segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Ingênuos e Irônicos

Depois de muito praticar a arte da procrastinação, resolvo - finalmente! - escrever sobre o Ingênuo e o Irônico; não tão somente um novo dualismo categórico, mas duas maneiras de se re-lacionar, de re-presentar, de in-comodar e ser in-comodado. Não duas tipologias psicológicas, mas duas atitudes frente à veritas e suas cristalizações.
Comecemos pelo Ingênuo, do latim ingenuu. Natural, simples, inocente. Em vernáculo clássico, o ingênuo é um sujeito puro, sem mistura de sangue plebeu. Já aqui, nas terras brasis, o indivíduo ingênuo é o filho de escrava, mas nascido depois da emancipação áurea. Já o Eironikós, grego, nunca - NUNCA! - é conterrâneo do Ingênuo. É este seu prolegômeno existencial, seu pré-requisito de aparição, sua razão-de-ser. Sarcástico, zombeteiro, interrogador. Diz sempre o contrário do que realmente pensa! O Irônico só existe em oposição - em necessária oposição - aos Ingênuos. Retomando o Ingênuo...
O seu mundo é justo, lógico e contínuo. Confia - verdadeiramente - na ordem dada. Aceita - inocentemente - a naturalidade do estabelecido. O Ingênuo acredita em sua pureza de sangue. Acredita-se, puramente, isto ou aquilo; acredita-se, puramente, fora ou dentro; acredita-se em si! O Ingênuo é sempre Católico, Barroco, Aristotélico, Budista, Romântico, Hegeliano, Ateu, Clássico, Kantiano, Taoísta, Pop, Platônico, ou qualquer outra conceituação fechada em si mesma. É através de tais lugares de estabelecimento que o Ingênuo soluciona as éticas e problemáticas do cotidiano. Matar é errado, pois assim impera a lei mosaica do Gênese. A música erudita é superior à popular pois foi isto que afirmaram os grandes corifeus. Os gordos e magros, altos e baixos, peludos e carecas, são feios e estranhos aos nossos olhos, pois - anotem! - assim eles o são aos olhos "de todo o mundo". O Ingênuo não intelige, apenas reflete os comandamentos de suas categorias conceituais, ainda que floreados de retóricas e argumentações plausíveis. Destarte, o Ingênuo nunca está só! Ele é sempre um método ciêntífico, um estilo musical, uma seita religiosa, um lifestile. O Ingênuo é sempre muitos. Mas nunca é por-si ou para-além-de-si. A beleza do mundo ingênuo encontra-se na causalidade, na linha simples, na vida sistêmica e no tempo circular. O dia santo, o final de semana, o décimo-terceiro. O mundo do Ingênuo, assim como o mesmo, é facilmente previsível e controlável...
Já o mundo do Irônico é trágico, espantoso e ruptural. O Irônico não confia em Papai-do-céu, mas é o seu Profeta-na-Terra. Não aceita as verdades reveladas, mas as inventa, descobre e cria para trazer o Paraíso aos homens de boa vontade. O Irônico não é puro - tampouco beato! - mas é sanctus [do latim, separado]. Um santo alheio aos seus, visto que é sempre marginal, excêntrico e apóstata. Enquanto os Ingênuos são os trabalhadores da grande messe, o Irônico é o demolidor dos templos antigos, combatente dos ídolos, in-cômodo criador de valores. O Irônico adora aloprar! Escreve seu próprio cânon sagrado, lista suas próprias leis e impõe sua própria verdade aos pobres de espírito. O Irônico pensa, e pensa por si! Não re-presenta istos e aquilos, mas é a própria presença-de-si-mesmo! Sui Generis! Seu mundo opera com regras únicas - não planejadamente suas - mas ainda suas! É sempre solitário, mas um solitário-solidário! Descobriu-se um Ser, mas um Ser-para-os-Outros! A beleza do mundo irônico é a casualidade, o emaranhado complexo, a vida saboreada e o tempo-momento. A chuva na praia, a festa surpresa, o beijo roubado. O mundo irônico - damas e cavalheiros - é o mundo mágico de Oz, o País das Maravilhas, O Jardim do Éden...
Vamos aos exemplos, sempre poucos em se tratando de ironia. Krishna, in-comodando Arjuna à recuperação de seu reino e trono; Moisés, in-comodando os judeus para o êxodo e o monoteísmo; Sócrates, in-comodando os atenienses no tocante às suas crenças infundadas; Sidarta, in-comodando toda a sua casta sacerdotal com uma vida de ascese; Jesus, in-comodando o farisaísmo judeu e a literalização religiosa... Pensei em mais alguns Irônicos ilustrativos, como Lao-Tsé, Orfeu e Pitágoras ou ainda os seguidores mais imediatos dos homens acima citados, como Josué, sucessor de Moisés, Platão, discipulo de Sócrates e Paulo de Tarso, apóstolo de Jesus. Todos homens-de-idéias, que se tornaram homens-de-ideais e, ulteriormente, homens-ídolos! Vejamos algumas sentenças:
"Eu vos dei leite a beber, e não alimento sólido que ainda não podíeis suportar. Nem ainda agora o podeís, porque ainda sois carnais." (Paulo de Tarso, em sua segunda carta à comunidade cristã de Coríntios)...
"O Tao que se pode sondar não é o verdadeiro Tao." (Lao-Tsé, no primeiro verso do primeiro poema do Tao Te Ching)...
"Embora falemos de Sua forma, o Buda Eterno não tem forma fixa, podendo manifestar-se em qualquer forma. Ainda que descrevamos Seus atributos, o Buda Eterno não tem atributos fixos, mas pode manifestar-se em todos e quaisquer primorosos atributos." (palavras de Sidarta Gautama)...
Acho que estas três são bem re-presentativas do que quero ex-pôr e im-pôr. Homens-bomba que explodem o que era dado, consolidado e estabelecido. Homens sinceros consigo mesmos, mas irônicos para com os demais. Homens que dão leitinho para os pequenos, pois, embora saibam da verdade amorfa, dão-lhe delineamento. Sabem que o Tao é indizível, sabem que o terceiro céu é inalcançável, sabem que a experiência é inenarrável. Mas mentem! Mentem pois os Ingênuos não sabem estar sozinhos, não sabem pensar sozinhos, não sabem agir sozinhos. Então o Irônico pensa, intelige e cria a realidade para eles. O faz para o bem-do-outro, pois ele também já foi Ingênuo. Assim o faz para guiar a massa burra e, ao mesmo tempo, abrir possibilidades de emerção aos tolinhos do mundo ingênuo. Não estou falando - tão somente - de Cristos e Budas, de Iluminados e Profetas, mas de homens que expiram, cospem, vomitam, sangram. Beethoven ironizou a métrica clássica. Einstein ironizou a mecânica newtoniana. Gandhi ironizou o Hinduísmo. E eu!? E tu!? E ele!? Que faremos de nós!?...

Um comentário:

Felipe J. R. Vieira disse...

Simplesmente sensacional. acho que simplesmente não se encaixa no sensacional, mas isto é uma outra história se contar.

Ingênuos e Irônicos!!!
Fiquei a me perguntar por que a demora a escrever este texto, mas agora entendo, seu lado irônico não queria solidificar tamanha fluidez, só que é necessário ingenuidade na hora de falar, ou melhor, na hora de viver.

See you!!!
Até a próxima ironia ingênua ou a ingênua ironia.