mas não vejo como essa discussão – que é muito ética, pra mim e pra você – possa interessar outros que não estão aqui, com a gente.

  • Ora! Eu vou à padaria, falo com o seu Joaquim, troco umas palavras com os clientes, escuto suas conversas, vejo o que está sendo vendido e comprado... Daí, volto pra casa e escrevo uma narrativa sobre os modos de se fazer pão na pós-modernidade! Que acha?

  • Francês demais pro meu paladar!

  • Uma pesquisa etnográfica de longa duração, então! Como tenho de entregar o trabalho, logo agora, preparo o projeto da pesquisa como trabalho da disciplina. Mas me comprometo a fazer uma observação participante, durante um ano, sobre o trabalho nas padarias. Posso coletar informações sobre os diferentes tipos de pães; quem são os principais fornecedores de ingredientes, na região; tirar fotos dos consumidores...

  • Aí já é um texto pra inglês ler, amor! Informação que não acaba mais. Você publica um amontoado de respostas para uma pergunta que não faz muito sentido pra ninguém, além de você.

  • Olha o Bergson aí, de novo!

  • Que cara é essa!?

  • Não falo mais nada...

  • Tá bom, tá bom. Parece que o jeito é voltar para o quarto, me trancar, e escrever um ensaio simples. Mas, como a idéia é boa – e sempre é! – pode virar artigo. Ou um livro. Ou um tratado em três volumes! Já tenho até nome: “O Pão Ázimo como Possibilidade Fenomênica para o Espírito Constitutivo do Ser”!

  • ...

  • Que cara é essa!?

  • Vou te bater!

  • Pois! Quando, finalmente, encaminho meu trabalho, você reclama!?

  • Doido, você não é alemão no inverno pra ficar trancafiado em casa. Vê só, você me preparou um Blanquette de veau com vinho Rosé, um Flan de Chocolate com creme e uma Kartoffelsalat com cerveja. Mas um cafézinho com pão que é bom, nada!

  • E eu é que levo a fama por esnobar vocabulário. Além do mais, como dizem os filósofos analíticos, só usamos metáforas quando não sabemos do que estamos falando.

  • Não são esses mesmos analíticos que dizem que o seu Bergson não faz filosofia?

  • Er... Bom... Vou logo na padaria, senão não pego pão fresco.

  • E leite!

  • Tá certo, mas... Você tolheu todas as idéias que eu tinha para a confecção do ensaio. Faço o que, agora!?

  • Não sou eu que tenho de responder. Essa ética, daí, não é filha nossa.

  • Francês... Inglês... Alemão... Tenho de fazer uma filosofia à brasileira, é isso?

  • Rapaz... O Jackson do Pandeiro cantava uma música que era bem isso. Mas acho que não é nem dele. Enfim! Você quer fazer um samba-rock, mas o boogie-woogie passa longe do pandeiro e do violão. Essa sua filosofia à brasileira tá mais pra um chiclete com banana que qualquer outra coisa.

  • Eu tenho que tão somente sambar, então?

  • Não, porque o samba só interessa pra quem tá na batucada.

  • Mas ir na onda do Tio Sam também não seria muito adequado...

  • Verdade! Acho que é nesse espaço do meio, bem aí, que você devia trabalhar. Nem gringo nem bairrista. Acredito que seu trabalho deva ser fazer – escrevendo ou não – um problema seu ganhar um sentido para os outros, e não tacar respostas e mais respostas para uma problemática que nem existe no mundão lá fora. Coloque o problema e deixe que as respostas – sempre no plural! – surjam; não por geração espontânea, mas como um trabalho coletivo. Não sei se isto daria um trabalho sobre Ética – com “E” maiúsculo, como você diz - mas daria um trabalho ético.

  • ...

  • Que foi!?

  • E eu vou falar mais o quê, depois disso? Foda, viu!? Só posso é xingar, porque palavra nenhuma cabe mais...

  • Fica assim não, fio. Escreve um ensaio com o conteúdo da nossa conversa e entrega como trabalho final da disciplina. Missão completa!

  • Não posso escrever sobre isso. Não agora.

  • Então... Ah, sei lá. Escreve um conto, querido.

  • Você mesmo disse que sou um especialista em monólogos.

  • Mas também é muito bom em guiar uma conversa pra conclusão que você deseja. Seu ponto final vem sempre antes dos predicados e sujeitos.

  • Isso não foi um elogio, foi!?

  • Não! Mas eu te amo, ainda assim, bem.

  • Saco... Vou comprar o pão, agora...

  • Amor!

  • Oi!?

  • Não esquece o leite...

domingo, 11 de julho de 2010

La pensée 68

Um francês, um inglês e um alemão foram encarregados de fazer um estudo sobre o camelo.

O francês foi ao zoológico, onde passou cerca de meia hora. Interrogou o funcionário, jogou um pão pro camelo, cutucou-o com a ponta de seu guarda-chuva e, quando voltou para casa, escreveu para o seu jornal um artigo cheio de tiradas picantes e espirituosas.

O inglês, com um material de acampamento, montou uma tenda em um país do Oriente e trouxe, depois de uma estadia de dois ou três anos, um grosso volume cheio de fatos fora de ordem e sem conclusão, mas de um real valor documental.

Quanto ao alemão, cheio de desprezo pela frivolidade do francês e pela ausência de idéias gerais do inglês, se fechou no seu quarto para redigir uma obra em vários volumes intitulada A idéia do camelo a partir da concepção do eu.