sábado, 7 de setembro de 2013

A textura do ser II

Uma nota de esclarecimento acerca do texto anterior.

Já é lugar comum, para mim, equivaler vida e movimento. Pensar a mudança de temperatura como uma passagem do calor ao frio, ou a mudança política como a passagem duma ditadura militar a uma república democrática, em exemplo, ou uma mudança de personalidade do sujeito como a passagem dum estado de timidez ao estado de extroversão, como se a mudança equivalesse a uma sucessão de estados, de blocos, de imobilidades que permanecem idênticas a si mesmas durante todo o tempo em que duram, pensar a mudança nestes termos é ignorar que a vida - repito até a exaustão - não muda, não se move, mas é, ela mesma, mudança e movimento. O post anterior consiste essencialmente nisto: a denúncia do pensamento que é simples "cinema da consciência", simples sucessão de imóveis, e a sua substituição por um pensamento que é a tensão dos/nos espaços já dados. Uma vida que é ela mesma movimento demanda não "escolhas", mas "balizamento de tensões"; a política, por exemplo, não se resumiria à escolha nem da direita nem duma esquerda (ambos espaços constituídos, ambos tecnologias políticas já engendradas), mas a uma estratégia de movimento que se constitui através desses espaços, uma estratégia que assume - para além do verdadeiro e do falso desses espaços - o real de ambos, atravessando ambos, mobilizando ambos e traindo a estrutura programática de ambos. Essa lida com o pensamento e com as coisas pode dar a entender que todas as dualidades com que lidamos podem ser "tensionadas", como se uma fosse o oposto especular da outra; tensionar o dualismo Deus-Homem é uma coisa, muito semelhante ao dualismo Sujeito-Objeto, já que os pólos desses dualismos são um a sombra do outro. Mas existem dualismos que não operam este jogo do ser com o não-ser, dualismos que não são opostos especulares, mas falsos dualismos. Usar desta estratégia de pensamento para "ficar em cima do muro" e não escolher "nem esquerda nem direita", argumentando "neutralidade", é a coisa mais nefasta que se poderia realizar com a política (e com o pensamento), é esquecer que o grito de "sem partido", a despeito de ser uma crítica para mim muito cara à noção de representação, é o grito do ditador militar, do abolidor do posicionamento político, do Grande Irmão efetivado, de Pilatos (o que "lava as mãos"). Tensionar dualidades e recolocar problemas só funciona com opostos especulares, friso. O pensamento esquerda-direita só merece ser tensionado quando por esquerda e por direita entendemos agendas políticas que são apenas os pólos de um mesmo espectro político. Se por "esquerda" entendermos, ao invés, uma postura política que vise abolir as diferenças de classe (burguês-proletário, plutonomia-precariado) e a exploração social decorrentes delas - e isto independente de filiação partidária, cargos ocupados, funções exercidas etc. - então "esquerda" não é mais o não-ser da direita, mas a própria subversão deste esquema (e dos dualismos que ele coloca, incluindo a esquerda burocratizada). A luta por espaço e pelos direitos homoafetivos e a homofobia também são um falso dualismo ser/não-ser, já que um consiste na luta contra a heteronormatividade e as violências física e simbólica decorrentes desta, e o outro é uma força reacionária de abuso e de violência. O mesmo se dá com os esforços de promoção de culturas locais e o preconceito regional, a promoção de cultura étnica e o racismo (a "neutralidade", aqui, é a cultura de todos = cultura sem cor = cultura "branca"). Idem para o feminismo (movimento social para o reconhecimento de direitos e capacidades do feminino) e o machismo (violência socialmente aceita contra a mulher). Abster-se de cair nos erros do pensamento não deve suspender nossa tomada de posições e ação; abster-se de "escolher" não equivale - talvez só de longe - à suspensão da responsabilidade e de suas tensões.

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