terça-feira, 3 de setembro de 2013

A textura do ser

A escrita é uma tentativa do espírito em dar substância a si mesmo. 

Esta demanda espiritual, no entanto, aparece quase sempre atrelada a uma encomenda institucional - à título de exemplo, a escrita acadêmica.

O escritório academicista é um diário de bordo, no que toca à sua tentativa de acompanhar e apontar para o desenrolar do pensamento, e isto tanto nas ciências mais duras quanto nas humanidades, e em ambas tal pensamento sempre vem codificado numa linguagem específica, usa de tais ou quais termos, filia-se a referenciais, padroniza procedimentos metodológicos, cria protocolos de editoração.

O escritor, porém, aquele mesmo que tenta verter seu espírito em textura, em texto, sabe que há uma incompatibilidade radical, fundamental, entre o que escreve e a realidade espiritual que lhe atravessa, um abismo ainda mais colossal que entre o representante e o representado, a pintura e o modelo, o sujeito e o objeto, o Estado de Direitos e a Sociedade Civil, a Universidade e a comunidade, a ciência e a profissão, a natureza e a cultura, o público e o privado, ou qualquer outro binarismo que coloque, automaticamente, o problema de como os dois pólos podem, da maneira mais adequada possível, se mediar; tais problemas produzem soluções diversas: o racionalista é aquele resolve o problema sujeito-objeto colocando a mente como uma substância pensante que representa a realidade; o neoliberal é aquele que postula que o Estado deve intervir o mínimo possível (como um mal necessário) nas relações econômicas dos indivíduos que compõem a sociedade; o impressionista é aquele que primeiro desiste de tentar pintar a realidade tal qual uma fotografia. Qual seja, o dito de que "o pensamento não cabe na escrita" é ainda insuficiente diante desse abismo, dessa diferença de natureza entre o ser e o não-ser, e ignora que as discussões possíveis entre um e outro destes dualismos pendulares jogam com o ontos e o seu contrário radical. A escrita do pensamento, escrita-pensamento, escrita-textura, não pode ser a representação do pensamento, do espírito, não pode querer sanar este problema que nunca foi posto pelo espírito. Saber se é Deus que se revela, gratuitamente, ao homem (Agostinho), ou se é o homem que se santifica, asceticamente, para Deus (Pelágio) é querela inútil: Deus é o não-homem, Homem é o não-Deus, e se ambos os termos são postos é para, justamente, nunca se encontrarem. Os dualismos acima citados também merecem ser recolocados.

Pensar os problemas em termos representacionais, em termos de "relações possíveis", é jogar ao mesmo tempo com termos e com a negação destes termos. Aprendemos com Sócrates a necessidade do questionamento para o exercício de uma vida digna de ser vivida, escutamos de Platão o quanto era importante fundar e indexar o discurso político ao discurso verdadeiro, vimos com Aristóteles a ética, a política e o conhecimento sendo colocados em lógica formal, mas em geral jogamos no fosso do esquecimento pré-socrático as mais antigas e preciosas lições de Parmênides, a da identidade do ser consigo mesmo. Dizer que "o que é, é" e que "o que não é, não é" nos parece, hoje, muito óbvio, mas é com esta sentença que o eleata estabelece que o ser é tudo aquilo que pode ser pensado - logo, é pensamento; e que o pensamento se articula via linguagem - logo, é palavra: a identidade do ser consigo mesmo, com o pensamento e com a linguagem é o logos, este entendido como a relação circular (a forma grega da perfeição) entre ser, pensar e dizer. Dizer o pensamento do Ser, ou dizer o pensamento, ou simplesmente dizer, ou pensar, ou ser - a parte final da grande maestria de Parmênides - exclui radicalmente o não-ser, aquilo que, por definição, não pode ser pensado. Platão, em seu Sofista, resolve o problema do não-ser entendendo-o como diferença (o não-ser não equivaleria ao nada, à ausência de pensamento, mas apenas ao que não é um algo específico; o não-vermelho não é o nada, mas é o laranja, o amarelo, o verde, o azul); mas, ao aprimorar o grau de precisão lógica da discussão num nível que Parmênides não foi capaz, Platão transforma um problema ontológico, um problema sobre o ser das coisas, sobre a ecceidade das coisas, numa discussão metodológica, numa determinação dos gêneros do ser, numa delimitação das coisas; mais além, esse deslocamento platônico faz a ontologia equivaler, na sua filosofia, a uma metafísica do eidos, da idea, que, ao invés de pensar "o que faz da coisa uma coisa ao invés de uma não-coisa", serve apenas como pano-de-fundo que justifica os seus próprios conceitos e transforma a questão sobre o ser em teoria do conhecimento, a ontologia em epistemologia ("o que faz da coisa uma coisa ao invés de outra coisa?").

