segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Guerras frias

G. Orwell dispõe a sua análise em tom profético, mas sua análise vai mui além do simples prenúncio de uma "sociedade da vigilância" porvindoura: se a teletela olha e zela, não é para, simplesmente, vigiar; a vigilância ensina a autodisciplina, que se torna aprendizado, que só torna hábito, que se torna instinto, entranhas, intestinos; o controle do passado não é simplesmente o controle dos registros documentais, mas a destruição da memória, deixada ao léu para usufruto da primeira fileira do Partido. Se o passado mora nos documentos e na memória, basta controlar os registros documentais e abolir o exercício da memória. Tudo, assim, estará consumado. Essa disciplina produz um sujeito psicológico, interiorizado, mas um sujeito sem memória, um sujeito cuja memória é, agora, apenas o receptáculo de lembranças vazias, meros dados informativos que ajudam esse sujeito a responder às demandas do Grande Irmão e do alto escalão do "Socing", sem pestanejar, ou nem mesmo refletir sobre o que faz.

Ora, esse problema da diferença formal na política e do papel do povo na sua relação com os demagogos e os dirigentes da cidade é, justamente, o motor de boa parte da literatura grega do século V-IV a.C., em especial da filosofia platônica, uma filosofia tópica que resolve à sua maneira a questão do demos expurgando o próprio demos da política, e criando uma república que se define, justamente, por ser a negação da democracia e a harmonia entre as novas classes, agora legitimadas em zonas da verdade e da alma que a carrega (o filósofo gestor, o policial e o trabalhador); a Utopia de Thomas More vai na mesma esteira mas, ao colocar que a sociedade perfeita já existe numa ilha longínqua, coloca também indiretamente que a sua realização não depende do futuro, de um "desenvolvimento histórico" ou do passar do tempo, mas de um "distanciamento no espaço", um distanciamento das formas (visto que as condições para a sua efetivação já existem, sempre existiram); Orwell empreende um esforço atópico e anti-utópico (distópico) e cria um cenário pós-industrial no qual a fome, a guerra, o sofrimento físico e a exploração social não fazem mais sentido, não precisam mais existir, mas existem. Por que? Pois o poder do soberano foi substituído por um poder difuso, um poder que não tem lugar e cabeça privilegiadas, um poder sem poderoso (as figuras do poder estão ali, principalmente, para nos desviar o olhar das malhas e circuitos do poder). Como manter a desigualdade formal entre os homens? Está aí o porquê da guerra moderna: queimar o excedente de produção e direcionar o trabalho numa sociedade que, em tese, já deixou de colocar como necessária a diferença formal entre as pessoas (e a exploração material, mental e espiritual dela decorrente). 

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Se colocamos Obama como um novo G. W. Bush, e se equivalemos a invasão da Síria com a guerra no Iraque, ainda não nos instalamos no núcleo duro da coisa: a guerra no Iraque era uma guerra pelo petróleo e pelo financiamento da indústria bélica (que, num círculo nada virtuoso, sempre financiou as campanhas dos Bush); a invasão da Síria, apesar de igualmente descabida, é diferentemente problemática, já que mobiliza questões mais sutis. A invasão do Iraque é mais facilmente atribuída aos governantes, aos sujeitos no poder (o poder entendido como exercício de um indivíduo soberano); a invasão à Síria, porém, é a denúncia de um sistema de governo que se governa independente das propostas e posturas políticas de quem ocupa os cargos de gestão. O escândalo do NSA está aí para reforçar essa hipótese. A manutenção de Guantanamo idem. O que estamos reaprendendo com a tal da invasão à Síria pela OTAN? Aprendemos que um Nobel da Paz pode promover uma guerra; que, com um e outro rearranjo geopolítico, e com uma e outra mudança de pauta midiática, o sujeito que ontem era "presidente" hoje é "ditador"; que uma invasão pode ser chamada de "humanitária", no caso do invadido ser um alvo frágil (ainda que Rússia, China e Irã se manifestem contra a invasão) e no caso da invasão ela mesma ser apoiada por uma causa frágil (o tal do "syrians killed syrians; so now we must kill syrians to stop syrians from killing syrians"); que os fiscais da ONU encontrarem (opção 1) ou não (opção 2) algum indício que corrobore a hipótese que sustente a invasão (uso de gás, ou não) não é uma variável levada em consideração pelos dirigentes; que - esta é boa - qualquer país médio-oriental, africano ou latino-americano, a despeito de sempre ser uma colcha pluralíssima de retalhos culturais, linguísticos e religiosos, são sempre pensados como um território coeso, coerente e unificado; mais além, cada um desses (os médio-orientais, os africanos, os latinos) são sempre pensados como "uma coisa só", como "farinha do mesmo saco"; mas, principalmente, aprendemos que a Guerra Fria perdeu suas maiúsculas e pluralizou ("guerras frias"), tornando-se a norma da guerra, revelando que a natureza e o objetivo da guerra moderna é menos uma luta por pautas concretas que uma performance para evidenciar territórios (não mais restritos ao espaço) e reforçar alianças, num esforço de manutenção das forças políticas em seu estado atual por toda a extensão do espaço e do tempo. Um império sem fim.

Orwell estava certo.

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Um comentário:

zakpaddock disse...

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