Vislumbramos, aí, que quanto menos nos preocupamos com o ser, com aquilo que substancializa as coisas, melhor lidamos com as coisas; fazendo a reversal, no entanto, quanto mais nos preocupamos em manusear as coisas, menos sabemos onde estamos nos metendo, que tipo de jogos estamos a operar, que programas estamos materializando.

O Homem é o não-ser de Deus (e vice-versa), o objeto é o não-ser do sujeito (e vice-versa), a Sociedade Civil é o não-ser do Estado de Direitos (e vice-versa), cada uma dessas dualidades sendo o fenômeno duma multiplicidade, duma contextura. Deus-Homem é Igreja, sacrifício, sacramentos, sacerdócio, pecado, comunidade, inferno; Sujeito-Objeto é ciência, metodologia, procedimento de pesquisa, matematização do real, academias, laboratórios; Sociedade-Estado é parlamento, eleição, sindicato, prefeito, código jurídico, instituições normativas. Tomá-los ambos por realidades óbvias e tentar pensar a mediação de um para com o outro é, no limite, colocar num mesmo plano o pensamento com o não-pensamento, o dizer com o não-dizer, é não pensar coisa alguma, é não dizer coisa com coisa (e sim coisa com não-coisa).

O que o projeto fenomenológico nos traz mais de dois milênios depois é, genialmente, a suspensão da questão sobre a ponte absolutamente segura entre os pólos sujeito-objeto (mas que poderia ser qualquer uma das dualidades elencadas anteriormente, e outras), entendidos como constitutivos um do outro (a consciência se volta para o objeto, e o objeto se dá para uma consciência); a primazia não é de A ou de B (o não-A), mas da relação ela mesma. O vitalismo bergsonista atesta, a seu modo e em consonância com E. Husserl, que todo problema posto em termos de "representação" (um método que garantirá a união segura do sujeito e do objeto, sacramentos que garantirão a união estável entre Deus e o Homem, propostas parlamentares que poderão responder perfeitamente às demandas da sociedade etc.) é mal colocado de antemão, já que mobiliza conceitos que não possuem um correlato no real, nas práticas reais, nas "articulações" do real: em Matéria e Memória, H. Bergson encaminha o dualismo sujeito-objeto (mas que poderia ser qualquer uma das dualidades elencadas anteriormente, e outras) assumindo uma postura a meio caminho entre a redução da matéria à representação que dela temos (o partido idealista) e a matéria como uma coisa nela mesma (o partido realista), ou seja, a matéria como representação e a matéria como coisa; em substituição a ambas, Bergson propõe pensar a matéria como uma imagem entre imagens, um conjunto de imagens, e o sujeito, uma imagem entre outras, como uma vida psicológica que pode se manifestar em diversos tons, nuances, "alturas", por vezes mais perto da ação sobre as coisas, por vezes mais distante dela.

Forçando a barra, diríamos que Husserl suspende o dualismo do ser com o não-ser, já que um é o oposto especular do outro. Bergson vai mais além e tensiona esses opostos. Ao criar um sujeito-tendência, que tende ora para uma contração rumo ao material ora para uma dilatação de sua personalidade não mais restringida pela ação sobre a matéria, o bergsonismo cria um sujeito "falso", duplo, capaz de ocupar ambos os lados das falsas guerrilhas de trincheira colocadas pelas dicotomias mas sem se "identificar" com nenhum deles. Qual o critério decisório que dirá o lado para o qual se deve tender? Quando ser estadista e quando ser liberal? Quando afirmar-se ateu e quando afirmar-se teísta? Quando defender a submissão do pedagógico ao administrativo e quando afirmar o primado do pedagógico sobre o administrativo? Problemas postos em termos temporais, não espaciais. O tal critério não pode ser uma premissa lógica; se dissermos, por exemplo, que o critério deve ser pragmático, utilitarista, nos lembramos imediatamente que a utilidade e a ação operam um binarismo com o devaneio e a dispersão, um binarismo que ele também pode ser tensionado (quando ser pragmático? quando devanear? a recolocação do problema sujeito-objeto por Bergson, inclusive, em muito se parece com esta tensão pragmática-devaneio). A saída, repetindo, é temporal, é vital. 

Este ponto é sutil e mereceria um texto só para ele, mas fiquemos no básico: a vida, fluxo contínuo de movimentos, de sucessões, de transformações, é caracterizada pela mudança; a vida e as coisas da vida não mudam, mas são, elas mesmas, mudança; não há, desde o início, um critério de escolha pois "escolher" parte do pressuposto de que o problema se trata de selecionar duas "coisas", dois espaços, quando, temporalizados, estes espaços viram tensões; tensionar, e não escolher, é ação submissa ao movimento incessante da vida; escolher um dos lados e com ele tornar-se indivíduo, com ele identificar-se, é espacializar o tempo e brecar o fluxo da vida que, quer o sujeito queira ou não, continua a escorrer pelos espaços que construímos para barrá-la; abrir as portas para a vida é criar, é criação de vida e de matéria, de ser (e de não-ser), é a tecitura do real, é textura.

O pensamento representativo guarda pretensões divinas - Jeová cria o Mundo para o homem, e cria o homem à sua imagem e semelhança (representação), e o homem, por ser imagem e semelhança do divino, assume legítimos privilégios no jardim da vida. Entender o texto acadêmico como escritório representacionista - voltamos ao exemplo inicial - seria assumir que é a Universidade que legitima nosso pensamento, assim como Deus derramou sua Graça sobre Adão e, sem Deus, não há Graça, não há Mundo e não há Adão. Idem para o movimento social que almeja ter o seu modo-de-viver reconhecido pelo Estado e pensa que, sem o aval do governo, sua existência ainda não é legítima. Idem para o artista que, por não estar articulado aos circuitos tradicionais de promoção de cultura, pensa que o que ele faz "é só hobby". Idem para o cidadão que acredita que a política "de verdade" se faz na Tribuna, no Parlamento e no Congresso. 

A escrita acadêmica não pode querer "representar" nosso percurso de pesquisa se, por pesquisa, entendemos o desenrolar do espirito, da vida. Tensionados, o problema se recoloca. A escrita - a escrita acadêmica, mas qualquer outra escrita submetida a formalismos e burocracias, qualquer outra tecitura do real que pense em termos duais -, agora tensionada, deve ser entendida num sentido duplo: um positivo, afirmativo em relação à vida, como a oportunidade para deixar documentando um fragmento de reflexão, a oportunidade material para criar; e um negativo, no sentido de ser um requisito burocrático para a aquisição duma titulação institucional. São duas tensões que devemos balizar o tempo todo, para não cair em nenhuma delas. "Escolher" a primeira seria assumir que a escrita representa o pensamento e que as instituições acadêmicas o legitimam, que é o amém do padre que abençoa a alma do casal; cair no outro extremo seria assumir que a escrita "é só burocracia". Nenhuma das duas possibilidades produz vida.

O grande desafio reside no balizar dos dois, encarar a escrita (da vida e das coisas da vida) como um fractal, um fragmento do pensamento. É um pedaço de nós que cai e se vai, e se perde e se acha, entrelaçamento e tecitura do tempo com o formalismo espacial. Ao mesmo tempo, ao mesmíssimo tempo e num mesmo movimento, pensar o texto como textura - como balizamento entre tensões - e a vida como tecitura, como urdidura, demanda de nós uma nova postura de leitura. Já que escrever não é "representar", "ler" não mais equivale a "entender um texto", mas a tentar construir e se inserir no pensamento do qual esse texto é só um fragmento, um sinal, um "sintoma". Quando o texto se torna textura, a leitura, ler a textura, é participar desse exercício de tensionamento, de urdidura, que abole o autor, abole o sujeito do texto (e abole o objeto de entendimento do texto). O cineasta que produz áudio-visual fora do eixo de exibição e premiação demanda um espectador que não é só um olho, um receptor; o músico que compõe alheio a gravadoras e distribuidoras demanda um ouvinte que não é só um ouvido, um captador de sons óbvios e dados; o escritor que não depende de prensa e editoras demanda um leitor que não é só alfabetizado, que não é só um comprador de livros e revistas e afins. A matéria entendida como imagem, como imagem entre imagens, demanda uma nova postura frente às coisas. Ler e escrever não mais se distinguem, o intérprete e o compositor da música não mais se dissociam, consumir e produzir se equivalem. O ser e o não-ser, aqui, abandonam o lugar de questão central do pensamento, mas não pela trilha platônica, e o real, agora a contragosto de Parmênides, passa a ser um devir. Heráclito, seu adversário de ideias, seu "não-ser", já o dizia. A textura do ser, escrita-pensamento, é um fogo, é um raio. É isso, a vida.

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